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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.3 São Paulo  2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000300006 

     

    SAÚDE

    Crescimento de cirurgias plásticas demonstra fusão dos conceitos de saúde e beleza

     

    Os padrões de aferição da beleza do corpo humano estão inscritos na cultura e são influenciados por fatores que estão além de sua materialidade. Ele é apenas um suporte desses valores produzidos pela ética, religião, política, enfim, pela cultura. A artista plástica francesa Orlan utiliza o próprio corpo em performances onde, por meio de cirurgias plásticas, ela faz modificações radicais em sua aparência. Olhos, lábios e até a colocação de chifres foram algumas dessas mudanças. Se isso não fosse o bastante, ela faz questão de que as intervenções cirúrgicas sejam documentadas e transmitidas, em alguns casos, ao vivo, para galerias, museus, como em um espetáculo. Orlan eleva ao máximo as possibilidades de modificação e exposição corporal. Para ela, o corpo é um lugar de debate público, onde se colocam questões cruciais de nossa época e a metamorfose corporal é uma delas.

    Dentre tantas possibilidades de operar essa metamorfose, a cirurgia plástica, um dos métodos mais radicais e rápidos, só cresce.

    No Brasil, o número desse tipo de procedimento aumenta a cada ano, colocando o país como o segundo no ranking mundial dos que mais realizam cirurgias plásticas, atrás apenas dos Estados Unidos. Para Francisco Romão Ferreira, sociólogo da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, esse cenário coloca a necessidade de discutir a questão das mudanças no corpo também no campo da saúde pública. Esse é o objetivo do seu livro Ciência, arte e cultura no corpo: a construção de sentidos sobre o corpo a partir das cirurgias plásticas (2011).

    A construção da imagem do corpo, bem como a percepção sobre o que é belo, se dá na cultura e nos valores presentes na vida social. Assim, enquanto para o pensamento grego beleza coincidia com a verdade, porque a verdade produzia a beleza, para os românticos do século XVIII é a beleza que produz a verdade. Já na Idade Média, o corpo e a beleza eram criações divinas e por isso os padrões de beleza recusavam o artifício, a ilusão, a transgressão do natural, dos cosméticos que "iludem o olhar e são obra do diabo".

    Interessado em como o discurso médico influencia no modo como a sociedade constrói os sentidos para o corpo e para a imagem que dele fazemos, Romão analisa o discurso dos profissionais que atuam em cirurgia plástica, disponíveis no site da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Uma de suas constatações foi que a questão da dualidade corpo-mente é fundadora da racionalidade ocidental, está na base da nossa concepção atual sobre corpo e mente e também presente no discurso médico. Daí ser possível acreditar – paciente e cirurgião – que uma mudança no corpo seja capaz de gerar mudanças na mente, mais especificamente na autoconfiança, autoestima e estado de bem-estar das pessoas.

    "O crescente número de cirurgias plásticas estéticas mal sucedidas, ou tecnicamente bem-sucedidas, mas que causam transtornos emocionais nos pacientes, alterando sua relação com o próprio corpo, pode ser um exemplo do uso de uma racionalidade médica que entende o corpo como máquina e banaliza a substituição das peças da engrenagem que não estejam funcionando de maneira satisfatória. Como se corpo e mente fossem territórios distintos", diz.

    PODER Para Romão, em nossos dias, a ciência é investida de grande poder, uma entidade que congrega todas as respostas. E os discursos divulgados pela SBCP se enquadram nessa visão, representam o discurso científico, e são produto do saber, que se populariza, influenciando gostos e comportamentos, a percepção do corpo e do que é considerado saudável. A questão é que, na maioria das vezes, esses discursos se referem apenas à imagem do corpo e não necessariamente às questões de saúde.

    Com os avanços da biotecnologia, novas questões se abrem: surge um corpo híbrido, que mistura o natural e o tecnológico. As cirurgias plásticas são apenas um dos aspectos desse fenômeno, um objeto de consumo para criar um corpo para ser consumido. Apoiado na psicanálise, Romão explica que sendo o corpo um dos meios de construção da identidade, a cirurgia plástica é um meio rápido e preciso, não só de remodelar o corpo físico, mas de reconstruir a identidade, em um movimento de subjetivação que se faz de fora para dentro.

    ANTES O SUTIÃ, AGORA AS CALORIAS Um corpo investido de tanto poder substitui a roupa como instrumento de diferenciação e hierarquização na vida social. A moda não está no corpo, ela é o corpo. Velhice e obesidade são motivos de estigmatização, principalmente para as mulheres que, após vencerem barreiras e conquistarem liberdade em diversos campos, se veem aprisionadas pelos números da balança, das calorias, do calendário. Se antes as filhas desejavam se parecer com suas mães, hoje são as mães que lutam para ter aparência jovem. O corpo "pode ser até imoral, desde que seja belo e magro, construído a partir de uma dieta e de uma vida 'natural' e, quando necessário, a tecnologia pode dar uma força à natureza, melhorar o que ela não foi capaz de realizar", diz Romão.

    Para o escritor, "assim como as calças jeans, os carros e outros objetos de consumo são 'customizados', o corpo também é encaixado numa individualização em série, ou seja, cada vez mais atende ao interesse do dono que compra seu kit de personalização numa linha de montagem pré-determinada pelo mercado". É por isso que mesmo movimentos culturais que tentam burlar a busca pela beleza e eterna juventude são rapidamente cooptados, tornando-se, eles mesmos, novos objetos de consumo.

    MEDICINA NO SALÃO DE BELEZA O cuidado com o corpo, exercício da vontade individual, adentra o mundo da medicina. A estética invade ostensivamente o campo da saúde, promovendo o que o sociólogo da Fiocruz chama de estetização da saúde. "Nos dias atuais os pacientes-consumidores tornam-se responsáveis pela administração contínua de sua própria saúde por meio de conhecimentos médicos, psicológicos e farmacêuticos adquiridos nos meios de comunicação de massa.

     

     

    Ética, estética e saúde pública se confundem". Um dos cirurgiões, em texto publicado na página da Sociedade, é explícito: "nossa especialidade é muito mais do que cirurgia, é psiquiatria cirúrgica, cirurgia psiquiátrica, máquina de ilusões, oficina de fantasias, armazém da juventude, fábrica de sonhos". Ao mesmo tempo em que ignora aspectos subjetivos dos pacientes, tratando o corpo como máquina a ser aperfeiçoada e adaptada, o discurso da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica assume que os profissionais dessa especialidade, lidam com o imaginário, com sintomas que não estão inscritos no corpo, mas fora dele. A cirurgia plástica tenta transformar um corpo biológico em um corpo imaginado, um corpo que é puro desejo. Cabe então perguntar: a medicina estética ainda é medicina?

     

    Patrícia Mariuzzo