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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400011 

     

    The West and the Rest. Reflexões sobre uma década de "Guerra contra o terror"

    Daniel Pinéu

     

    Os fatídicos acontecimentos do 11 de setembro assumiram um status icônico na narrativa da modernidade ocidental: a sua presença não pode ser negada, nem ignorada. No entanto, mais do que falar dessa presença óbvia, ou do impacto dessa data na política externa americana, o objetivo deste breve artigo é chamar a atenção para as ausências e silêncios da última década no que toca ao 11 de setembro e às suas consequências políticas. Especificamente, o objetivo é de complexificar a narrativa do 11 de setembro, alargando-a no tempo e no espaço, e tentar pensar a década pós-11 de setembro de uma perspectiva descentrada – isto é, uma perspectiva diferente das narrativas dominantes nos centros de poder do mundo ocidental(1).

    Uma das narrativas dominantes é precisamente a de que o 11 de setembro pertence ao cânone histórico americano, e – secundariamente – ao cânone histórico do "Ocidente". Desse ponto de vista, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 inserem-se na memória coletiva dos cidadãos do "Norte global" dentro de uma linha de acontecimentos extraordinários que afetaram o curso da história americana, como o ataque a Pearl Harbour em 1941. Esta singularização e "americanização" dos ataques tornou-se uma narrativa de tal forma dominante nos discursos políticos e midiáticos da última década que efetivamente "apagou" outros pontos de referência históricos, geográficos e políticos(2).

     

     

    A narrativa dominante sobre os ataques do 11 de setembro, e toda a iconografia que a rodeia, centrou-se quase exclusivamente na destruição das Torres Gêmeas – com os aviões a embater, os corpos a caírem do edifício, as torres a ruir, os nova-iorquinos cobertos de cinzas. Esta tendência reduz um processo extraordinariamente complexo, longo e global, aos terríveis eventos de um dia; e elide uma série de acontecimentos politicamente salientes – como a longa confrontação entre os EUA e a al-Qaeda desde 1992 (3), o assassinato de Ahmed Shah Massoud, as várias mensagens de Osama bin Laden, ou a promulgação do Patriot Act – numa só imagem (4).

    Mas as consequências dos ataques vão muito além da tragédia nova-iorquina, ou norte-americana. Efetivamente, a esmagadora maioria das vítimas do 11 de setembro provém da Ásia do Sul, mas países como o Afeganistão e o Paquistão foram desde o início caracterizados como os pontos de origem da violência terrorista, e não como as suas maiores vítimas. Infelizmente, e ao contrário dos números das vítimas dos atentados em si – 3066 (5) – não há estatísticas confiáveis e sistemáticas para o número de civis mortos no Afeganistão e no Paquistão como resultado das operações norte-americanas e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em resposta ao 11 de setembro. No entanto, as estatísticas de que dispomos sugerem um número não inferior a 3000 vítimas civis por ano no conjunto desses países (6). Isso significa, portanto, mais de 30 mil civis mortos nessa região, como resultado do 11 de setembro, das estratégias regionais da al-Qaeda e da "Guerra contra o terror" desencadeada pelos EUA. Em resposta a pressões americanas, em 2009 e 2010 o governo do Paquistão lançou várias ofensivas militares na região fronteiriça com o Afeganistão (7), resultando em mais de 2,7 milhões de deslocados internos (IDP's) (8). Em comparação, podemos então perguntar: onde estão os memoriais – as estátuas, os documentários, os discursos sentidos de políticos europeus, as peças de teatro e filmes – dedicados a essas outras vítimas de uma mesma tragédia?

    Os acontecimentos do 11 de setembro tiveram, no entanto, outras consequências, eventualmente tão ou mais nefastas, a longo prazo, que a trágica perda de vidas de civis "apanhados" entre as estratégias dos EUA e de uma série de grupos extremistas, incluindo a al-Qaeda. Uma dessas consequências foi o (re)aparecimento de um discurso de confrontação entre o "Ocidente" e o mundo islâmico (9), e uma série de narrativas sobre os perigos do Islã político – se quisermos, a ideologização ou culturalização da guerra contra o terrorismo. Visto dessa perspectiva, os fatores que mais cabalmente explicam os atentados, e atos terroristas em geral, não são os percursos biográficos dos seus autores, nem dinâmicas de grupo que levaram a radicalização e eventualmente ao uso de violência, nem agravos políticos legítimos, e sim fatores "culturais" como ideologia ou religião – muitas vezes entendida de forma simplista (10). Esta perspectiva – que resultou numa verdadeira indústria acadêmica de "peritos", muitas vezes de credenciais intelectuais duvidosas, sobre o Islã político e/ou terrorismo (11) – teve várias consequências funestas, entre elas a indelével associação entre terrorismo e Islã político (12).

