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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200019 

     

    Os crimes contra a vida na reforma do código penal: uma visão médico-jurista

    Maíra Fernandes
    Thomaz Rafael Gollop
    Daniela Pedroso
    José Henrique Rodrigues Torres

     

    Em 18/10/2011, o presidente do Senado, José Sarney, instalou uma comissão de juristas para desenvolver uma proposta de reforma do Código Penal (CP) em vigor, datado de 1940. Apesar das muitas tentativas de atualização do CP empreendidas nas últimas décadas, a parte especial (sobre as condutas criminosas) não sofreu modificações significativas.

    Enquanto a medicina, a bioética, a técnica genética e outras áreas da saúde caminham a passos largos, a legislação brasileira não segue o mesmo ritmo. É de se esperar que um CP de 1940 já esteja apresentando sinais de cansaço e esgotamento, necessitando atualizar-se em diversos pontos, inclusive em questões polêmicas como aborto, eutanásia, ortotanásia etc. Dentre as muitas necessidades de reforma do Código Penal, encontra-se a de revisão do capítulo "Dos crimes contra a vida", que se apresenta em absoluto descompasso com as legislações da maior parte do mundo, especialmente no que tange ao crime de aborto.

    O ABORTO NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. DESCOMPASSO ENTRE NORMA E REALIDADE A interrupção voluntária da gravidez no Brasil é criminalizada nos arts. 124 e seguintes do CP, somente não sendo punida em caso de aborto necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e quando a gravidez for resultante de estupro (art. 128, I e II).

    A exposição de motivos do CP traz a seguinte observação sobre os artigos relacionados ao aborto, a qual nos leva à indagação: o que seria ordem social e individual hoje?

    "Mantém o projeto a incriminação do aborto, mas declara penalmente lícito, quando praticado por médico habilitado, o aborto necessário, ou em caso de prenhez resultante de estupro. Militam em favor da exceção razões de ordem social e individual, a que o legislador penal não pode deixar de atender" (1) (grifos nossos)

    Não se falava em métodos de terapia pré-natal, sendo impossível o diagnóstico de anomalias fetais. A medicina engatinhava em uma área que atingiria um grau de refinamento impressionante, capaz de diagnosticar doenças genéticas no período pré-natal e pré-implantacional. Seria impossível imaginar um caso de gravidez resultante do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida, grave problema atual.

    É bem vinda a proposta de nova redação do artigo 128 do CP, excluindo-se o crime de aborto se:

    "houver risco à vida ou à saúde da gestante"; "a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida"; "comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos"; "por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade".

    GRAVE PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL O aborto é um tema relevante para a saúde pública, devido às causas de mortalidade materna e morbidade a ele relacionadas. Trata-se da terceira causa de ocupação dos leitos obstétricos no Brasil (2).

    Em países cujas leis foram flexibilizadas para estarem mais adequadas aos direitos sexuais e reprodutivos constatou-se uma redução da mortalidade materna pela qualidade e presteza do atendimento evitando a clandestinidade do aborto inseguro (3). A criminalização e as leis restritivas não levam à eliminação ou redução de abortos provocados, mas aumentam consideravelmente os riscos de morbidade feminina, esterilidade e mortalidade materna.

    A OMS aponta que 21% das mortes maternas (cerca de seis mil/ano) na América Latina têm como causa as complicações decorrentes do aborto inseguro, sob a responsabilidade de leis restritivas ao aborto. No Brasil, a mortalidade materna permanece entre as 10 primeiras causas de mortalidade da população feminina entre 10 e 49 anos.

    NÃO HÁ CRIME EM CASO DE ABORTO POR ANOMALIAS FETAIS GRAVES OU INCURÁVEIS Propõe a Comissão de Reforma do CP a inclusão do inciso III ao seu art. 128, reconhecendo que não há crime se: III) Comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves ou incuráveis anomalias, desde que o diagnóstico seja atestado por dois médicos.

    Neste grupo relativamente extenso de malformações fetais a anencefalia ocupa um lugar de destaque apenas no Brasil em função da ADPF 54 recentemente aprovada pelo STF. Nos demais países onde a legislação contempla a interrupção da gravidez em função das anomalias fetais graves, estas foram consideradas de maneira agrupada não havendo particularização para uma determinada malformação. A anencefalia constitui grave malformação fetal que resulta da falha de fechamento do tubo neural, com ausência de cérebro, calota craniana e couro cabeludo, ocorrendo entre o 24º e 26º dia após a fecundação (4). A maior parte dos fetos anencefálicos apresenta parada dos batimentos cardíacos fetais antes do parto (5,6). Parte desses fetos anencefálicos apresenta batimentos cardíacos e movimentos respiratórios fora do útero, funções que podem persistir por algumas horas e, em raras situações, alguns dias (7). A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a não realização de manobras de ressuscitação cardiorrespiratórias em anencéfalos, pois a anomalia é incompatível com a vida.

