SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.64 número2 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.2 São Paulo abr./jun. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000200021 

     

    Evolução do pensamento matemático, das origens aos nossos dias

     

    Joaquim Francisco de Carvalho

     

     

    "...nós percebemos objetos e entendemos conceitos.
    Entendimento é outra forma de percepção..."

    Kurt Gödel

    "No pequeno não existe o menor. Existe sempre um menor, pois o que existe não pode deixar de existir, por maior que seja o número de subdivisões". Este pensamento — expresso por Anaxágoras (Clazômenas, Jônia c. 500 – 428 a.C.) — referia-se ao que posteriormente foi chamado de homeomerias, que são partículas materiais que se unem para formar cada corpo, mas que, diferentemente dos átomos, possuem as mesmas qualidades dos corpos que formam.

    Formulado há mais de 2.500 anos, esse pensamento é sugestivo para abrir um artigo de divulgação sobre aos origens do pensamento matemático, passando pela crise dos fundamentos e chegando até os nossos dias.

    A ciência e a filosofia ocidentais descendem em linha direta dos gregos que, muitos séculos antes de nossa era, já procuravam estabelecer as bases do pensamento racional e científico.

    Os primeiros filósofos-cientistas viveram na antiga cidade-estado de Mileto, na costa jônica da Ásia Menor, por volta do século VI a.C. Naquela época, a vida na Grécia — em particular na Jônia — passava por grandes transformações causadas, entre outras coisas, pelo surgimento da polis (cidade política, ou comunidade constituída de cidadãos livres) — e pela revolução econômica provocada pelo nascente regime monetário, que facilitou as trocas, abrindo espaço para as classes sociais que viviam do artesanato, da navegação e do comércio. Isso restringiu a influência da aristocracia e do clero, ao contrário do que ocorria na Babilônia e no Egito, onde as castas sacerdotais exerciam importante poder político, confinando as atividades culturais nos templos e sujeitando a indagação intelectual a doutrinas teológicas, sobre as quais repousava toda a ordem social.

    Tanto quanto nós, os grandes filósofos milésios, Tales (c.625 – 545 a.C.), Anaximandro (c.610 – 547 a.C.) e Anaximenes (c.588 – 524 a.C.), queriam descobrir a estrutura da matéria e conhecer as origens do universo. E, no ambiente propício da Jônia, eles puderam dedicar-se a especulações, ordenando a experiência e buscando compreeder a realidade. Nasceram assim a lógica, a matemática, a teoria atômica, a ética, a metafísica, a teologia etc.

    Alguns desses filósofos também foram estadistas e se interessaram pela cultura do mundo não-grego. Há indicações de que Tales conheceu os princípios da astronomia babilônica e os métodos fenícios de navegação e, segundo a tradição, foi ele que trouxe a geometria do Egito para a Grécia. Os fundamentos da geometria, para Tales, eram os conceitos intuitivos de ponto e reta, não especificados em postulados.

    Não cabe aqui discorrer sobre a influência dos filósofos milésios sobre o pensamento grego. Lembremos apenas o sobredito Anaxágoras e também Pitágoras, nascido na ilha de Samos, próxima à costa jônica (c.570 a.C.) e morto em Crotona, no sul da Itália (c. 500 a.C.).

    Supõe-se que Pitágoras foi um filósofo e cientista místico, para quem a essência de todas as coisas é o número. Na procura de leis eternas do universo, Pitágoras dedicou-se à geometria, à aritmética, à astronomia e à música (que eram os quatro caminhos para a sabedoria — depois quatro artes liberais, ou "Qaudrivium"). Nada ficou do que o próprio Pitágoras escreveu, mas a confraria pitagórica deixou um amplo legado de ensinamentos. Em particular, atribui-se a Pitágoras a descoberta de uma escala tonal que podia ser expressa em termos puramente numéricos, usando os primeiros quatro números inteiros. E também a ele é atribuída a prova do célebre teorema que estabele a relação entre os catetos e a hipotenusa do triângulo retângulo, embora saiba-se que, muitos séculos antes, agrimensores babilônios, caldeus e egípcios já o conhecessem.

