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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.3 São Paulo  2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000300022 

    RESENHA

    Jesus na Disneylândia e os quatro cavaleiros do ateísmo

     

    O embate entre teorias geocêntricas e heliocêntricas, as discussões entre criacionistas e evolucionistas e as polêmicas sobre clones animais e humanos e sobre a utilização de células troncos em pesquisas são apenas alguns dos vários pontos de conflito entre religião e racionalidade científica. Entusiastas da ciência já chegaram a acreditar, inclusive, que o constante progresso científico levaria ao declínio da religiosidade e a sua substituição por uma sociedade cada vez mais racional e cética. Essa hipótese, intitulada "secularização", é apenas em parte correta, pois o período atual é marcado tanto pelo enfraquecimento do poder de influência de religiões tradicionais, como é o caso da Igreja Católica no mundo, como pela multiplicação de movimentos evangélicos, no exemplo brasileiro, e pelo fortalecimento de práticas religiosas fundamenta-listas. Diante de constatações como essas, uma questão que se mostra importante é saber de que forma o progresso da ciência e o advento da pós-modernidade alteram a crença e a fé religiosa.

    Algumas respostas a essa questão podem ser obtidas através da análise em conjunto de duas obras ao mesmo tempo contraditórias e complementares: o documentário Os quatro cavaleiros do ateísmo (Discussions with Richard Dawnkins – Episode 1: The four horsemen), gravado em 2007 e lançado em 2008, e o livro Jesus in Disneyland: religion in post-modern times, do sociólogo David Lyon, publicado em 2000 na Inglaterra pela Polity Press e em 2002 na Espanha pela editora Cátedra (tradução de Marco Aurelio Galmarini). David Lyon, sociólogo britânico radicado no Canadá, é conhecido internacionalmente por ser um dos principais teóricos da atual "sociedade da vigilância", em que o cotidiano é cada vez mais monitorado e controlado através de dispositivos eletrônicos como as câmeras de vigilância por vídeo. Apesar da maior parte dos seus escritos tratar de assuntos relacionados à sociedade da informação e a reflexões sobre tecnologias de monitoramento e de segurança, o autor fez uma pausa na sua produção científica usual para se dedicar a um livro em que discute, de forma bastante original, a religião nestes tempos pós-modernos. Diferente da maioria dos pesquisadores em ciências humanas, Lyon se coloca abertamente como um religioso ou, pelo menos, como um cientista que busca aliar suas reflexões científicas a suas orientações religiosas. Já o documentário supracitado traz um diálogo entre quatro pensadores destacados por suas convicções ateístas. São eles: o biólogo Richard Dawnkins, o filósofo Daniel Dennett, o neurocientista Sam Harris e o jornalista Christopher Hitchens (falecido em 15 de dezembro de 2011 aos 62 anos, vítima de complicações decorrentes de um câncer no sistema digestivo). Sentados em volta de uma mesa os quatro cientistas, por duas horas, discutem de modo informal questões diversas envolvendo ciência e religião e dão destaque às reações que obtiveram às publicações de seus livros ateístas.

    O livro e o documentário trazem indagações comuns, mas com respostas diferentes. Nas duas obras é questionado, por exemplo, se o mundo seria melhor sem as religiões e se as religiões estariam entrando em declínio. Lyon é um otimista quanto à permanência da religiosidade no período atual, mesmo que às custas do enfraquecimento da religião como instituição. A reflexão proposta pelo sociólogo é embasada numa discussão sobre as características da pós-modernidade, definida pelo autor como a conjunção do consumismo (daí o título Jesus in Disneyland) à sociedade interligada por redes de informação. Na atualidade, as religiões tradicionais se veem diante de um impasse: adaptar-se às novas tendências, às custas da negação de alguns de seus dogmas, ou resistir às inovações e correr o risco de serem taxadas de retrógradas. Enquanto as religiões resolvem esse dilema, muitos fiéis têm buscado respostas cada vez mais individuais para suas questões religiosas. Lyon aponta o atual fenômeno de "bricolagem religiosa" como um importante indício de que a pós-modernidade tem alterado as práticas religiosas, mas não tem necessariamente minado a religiosidade dos indivíduos. Os fiéis extraem de religiões diversas aquilo que os interessa, mas sem obrigatoriamente se comprometer com apenas uma delas. No caso brasileiro, um exemplo que ilustra a ideia proposta pelo autor seria a adesão de muitos católicos a rituais de outras religiões como o caso de passes espíritas ou de consulta a benzedores.

    Já os "quatro cavaleiros", mesmo que reconhecendo, em alguns momentos, a importância das religiões como fortalecedoras de laços sociais, trazem posicionamentos mais radicais contra as explicações e teorias fundamentadas em bases religiosas. Um dos alvos de suas críticas são aqueles cientistas que vivem uma vida dupla: durante a semana conduzem a vida segunda a lógica racional da pesquisa acadêmica, mas aos fins de semana praticam uma fé religiosa que se contrapõe aos preceitos racionais científicos. O que David Lyon faz é justamente o contrário, pois seu livro revela um interesse de união entre suas crenças religiosas e suas reflexões científicas. Já os quatro pensadores, por sua vez, colocam-se como uma espécie de pregadores às avessas, pois têm o objetivo de despertar a sociedade para as possíveis vantagens trazidas pelo pensamento livre de preceitos religiosos.

    Enquanto o documentário foi feito seis anos depois dos atentados às torres gêmeas, o livro foi escrito ainda antes desse fenômeno de importância fundamental para a discussão sobre ciência e religião nos dias de hoje. Caberia, portanto, uma atualização do livro não somente em relação a esse fato, mas também no que diz respeito à influência das redes sociais nas práticas religiosas atuais. O texto de Lyon, mesmo que faça bastante referência à internet, foi escrito antes do advento de plataformas digitais como o Facebook ou Twitter. De que forma essas redes têm alterado aquilo que Lyon chama de "ciberigreja" é uma indagação que o livro suscita no leitor, mas é incapaz de responder. Mesmo assim, Jesus in Disneyland continua atual e sua leitura certamente será proveitosa para o entendimento da religião no Brasil, de seus sincretismos, da atual força dos movimentos evangélicos e até mesmo para a compreensão do fenômeno dos padres católicos "pop-stars" como o padre Marcelo Rossi e, mais recentemente, o padre Fábio de Melo. O documentário, por sua vez, apesar de bastante controverso para os crentes mais ortodoxos, merece ser assistido pela defesa, que é ali feita, por um pensamento livre e aberto à discussão.

    Do sociólogo David Lyon recomenda-se também a leitura dos livros: Surveillance studies: an overview (Polity Press) e The electronic eye: the rise of surveillance society (University of Minnesota Press). Dos quatro cavaleiros do ateísmo, seus livros mais discutidos e polêmicos são: Deus, um delírio (Cia das Letras), de Richard Dawkins, O fim da fé (Tinta da China), de Sam Harris, Deus não é grande (Ediouro), de Christopher Hitchens, e Quebrando o encanto (Globo), de Daniel Dennett.

     

    Lucas Melgaço

    é doutor em geografia humana em cotutela de tese entre a Universidade de São Paulo e Universidade de Paris 1 – Panthéon Sorbonne. Atualmente é pesquisador e professor da Queens University no Canadá e da Vrije Universiteit Brussel na Bélgica.