    Há de se considerar que outras anomalias fetais graves e incuráveis são de diagnóstico simples e 100% seguro, muitas vezes apenas com o recurso amplamente acessível da ultrassonografia. A agenesia renal bilateral é outro exemplo dessas anomalias incuráveis, cuja ocorrência se dá por um defeito no broto uretérico ou no blastema metanéfrico. O recém-nascido não apresenta formação de urina e morre em horas após o nascimento por falência respiratória causada por hipoplasia dos pulmões (8), a qual se caracteriza pela redução do número de células pulmonares, espaço aéreo e alvéolos. Assim o feto com agenesia renal bilateral além da ausência dos rins não apresenta pulmões funcionais e, portanto, sua sobrevivência é impossível (9).

    Não é nosso objetivo listar todas as anomalias graves e incuráveis das quais se ocupa a medicina fetal, portanto, citamos algumas afecções que na maioria das vezes são passíveis de diagnóstico preciso apenas com o recurso da ultrassonografia, a qual está disponível para a imensa maioria das gestantes brasileiras que recorrem ao SUS.

    É importante salientar que o diagnóstico de anomalias fetais é realizado na maioria dos casos em pacientes que não possuem antecedentes de doenças hereditárias e não apresentam riscos genéticos aumentados. Há, entretanto gestantes que possuem maior risco genético. É o caso das mulheres que engravidam após os 40 anos de idade e que, em função de sua idade, possuem um risco aumentado para aberrações cromossômicas em suas gestações. Por outro lado há evidentemente um universo de doenças geneticamente determinadas e que possuem risco elevado de recorrência.

    ASPECTOS PSICOLÓGICOS DO ABORTO A reprodução e o exercício da sexualidade deveriam ser sempre atos desejados e planejados, pois assim não ocorreriam gestações não desejadas, as quais ocorrem em um momento pouco favorável, inoportuno, ou acontecem com uma pessoa que não deseja engravidar (10).

    O momento da decisão em relação ao que fazer frente a uma gestação não desejada é um momento solitário e doloroso para a mulher e aqueles que a rodeiam, e traz inúmeras consequências (11, 12). O aborto não é visto pelas mulheres que o elegeram como uma preferível, ou desejável, forma de contracepção (13). O aborto só ocorre porque uma gravidez é indesejada e somente as mulheres que tomam essa decisão sabem exatamente porque o fazem (14).

    As respostas emocionais ao aborto induzido legalmente são geralmente positivas. Os problemas emocionais que resultam do aborto são raros e menos frequentes do que aqueles que surgem após o parto de uma gravidez indesejada. Estudos nos últimos 25 anos apontam o aborto como um procedimento relativamente saudável em termos de efeitos emocionais (15). Há uma reação de alívio por parte das mulheres após o aborto e o mesmo não afeta desfavoravelmente a maioria das mulheres. Quase todas as mulheres assimilam a experiência do aborto entre seis meses e um ano após o procedimento (16-20).

    Questionadas após o aborto, acima de 98% das mulheres não apresentaram remorso e fariam a mesma escolha novamente sob as mesmas circunstâncias (21). Mais de 70% das mulheres expressaram desejo por uma criança no futuro (22, 23) Pode-se ainda afirmar que, mulheres que abortaram, não sofreram efeitos psicológicos adversos (24,25).

    A Associação Americana de Psicologia concluiu que o aborto legal não cria danos para a maioria das mulheres submetidas ao procedimento. Vinte e um por cento das mulheres americanas realizam aborto, portanto, se houvesse severas reações emocionais existiria uma epidemia de mulheres procurando tratamento psicológico, o que não acontece (26,27).

    CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante dos argumentos aqui expostos, apoiamos as propostas de reforma do art. 128 do CP, ampliando-se as causas de exclusão da ilicitude do aborto. Somente assim, a perspectiva de saúde pública substituirá a ótica da repressão policial, garantindo-se à mulher que optar pela interrupção voluntária da gravidez toda a assistência que ela necessita.

    Vale ressaltar que muitos países adotaram o caminho da legalização do aborto (quase a unanimidade dos países europeus, os Estados Unidos, Canadá, África do Sul e, mais recentemente, a Cidade do México). Em todos os lugares em que ocorreram reformas legais ampliando o acesso ao aborto houve, em consequência: redução significativa da morbimortalidade materna, maior acesso das mulheres à informação em saúde sexual e reprodutiva, a métodos contraceptivos e, portanto, uma redução de sua prática em condições inseguras.

    O Brasil precisa de uma reformulação do CP como a proposta a qual, esperamos, seja de fato acolhida por nossos parlamentares e sancionada pela Presidência da República.

     

    Maíra Fernandes advogada criminal, presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OABRJ, membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem-Brasil), especialista em direitos humanos e relações do trabalho pela UFRJ.

    Thomaz Rafael Gollop livre docente em genética médica pela USP, membro da SBPC, professor associado de ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí.