    Em fins do século VI a.C. a civilização grega passou a ser ameaçada pelos persas e a corrente filosófica foi-se deslocando para o Ocidente, até encontrar novo centro em Eleia, colônia fundada por refugiados jônicos na Itália, ao sul de Nápoles. Aí vamos encontrar, por exemplo, Parmênides (c.514 – 450 a.C.) e seu discípulo Zenão (c. 490 – 430 a.C.), que foi um dos primeiros filósofos a argumentar a partir de hipóteses e premissas formuladas por outros pensadores. Zenão ficou muito conhecido pelo paradoxo do movimento, baseado na bissecção (Aquiles e a tartaruga), e pelos chamados paradoxos da pluralidade, que parecem antecipar certos dilemas da teoria dos conjuntos, como se vê pelas citações a seguir, que chegaram até nós através de Aristóteles (c. 384 – 322 a.C.), o fundador da lógica formal e um dos mais importantes filósofos da antiguidade:

    • Se as coisas são muitas, devem ser tantas quantas são, nem mais nem menos. E se elas são tantas quantas são, podem ser finitas (em quantidade).
    • Se as coisas são muitas, as coisas existentes são infinitas, pois há sempre coisas entre as coisas existentes e, novamente, outras coisas entre estas outras. Sendo assim, as coisas existentes são infinitas (em quantidade).

    A sistematização clara e rigorosa de toda a matemática da antiguidade — da geometria à teoria das proporções, passando pela teoria dos números irracionais — deve-se a Euclides. Os Elementos de Euclides são, possivelmente, o livro científico mais reproduzido e mais estudado da história. Sabe-se que ele nasceu por volta de 295 a.C. e estudou provavelmente em Atenas, mas passou a maior parte da vida em Alexandria, onde fundou a escola de matemática.

    Com Euclides, os fundamentos da geometria ainda eram intuitivos (ponto e reta), mas passaram a ser entendidos como objetos geométricos especificados em afirmações não demonstradas, ou seja, axiomas e postulados.

    Platão (Atenas, c. 428 – 348 a.C.), o filósofo mais influente da escola ateniense, acreditava que existe uma verdade eterna, que pode ser descoberta pelo pensamento humano, como narra no diálogo Mênon, no qual um escravo, sem nenhum aprendizado prévio, respondendo a perguntas de Sócrates, consegue descobrir (ou "reencontrar") uma lei geométrica, que era uma formulação do teorema de Pitágoras (um quadrado construído sobre a diagonal de um quadrado, tem o dobro da área de outro quadrado, construído sobre um dos lados). Se o escravo nunca tinha aprendido isso, argumenta Sócrates no diálogo de Platão, seu conhecimento só pode ter vindo de um reino de verdade absoluta, de onde é retirado todo o saber humano. Cerca de 2 mil anos mais tarde, ou seja, em meados do século XVIII, Immanuel Kant (1724-1804) retomou esse pensamento para afirmar que existe um conhecimento eterno e independente (que ele chama conhecimento sintético a priori), do qual nossas intuições de espaço e tempo seriam exemplos concretos. Para Kant, toda a verdade sobre o espaço está na geometria de Euclides.

    Até meados do século passado, acreditava-se que, começando por verdades evidentes (axiomas e postulados) e utilizando métodos de demonstração rigorosos, Euclides tinha chegado ao que é definitivamente certo a respeito do espaço — ou sobre objetos no espaço. A geometria de Euclides era vista como a única área do conhecimento humano acima de dúvidas. Outros ramos da própria matemática — e mesmo da física — só adquiriam significado através de sua fundamentação geométrica. A convicção da infalibilidade da geometria euclidiana foi um pouco abalada pela descoberta de outras geometrias, independentes dos postalados de Euclides, particularmente por J. Bolyai (1802-1860), B. Riemann (1826-1866) e N. Lobatchevski (1792-1856).

    Grandes mudanças vieram com o desenvolvimento da análise matemática, que começava a ultrapassar a intuição geométrica. A ideia da falibilidade da geometria euclidiana causava a perda de certeza em qualquer outro campo das ciências em geral, aí incluída a própria matemática. Ganharam terreno, então, algumas correntes de pensamento empenhadas em reduzir os princípios da análise aos conceitos mais simples da aritmética.

    O pioneiro dessa "aritmetização" da análise foi o matemático alemão K. Weierstrass (1815-1897) e o movimento experimentou grandes progressos com a chamada Escola de Berlim, onde se destacavam matemáticos da importância de L. Kronecker (1823-1891), E. Kummer (1810-1893) e G. Frobenius (1849-1917), aos quais juntaram-se R. Dedekind (1831-1916), G. Cantor (1845-1918) e Ernst Zermelo (1871-1953).

    A HIPÓTESE DO CONTÍNUO Ainda no século XIX os matemáticos, especialmente Gottlob Frege (1848-1925), procuraram consolidar toda a matemática na liguagem da teoria dos conjuntos — o que colocou o problema da construção do conjunto dos números reais (contínuo linear) a partir dos números inteiros. Para isso, tanto Weierstrass, como Dedekind e Cantor propuzeram a utilização de conjuntos infinitos de números racionais.

