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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200018 

     

    Breve reflexão crítica sobre a inclusão da temática do aborto nos cursos médicos

    Rosiane Mattar

     

    Neste estudo, propomos uma reflexão crítica sobre a inclusão da temática do aborto nos currículos de graduação médica.

    O abortamento espontâneo acontece em 15% das gestações clinicamente diagnosticadas. Estima-se que o abortamento provocado por razões socioeconômicas ocorra na frequência de 19 milhões de casos ao ano no mundo. Além deles, devemos contabilizar as interrupções de gestações decorrentes de risco de vida para a mãe portadora de patologia grave, as gravidezes resultantes de violência sexual e as interrupções realizadas em razão de malformações fetais diagnosticadas no decorrer da prenhez.

    Assim, podemos notar que o abortamento é o evento mais frequente da obstetrícia.

    Há que se considerar ainda que o abortamento representa, nos países em desenvolvimento, a terceira ou quarta causa de morte materna além de ser importante causa de morbidade para a mulher que, muitas vezes, sofre a perda de seus órgãos reprodutores (1).

    No Brasil, 250 mil internações/ano no Sistema Único de Saúde (SUS) são consequentes a abortos clandestinos com intercorrências. O aborto clandestino é a terceira causa de morte materna no Brasil, ceifando vidas das mulheres mais pobres.

    Considerando a frequência e a importância dos agravos que o aborto pode determinar é justo pensar que este tema deveria ser abordado de maneira absolutamente completa e sem preconceito nos cursos de graduação de medicina, enfermagem e de outros profissionais afeitos aos cuidados com a saúde integral da mulher. Quando falamos de forma completa, entende-se que não somente fossem analisados temas como a etiologia, diagnóstico, quadro clínico e tratamento, mas também aspectos emocionais ligados à perda da gravidez ou à decisão de interrompê-la, os aspectos sociais e legais ligados à interrupção da gestação, a responsabilidade da decisão, a obrigação dos órgãos governamentais, a solidão em que as mulheres são colocadas nessas situações.

    Entretanto, o que percebemos, até o momento, é que se garante mais tempo dentro dos currículos para doenças absolutamente raras em frequência ou com repercussões não tão graves, ao mesmo tempo em que se nota grande dificuldade em que este tema seja amplamente discutido na graduação.

    Reforça-se aqui o paradigma cartesiano da doença, sem levar em conta as diferentes histórias de vida das mulheres. Uma série de razões pode ser aventada para essa dificuldade. Primeiramente, a interrupção da gravidez é um tabu social e existe grande constrangimento entre os professores e uma grande dificuldade de discutir esse tema com os estudantes. Muitos professores não têm opinião formada sobre ele, ou mesmo se negam a dar importância ao assunto.

    Também deve ser considerado que essa questão suscita conflitos religiosos, sociais, familiares e sexuais que dificultam, muitas vezes, o posicionamento da equipe de saúde frente à prestação de uma assistência justa e humana a essas mulheres e ao ensino dos alunos de graduação (2).

    Por outro lado, atualmente o currículo médico vem sendo estruturado para o estudo de aparelhos em vários módulos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Essas aulas e discussões são estabelecidas, para os diversos anos dos cursos, por uma comissão de docentes. Como os docentes da área de saúde não foram sensibilizados para os aspectos sociais e emocionais quando estudantes ou residentes, eles mesmos, nos bancos das escolas, em quase nenhum dos módulos entram nas discussões sobre bioética, responsabilidade social e civil.

    Além disso, histórica e culturalmente os alunos e residentes dessas áreas veem incutidas em suas mentes a necessidade de estarem voltados para o ato médico de diagnosticar a doença, operar, tratar e não têm disponibilidade para discussões que envolvam aspectos de natureza social, cultural, emocional. Outro aspecto cultural em relação a esses profissionais em formação é que eles devem adquirir certa frieza e distanciamento dos pacientes para suportarem a dor das doenças. Assim, os estudantes creem que seria benéfico não se envolver com os problemas emocionais dos pacientes.

    A universidade não abre espaço para discussões sobre o tema; os docentes e preceptores ficam constrangidos mesmo entre os próprios profissionais da área e não se sentem treinados para valorizar o debate, e o aluno acaba achando mais importante aprender a tratar o físico e esquece os aspectos emocionais e sociais.

    Também se observa certa prepotência em relação à prática da assistência à saúde da mulher. Esse sentimento pode ser percebido quando um estudante relata que se a mulher admite que provocou o abortamento ele se sente confortável para tratá-la, mas que se ela mente tentando esconder a prática do abortamento, ele sente raiva e desconforto em sua assistência. Essa conduta pode advir da observação do comportamento de seus mestres ou da própria personalidade do indivíduo, mas ela é imprópria para o profissional da saúde.

    Muitas modificações devem ser feitas na graduação para capacitar e sensibilizar alunos de graduação e especialização na assistência à mulher e à sua família em situação de abortamento.

    Nos cursos de graduação da Unifesp temos, no quarto ano médico, o módulo de Atenção à Saúde Integral da Mulher e da Criança que congrega diferentes disciplinas e aborda a temática do aborto, espaço onde estudantes discutem a temática da violência e do aborto, na perspectiva da saúde coletiva. Muitos aproveitam o espaço que é oferecido em uma Unidade Básica de Saúde para colocarem suas ansiedades, sofrimentos e até vivência familiar com tais temas.

    Existe um desejo latente de que isso aconteça pois, quando arguidos, podemos ver que alunos e residentes acham que mesmo que a assistência ao abortamento seja vivenciada no dia a dia deles o tema não é discutido adequadamente. .

    Como fazer para modificar a forma de pensar de docentes e responsáveis? Devemos introduzir o assunto, cada vez mais, em palestras e fóruns de discussão para conseguirmos sensibilizá-los.

    Mais do que tudo, devemos fazer o/a estudante sentir-se muito próximo à responsabilidade que a assistência a essas pessoas determina. Assim, na Unifesp tivemos a experiência de personalizar o atendimento às mulheres com gestação vítimas de estupro. O residente é responsável por acompanhar e assistir, em todas as etapas, a mulher e sua família: compor a anamnese, fazer a orientação, proceder à requisição da interrupção, acompanhar a advogada na orientação quanto aos procedimentos legais, estar presente na internação hospitalar e no procedimento da interrupção da gravidez e da alta hospitalar, além do seguimento ambulatorial até a reconstituição da saúde física e emocional da mulher.

    Cremos que este é o caminho: introduzir o assunto nos anos médios de graduação, aproximar os alunos da experiência de vivenciar os casos e assim sensibilizá-los, além de capacitá-los.

     

    Rosiane Mattar é professora livre-docente do Departamento de Obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Hardy, E., Alves, G.. "Complicações pós-aborto provocado: fatores associados." Cad Saúde Pública. 1992;8(4):454-8.

    2. Colas, O., Aquino, N.M.R., Mattar, R.. "Ainda sobre o abortamento legal no Brasil e o conhecimento dos profissionais de saúde". Rev Bras Ginecol Obstet. 2007;29(9):443-445.