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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.3 São Paulo  2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000300020 

    LITERATURA

    Livro traz 333 histórias de borges vividas por ele mesmo

     

    Jorge Luis Borges criou vários dos personagens mais marcantes da literatura. Mas ele mesmo poderia ser um dos personagens fantásticos de suas histórias: sua vida foi recheada de casos, alguns cômicos, outros trágicos e muitos surreais. E esses casos (333 deles, para usar de precisão) foram compilados pelo escritor e jornalista argentino Mario Paoletti no livro O outro Borges – anedotário completo, lançado recentemente na Argentina pela editora Emecé.

    A maioria dos casos contados no livro trata das opiniões fortes, incisivas – e muitas vezes irônicas e engraçadas – do autor sobre política, religião, literatura e outros assuntos polêmicos. Como uma das vezes em que Borges foi criticado por um leitor, que disse que ele era "um blefe", ao que o escritor respondeu: "sim, mas leve em conta que é involuntário", ou quando, durante uma entrevista à revista portenha Siete Dias, em 1973, ele é questionado sobre as modalidades de Estado e Borges defende a abolição do Estado e o anarquismo, complementando: "Mas não sei se somos suficientemente civilizados para chegar ali". Outros casos, porém, relatam situações da vida cotidiana do autor, algumas bem engraçadas, como quando entra por engano em uma casa onde está sendo celebrado um casamento, acreditando que ali era o local em que deveria proferir uma palestra: o escritor só percebe o erro quando os noivos chegam.

    O livro se torna ainda mais interessante pois ajuda a desvelar um pouco da vida de Borges, um dos escritores latinos de maior expressão mundial, e que afirmava: "não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção". Miriam Garate, professora de literatura comparada da Unicamp, explica: "embora aspectos da vida pessoal de Borges vinculados à linhagem familiar, a antipatias políticas, a círculos culturais e opções estéticas que respeitava ou que desprezava compareçam de fato em suas obras, não devemos desconsiderar que se trata de criações e não de representações diretas". Um exemplo desse simbolismo citado pela pesquisadora é que, em seus três primeiros livros de poesia e em alguns ensaios de juventude, as cores esvaídas dos muros, ora celestes, ora rosados, evocam as lutas entre unitários (azuis) e federais (vermelhos) do século anterior.

    Borges foi escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta. Durante sua vida, publicou mais de 40 obras em vários gêneros literários. Mas não é sua alta produtividade ou sua versatilidade que fizeram com que o autor conquistasse prêmios, reconhecimento internacional e o posto de cânone da literatura. O que mais chama a atenção nas obras de Borges é seu estilo único, capaz de fundir gêneros diversos, ficção e realidade, vida pessoal e política num trabalho que impressiona por seu traço difícil de ser rotulado. "Embora seja difícil definir sua obra a partir de um único fator, diria que a leitura enquanto operação que determina a escrita, enquanto ato que desvia e recria tradições, gêneros literários, tipos de discursos, sentidos instituídos, é a marca indelével da produção borgiana. Borges transtornou hierarquias, papéis e funções graças a um modo peculiar de ler e de escrever essas leituras", aponta Miriam.

     

     

    Nascido em Buenos Aires em 1899 e bilíngue desde a infância (era fluente em inglês e espanhol), aos seis anos de idade já estava decidido a seguir a carreira literária e informou o pai que queria ser escritor. Aos sete, escreveu, em inglês, um resumo de literatura grega. Aos oito, inspirado num episódio de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, fez seu primeiro conto, La visera fatal. Aos nove anos, traduziu do inglês O príncipe feliz, de Oscar Wilde. Com 15 anos muda-se com a família para a Suíça, onde faz seu bacharelado e inicia oficialmente sua vida de escritor: sua primeira publicação registrada foi uma resenha de três livros espanhóis para um jornal de Genebra, além de escrever alguns poemas em francês. Com 22 anos volta à sua terra natal, redescobrindo Buenos Aires na efervescência cultural dos anos 20 e escrevendo seu primeiro livro de poemas, Fervor em Buenos Aires.