    Cantor tinha conjecturado que, à semelhança dos conjuntos finitos, também faz sentido falar em número de elementos, ou "cardinalidade", de conjuntos infinitos. Mas essa noção só teria interesse se pudesse ser demonstrado que nem todos os conjuntos infinitos têm a mesma cardinalidade.

    Dois conjuntos são equivalentes se for possível emparelhá-los, ou fazer corresponder a cada elemento de um deles, um elemento do outro. O conjunto de todos os números naturais (1, 2, 3......) pode ser emparelhado com o conjunto dos números pares, ou com o conjunto dos números ímpares ou, ainda, com o conjunto das frações racionais etc. Portanto esses conjuntos têm a mesma cardinalidade. Um conjunto é infinito se for equivalente a um de seus subconjuntos.

    Com o célebre método da diagonal, Cantor provou que o conjunto dos números naturais não é equivalente ao conjunto dos pontos de um segmento de reta, de modo que existem pelo menos dois tipos de infinito: o infinito correspondente à cardinalidade do conjunto dos números naturais; e o infinito correspondente à cardinalidade do contínuo (segmentos de reta, figuras planas, figuras a três dimensões e porções delimitadas do espaço têm a cardinalidade do contínuo). Em seguida vêm os conjuntos de todos os subconjuntos de um dado conjunto (conjunto das partes de um conjunto).

    Cantor provou que a cardinalidade do conjunto das partes do conjunto dos números naturais é equivalente à cardinalidade do contínuo. Provou também que a cardinalidade de um conjunto é diferente da cardinalidade do conjunto de suas partes.

    Coloca-se agora a pergunta: existe algum conjunto infinito com cardinalidade entre a cardinalidade dos números naturais e a cardinalidade do contínuo? Por outras palavras, existiria, num segmento de reta, um conjunto infinito de pontos, que não seja equivalente ao segmento todo, nem ao conjunto dos números naturais?

    Cantor não conseguiu responder a essa pergunta e conjecturou (mas nunca demonstrou) que tal conjunto não existe. Essa conjectura de Cantor recebeu o nome de hipótese do contínuo e, no campo dos fundamentos da matemática, figurou durante muitos anos entre os grandes problemas pendentes.

    A CRISE DOS FUNDAMENTOS Utilizando operações da teoria dos conjuntos, Frege mostrou que os números naturais podiam ser construídos a partir do conjunto vazio, ou seja, a partir de nada. Isso permitia que a aritmética (até então a estrutura fundamental), cedesse lugar à teoria dos conjuntos, como base para a construção de toda a matemática.

    A relação de inclusão da teoria dos conjuntos (representada por A ⊇ B, que significa "o conjunto A inclui o conjunto B") pode sempre ser associada à relação de implicação (simbolizada por A → B, que significa "a propriedade A implica a propriedade B") da lógica (corpo de leis fundamentais do raciocínio). A partir daí, o chamado programa dos lógicos, desenvolvido principalmente por B. Russell (1872-1970) e A.N. Whitehead (1861-1947), procurava demostrar que a ideia de conjunto (coleção arbitrária de objetos distintos) poderia ser tomada como ponto de partida para a construção de toda a matemática. Ou seja, como a matemática é apenas um desenvolvimento das leis da lógica, todo seu estudo poderia ser reduzido à teoria dos conjuntos.

    Assinale-se que, até cerca de 1870, entendia-se por conjunto uma coleção de objetos matemáticos, como números, figuras geométricas, funções etc. Depois de 1930, os conjuntos voltaram a ser entendidos dessa forma. Entre 1870 e 1930, a teoria dos conjuntos transformou-se em arena de disputas entre matemáticos e filósofos de diversas correntes. O ponto culminante dessas disputas foi a descoberta, por Bertrand Russell, de contradições, eufemísticamente designadas pelo termo antinomias, dentre as quais a mais famosa ficou conhecida como o Paradoxo de Russell, que resume-se em que, pela teoria de Cantor, pode-se construir o conjunto de todos os conjuntos que não contenham a si próprios como elementos e, então, perguntar se este conjunto contém a si próprio como elemento. A resposta é forçosamente contraditória.

    Contradições desse tipo caracterizaram o início do que veio a se chamar a crise dos fundamentos. No contexto da crise dos fundamentos, ganharam corpo três correntes de pensamento matemático: o platonismo, o formalismo e o construtivismo (ou intuicionismo).

