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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.3 São Paulo  2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000300021 

    OUVINDO A LEITURA

    Nova tecnologia expande os sentidos para o ato de ler

     

    "... ouvi um cão latir ao longe. Outros latidos foram respondendo, até que, trazido pelo vento que agora soprava de leve sobre o Passo, chegou aos meus ouvidos um urro selvagem, que parecia vir de muito longe, tão longe quanto a imaginação pode alcançar". Esse é um dos trechos de Drácula, de Bram Stoker. A descrição tenta compor um cenário sombrio, com uivos, latidos, o som do vento, mas deixa parte dessa tarefa para o leitor, para onde sua imaginação puder alcançar. O trecho destacado foi retirado de uma versão eletrônica de Drácula, feita para e-readers, uma entre tantas novidades que as tecnologias de comunicação trouxeram para o mundo dos livros. Nesse suporte o leitor pode ir além do texto, acessando links na internet relacionados ao conteúdo da obra, fazer anotações, ou comentar sobre o que está lendo nas redes sociais.

    Uma das novidades tecnológicas mais recentes é um aplicativo que produz ambientes sonoros para livros. Sincronizado com trechos das obras, o booktrack, nome dessa tecnologia, propõe uma espécie de trilha sonora para a leitura. Com o aplicativo, ao ler o trecho acima, ouviríamos o latido do cão ao longe, o som do vento, os uivos. Mas, que efeitos isso teria em nosso modo de ler? Como fica nossa capacidade de imaginar, de compor um cenário a partir da leitura?

    O filósofo e psicanalista André Martins, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não acredita que essas tecnologias afetem nossa capacidade de imaginar. Para ele, tal receio é análogo ao que tivemos quando surgiram os primeiros livros ilustrados, ou quando o cinema floresceu. "A imaginação sempre existirá com toda a sua potência. E, certamente, se a novidade das trilhas sonoras de livros pegar, passará a haver uma grande inventividade na criação de trilhas para os mesmos livros, ou mesmo a opção de cada leitor criar sua própria trilha", diz. "Além do mais, não penso que os e-books substituirão os livros; apenas tendem a ser uma nova mídia, que proporcionará prazeres diferentes, e não uma mídia substituta, que extinga a anterior", complementa.

    O LIVRO NA HISTÓRIA Leitura, livros e leitores mudaram ao longo do tempo e continuam mudando. Novos suportes como os tablets, livros eletrônicos e trilhas sonoras, são parte dessas mudanças. A Ilíada e a Odisséia, do século VIII a.C., atribuídas ao poeta grego Homero, são poemas para serem declamados e não lidos. Isso porque a sociedade antiga se apoiava no discurso oral e não no texto. Pequenas tábuas, tecidos, conchas, pedras, cerâmica, tantos foram os suportes utilizados para escrever e para ler, cada um deles implicando em diversos modos de organização do texto e imagens, em diferentes posturas corporais e formas de construir significados a partir da leitura. "A nossa imagem dominante do que é um livro está, sobretudo, associada ao formato de livro que mais sucesso teve na história humana até hoje: o códice, um conjunto de cadernos com folhas costuradas umas às outras", explica André Belo, historiador da Universidade Rennes 2, Paris, França. Para ele, o fato de haver uma trilha sonora não parece decisivo para mudar o estatuto do livro, enquanto objeto.

    As características do livro têm se mostrado bastante estáveis. Na passagem para o livro impresso no século XV, por conta da invenção da imprensa por Gutemberg, são herdadas as características do livro manuscrito, como a estrutura de páginas, colunas e linhas, capítulos etc. No livro A aventura do livro: do leitor ao navegador, o historiador francês Roger Chartier, afirma que a impressão de Gutemberg não cria um objeto novo nem estabelece uma nova relação com a leitura, como aconteceu com o aparecimento do códice. Já o livro eletrônico modifica a maneira de ler porque, além das relações sensoriais, ele também possibilita leituras além do livro, links, compartilhamento e várias outras possibilidades que o conteúdo imerso na internet pode propiciar.

    Para André Belo, a relação entre mudanças tecnológicas e mudanças na experiência da leitura é uma questão fundamental. "Suspeito que o fato de estarmos crescentemente ligados a várias fontes de informação ao mesmo tempo: texto, som, vídeo etc, traga consequências empobrecedoras para a nossa capacidade de concentração", afirma o pesquisador. "Tenho tendência a associar-me ao que defende Nicholas Carr, professor do Massachusets Instituto of Technology, que tem chamado a atenção para os riscos do 'multitasking'. Para Carr, isso afeta a nossa memória mais profunda, que é também a mais criativa e a que melhor consegue fazer a indispensável triagem entre informação indispensável e supérflua. Sem reacionarismos, ou seja, sem estar contra os avanços tecnológicos, que têm aspectos muito enriquecedores, é preciso saber desligar o botão regularmente... O que não é fácil", acredita.

     

     

    UM IMAGINÁRIO DA LEITURA Um caminho promissor para a compreensão dos impactos das tecnologias no mundo da leitura talvez seja admitir vários tipos de leitores, vários tipos de leituras convivendo simultaneamente. Para o presidente da Associação de Leitura do Brasil (ALB), Antonio Carlos Amorim, "é certo que a leitura estimula a imaginação, assim como o fazem o cinema, e, em certa medida, as práticas culturais baseadas na oralidade". Ele aponta, no entanto, que a leitura participa da circulação de um conjunto de significações culturais que constituem imaginários sociais. "Os sujeitos leitores, em contato com imagens, sons e odores, por exemplo, entrarão em contato com a leitura do livro em atravessamentos vários e distintos daquele suposto envolvimento da leitura silenciosa ou em voz alta das letras impressas em papel. E tal situação pode significar mais uma abertura do que uma restrição à experiência leitora, que estimula ou permite ou valoriza a imaginação", afirma.

    Há que se pensar também se livros eletrônicos ou trilhas sonoras em obras literárias são capazes de atrair novos leitores ou se apenas trariam mudanças no modo de ler para aqueles que já são leitores. "Penso que nesta questão continua a ser decisivo o papel de instituições como a escola, da aprendizagem precoce da leitura e da escrita e o ambiente familiar e social em que crescemos", afirma André Belo. Para ele, e-books, computadores etc, surgem mais tarde, e mesmo quando são introduzidos mais cedo, eles funcionam como complemento de uma relação com o escrito que se aprende primeiro noutros suportes e com intermediários como os professores e os pais. Para Antonio Carlos Amorim, da ALB, em uma sociedade que prima o multisensorial e a experiência do efêmero e do inusitado, essas tecnologias serão efetivamente capazes de atrair novos leitores.

     

    Patrícia Mariuzzo