    Os primeiros trabalhos de Borges foram poesias e ensaios. Já nessa primeira fase da carreira do autor é possível perceber seu estilo único. "Borges era dono de uma erudição fenomenal. Transitava por várias línguas, possuía um patrimônio literário único, dominava vários gêneros. E isso transparece em sua obra", destaca Sergio Miceli, professor de sociologia da USP e editor da revista Tempo Social da universidade. Suas primeiras poesias se colocavam contra a tradição poética argentina, que eram ainda muito ligadas ao simbolismo e ao decadentismo franceses e tinham seu maior representante em Leopoldo Lugones. Borges opõe-se fortemente à essa tradição, e até mesmo ao próprio Lugones. Sua produção apresenta um forte tom nacionalista que caracterizava o esforço das vanguardas de identificação da especificidade local, mostrando uma orgulhosa recusa da norma culta do espanhol e empregando repetidamente argentinismos e expressões orais. Assim, ele desafia a tradição, incorpora aspectos da vida social e política da Argentina que não apareciam na produção literária da época, traz novos elementos que desafiam os leitores, e até mesmo outros escritores contemporâneos a ele, para uma mudança. "Ele responde ao desafio da geração para atuar como porta-voz político deste anseio", aponta Miceli.

     

     

    Nas décadas de 1940 e 1950, o escritor passa das poesias e ensaios para os contos fantásticos. É nesse período que escreve seus livros mais famosos, Ficções (1944) e O Aleph (1949), e é finalmente reconhecido como um dos maiores escritores da época. Nas obras desse período, Borges entrelaçava discuções metafísicas, mitológicas e teológicas em verdadeiros labirintos lógicos e jogos de espelhos. Muitas vezes, o autor desliza aspectos da vida real para contextos incomuns, ou então de acontecimentos bizarros para contextos totalmente prosaicos, fazendo com que toda a narrativa ganhe novos significados. Garate aponta que algumas dessas características se tornaram comuns no gênero de narrativa fantástica, mas que é preciso ressaltar o pioneirismo do escritor argentino: "muitos desses traços se tornaram 'moeda corrente' na literatura dos anos 1980 em diante, mas é preciso lembrar que Jorge Luis Borges começa a escrever, inicialmente, poesia e ensaio, na década de 1920, e que seus textos narrativos 'canônicos' datam dos anos 40-50".

    Sua fama internacional se consolidou na década de 1960. Ele, mais que qualquer outro escritor latino-americano, alcançou um lugar único, sendo traduzido e publicado extensamente nos Estados Unidos e na Europa. Ele recebeu prêmios e títulos dos governos da Itália, França, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, inclusive o prêmio Formentor do Congresso Internacional de Editores, em 1961. Segundo Miceli, o grande segredo de Borges era justamente fazer com maestria a "mixagem" entre gêneros literários, como ensaio e ficção. "Ele domina todos os macetes literários, brinca com a linguagem. E isso fascina o leitor", aponta Miceli.

    Mas Borges também enfrentou críticas ferrenhas à sua obra. Porém "mesmo a geração de escritores e intelectuais argentinos, imediatamente posterior a Borges, conhecida como 'geração parricida', ao escrever contra ele continuou conferindo-lhe uma posição chave", aponta Miriam. De qualquer forma, a literatura argentina – e até mesmo a literatura mundial – não seria a mesma sem as intervenções criativas e subversivas do autor. Miriam Garate explica: "Borges fez do tradutor um autor e das traduções um testemunho da conjuntura estética dos idiomas de destino; da metafísica um ramo da literatura fantástica; imprimiu ao ensaio um andamento narrativo; fez do conto um discurso reflexivo ou crítico; reinventou alguns textos canônicos da literatura argentina ou alterou seu lugar na tradição, deu tratamento literário a inscrições pintadas em carroças de subúrbio e fez dos avatares de um jogo de cartas uma metáfora da eternidade".

    O final da vida de Borges foi igualmente digno de suas personagens: o escritor, amante dos livros, que sonhava com a biblioteca perfeita, aos 56 anos foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, que continha mais de 800 mil livros. Mas, na mesma época, perdeu totalmente a visão. Terminou seus dias cercados por livros que não poderia ler, até morrer em 1986, aos 87 anos.

     

    Chris Bueno