    Os platonistas consideram que a existência de objetos matemáticos é um fato objetivo, independente de nosso conhecimento sobre eles. Tais objetos existem fora do espaço e do tempo, e são imutáveis. Qualquer pergunta sobre um objeto matemático já tem uma resposta bem definida, quer consigamos descobrí-la ou não. Para os platonistas, os matemáticos são, portanto, pesquisadores empíricos, que não podem inventar nada, porque já existe tudo. Seriam como os geólogos, que se dedicam a procurar e explorar depósitos minerais, que já existem no subsolo.

    Em 1937, o matemático austíaco Kurt Gödel (1906-1978), que era platonista, demonstrou que a teoria formal dos conjuntos não é suficiente para provar a validade da hipótese do contínuo. E em 1963 o americano Paul Cohen (1934-2007) demostrou que também não se pode provar que a hipótese do contínuo não pode ser demonstrada. Isto significa, para os platonistas, que os axiomas de que dispomos constituem um modelo incompleto dos números reais. Portanto, a hipótese do contínuo é verdadeira ou falsa, mas não compreendemos o conjunto dos reais, suficientemente bem, para encontrar a resposta.

    Para os formalistas não existem objetos matemáticos. A matemática resume-se em axiomas, demonstrações e teoremas, ou seja, existem regras, que dão origem a fórmulas, que podem ser aplicadas a problemas físicos, mas sua verdade ou falsidade decorre de interpretações que não têm nenhum valor para a matemática pura. Para os formalistas a interpretação platonista não tem significado, simplesmente porque não existe nenhum conjunto infinito de números reais, a não ser o que criamos a partir de axiomas que podemos modificar a qualquer momento.

    Diferentes de ambos (embora próximos dos platonistas) estão os construtivistas, ou intuicionistas, para os quais não existem verdades matemáticas fora do pensamento humano, ou seja, a matemática é apenas o que pode ser obtido por construção finita. Nenhum conjunto infinito, inclusive o dos números reais, pode ser obtido dessa maneira. Portanto, para o construtivista, a hipótese do contínuo não tem sentido.

    Dois dos principais construtivistas foram Luitzen Brouwer (1881-1966) e Hermann Weyl (1885-1955). Para Weil, um número real seria construído mediante a aproximação de uma sequência infinita de intervalos decimais, de tal forma que cada intervalo desta série contenha em si mesmo o intervalo subsequente (uma imagem disso seria uma série de intervalos encaixados que vão se estreitando até, praticamente, se confundirem).

    Para Brouwer, o principium tertii exclusi, ("uma proposição é verdadeira, ou sua negação é verdadeira") não pode servir de instrumento para a descoberta de novas verdades matemáticas, excepto em casos especiais. Em suas palavras, "acreditar-se na validade universal do principium tertii exclusi é apenas um fenômeno ligado à história da civilização, da mesma maneira que, antigamente, acreditava-se que o número p (pi) era racional, ou que o firmamento girava à volta da terra".

    CONSIDERAÇÕES FINAIS A simulação e modelagem de probremas físicos sempre foi e continua a ser uma fonte de desafios para os matemáticos e — embora persistam discordâncias — a motivação que os matemáticos encontram na solução de problemas práticos e na física acaba superando as crises.

    Basta lembrar que foi o matemático e filósofo Baise Pacal que, no século XVII, concebeu e construiu a primeira máquina de calcular. Daquela época até o presente intensificaram-se as interações entre a física e a matemática. Foi na busca de soluções para problemas da física que Galileu, Newton, Leibniz, Fourier, Gauss, Euler, Laplace, Lagrange e Poncaré, para citar apenas estes, abriram novos espaços para a matemática.

    Em sentido inverso, a pesquisa em matemática pura tem indicado novos rumos para a física. Os progressos da teoria ergódica, por exemplo, em aplicações que vão da topologia à teoria das probabilidades, muito têm contribuído para a simulação e modelagem de problemas físicos, que não teriam solução sem o emprego de uma sofisticada linguagem matemática.

    De resto, foi decisiva a influência exercida por trabalhos de Frege, Cantor, Hilbert e Gödel, sobre os fundamentos do que viria a ser a teoria da computação — a qual deve avançar ainda mais com o desenvolvimento da lógica fuzzi, que se tem mostrado uma eficiente ferramenta para o estudo da estrutura da matéria e já encontra aplicações práticas até na engenharia, e assim por diante.

     

    Joaquim Francisco de Carvalho é físico, mestre em engenharia mecânica, com foco em energia nuclear, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), e doutor em energia pela Universidade de São Paulo (USP). Foi engenheiro da Beton und Monierbau A.G. — Düsseldorf, Alemanha; diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear) e coordenador do setor industrial do Ministério do Planejamento e engenheiro da Cesp.