    Daniela Pedroso psicóloga, especialista em abortamento previsto em lei, mestre em saúde materno infantil e doutoranda em ciências da saúde. Atendimento a casos de anencefalia na Clínica Prof. Dr. Thomaz Gollop e Hospital Pérola Byington/São Paulo. Estuda e escreve sobre a temática em questão.

    José Henrique Rodrigues Torres juiz de direito titular da 1ª Vara do Júri da Comarca de Campinas, professor de direito penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp), especialista em direito das relações sociais e membro da Associação de Juízes para a Democracia.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Gomes, Luiz Flávio (org.). Código Penal. 13ª Edição rev., ampl. e atual. SP: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 246.

    2. Victora, C.G., Aquino, E.M.L. et al. "A saúde das mães: progressos e desafios". The Lancet Saúde no Brasil, 2011.

    3. Global Health Organization. Global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2003. Fifth edition 2007.

    4. Cheschier N. ACOG-Commitee on Practice Bulletins-Obstetrics. ACOG practice bulletin. Neural Tube Defects. Number 44, July 2003. Int J. Gynaecol Obstet. 2003 Oct. 83(1): 123-133.

    5. The infant with anencephaly. The medical Task Force on Anencephaly. N Engl J Med. 1990 Mar8;322(10):669-674.

    6. Shaw, G.M., Jensvold, N.G, Wasserman, C.R., Lammer, J. "Epidemiologic characteristics of phenotypically distinct neural tube defects among 0,7 million California births",1994 Feb;49(2):143-149.

    7. Cook, Rebecca. Transparency in the delivery of lawful abortion services. CMAJ 180:272-273;2009.

    8. Potter EL." Bilateral absence of ureters and kidneys". Obstet Gynecol 1965, 25:3-12.

    9. Hooper, S.B, "Harding R. Fetal lung liquid: A major determinant of the growth and functional development of the fetal lung". Clin Exper Pharmacol Physiol 1995, 22: 235-247.

    10. Langer A, Espinoza H." Embarazo no deseado: Impacto sobre la salud y la sociedad em America Latina y el Caribe". In: Ramos S & Gutiérrez MA, editoras. Nuevos desafios de la responsabilidade política. CEDES. 2002;4(5):95-122.

    11. Pedroso, D., Gomes, E.C., Drezett, J. et al. MEV. História de mulheres em situação de violência e aborto previsto em lei. IPAS Brasil; 2008 [acesso em 02 abril 2010]. Disponível em: http://www.ipas.org.br/arquivos/Biografia2008.pdf

    12. Pedroso, D. "Estudo de fatores relacionados ao aborto previsto em lei em situações de violência sexual". (dissertação de mestrado). São Paulo: Universidade de Santo Amaro; 2010.

    13. Henshaw, S.K., Silverman, J. "The characteristics and prior contraceptive use of US abortions patients". Family Planning Perspective. 1988;20(4):158-9,162-168.

    14. Faúndes, A, Barzelatto, J. O drama do aborto: em busca de um consenso. Campinas: Komedi; 2004. 304 p.

    15. Adler, N.E, David, H.P., Major, BN., Roth, S.H., Russo, N.F., Wyatt, G.E.. Op.cit.

    16. Adler NE et al., Op.cit.

    17. Kero, A., Högberg, U., Lalos, L. "Wellbeing and mental growth: long-term effects of legal abortion". Social Science & Medicine. 2004;58:2229-2269.

    18. Armsworth, M.W. "Pshycological response to abortion". Journal of Counseling and Development. 1991;69:377-379.

    19. Dagg, P.K.B. "The psychological sequelae of therapeutic abortion – denied and completed". American Journal of Psychiatric. 1991;148(5):578-585.

    20. Lazarus, A. "Psychiatric sequelae of legalized first trimester abortion". Journal of Pychosomatic Obstetrics & Gynaecology. 1985;4(3):140-150.

    21. Dagg, P.K.B. Op.cit.

    22. Major, B., Cozzarelli, C., Cooper, M.L., Zubek, J. et al. "Psycological responses of women after first-trimester abortion". Arc Gen Psychiatry. 2000;57:777-784.

    23. Torres, A., Forrest, J.D." Why do women have abortions?" Family Planning Perspectives. 1988;20(4):169-176.

    24. Russo, N.F., Zierk, K.L. "Abortion, childbearing, and women's well-being". Professional Psychology: Research and Pratice. 1992;23(4):269-280.

    25. Zabin, L.S., Marilyn, B.H., Emerson, M.R.. "When urban adolescents chose abortion: effects on education, psychological status, and subsequent pregnancy". Family Planning Perspectives. 1989;21(6):248-255.

    26. The emotional effects of induced abortion. Planned Parenthood® Federation of America, Inc. All rights reserved. Planned Parenthood. 2001.

    27. Cohen, S.A. Abortion and mental health: myths and realities. New York: Guttmacher Institute. 2006;9(3):8-16.