    Outra grave consequência a longo prazo dos ataques do 11 de setembro e da "Guerra contra o terror", global mas sentida desproporcionalmente por muçulmanos, foi o que poderíamos chamar o reordenamento legal global, baseado num ethos excepcionalista – a ideia que medidas extraordinárias e porventura ilegais são necessárias e justificadas para garantir a segurança de Estados ocidentais, ainda que às expensas das liberdades civis dos cidadãos (13). A última década trouxe-nos um triste número de episódios específicos que ilustram essa tendência excepcionalista. Entre estes, contam-se os abusos dos direitos humanos e o uso de tortura em Guantánamo e Abu Ghraib, uma série de assassinatos extrajudiciais – incluindo o de bin-Laden e do seu filho Khalid, bem como o do cidadão americano Anwar al-Awlaki e do seu filho Abdul Rahman –, e números indeterminados de "rendições extraordinárias".

    Significativamente, os dez anos de "Guerra contra o terror" evidenciaram também a tendência crescente para qualificar a soberania de Estados, em particular Estados de maioria muçulmana (Iraque, Afeganistão, Paquistão, Iémen, Somália) – empregando conceitos como Estados frágeis ou falhados – legitimando assim uma série de pressões e intervenções, muitas vezes violentas, por parte de Estados liberais ocidentais, liderados pelos EUA.

    No Paquistão, por exemplo, os EUA implementaram, desde 2004, uma política de ataques a alvos da al-Qaeda e dos talibans paquistaneses (Tehrik-e-Talieban ou TTP) através de veículos aéreos não-tripulados (drones), sob a liderança da CIA (14). Até agora ocorreram mais de 310 ataques, que resultaram num número de vítimas estimado entre 1800 e 2900 (15). O impacto desses ataques na opinião pública e na segurança da população paquistanesa, bem como no comportamento e estabilidade do governo democraticamente eleito do Paquistão, não pode nem deve ser descontado. O governo de Asif Ali Zardari encontra-se numa posição extremamente precária – entre as pressões do estabelecimento militar, afastado do poder pela primeira vez em décadas; dos setores políticos e religiosos mais radicais; e as pressões americanas derivadas da estratégia da "Guerra contra o terror". E se, por um lado, não pode simplesmente virar as costas aos aliados norte-americanos, por outro lado também não pode ignorar violações egrégias da sua soberania, nem o crescente descontentamento popular com as notícias diárias de mortes de civis nas regiões fronteiriças. Mais recentemente, o assassinato de bin-Laden em solo paquistanês, por elementos das forças especiais norte-americanas, levantou novamente questões sobre a legalidade e as consequências a longo prazo de tais ações. Do ponto de vista norte-americano, essas iniciativas foram cruciais para a prossecução da "Guerra contra o terror", e os seus qualificados sucessos contra a al-Qaeda justificam não só os custos humanos, mas também a inexorável deterioração da relação com o Paquistão, o aliado mais crucial na região. A perspectiva paquistanesa sobre a "guerra contra o terrorismo" nunca é, portanto, levada seriamente em conta, ou sequer estudada, sobretudo a perspectiva dos cidadãos do Paquistão – que, contra todas as probabilidades, conseguiram uma democratização pacífica do seu país e, no geral, têm demonstrado uma notável moderação no comportamento eleitoral.

    Outro exemplo dessa separação radical de perspectivas, e de ignorância relativamente ao contexto local, foi o pânico evidenciado pela mídia e pela liderança política e militar norte-americanas, em 2009, relativamente a uma putativa tomada de poder dos talibans no Paquistão, uma fantasia absolutamente implausível e arredada das realidades daquele país. Como observa astutamente Manan Ahmed (16), esse medo norte-americano/ocidental está baseado numa "versão comicamente exagerada da realidade":

    Existem cerca de 400 a 500 combatentes talibans paquistaneses na região de Buner (...) e 15.000 a 20.000 em operação na região entre Peshawar e o noroeste da fronteira do Paquistão. Entretanto, o contingente na ativa do exército paquistanês está em cerca de 500.000, financiados por um orçamento anual de aproximadamente US$4 bilhões. (...) Como ameaça a uma imensa e diversa nação-Estado, em que 40 porcento da população vive em centros urbanos como Karachi (com seus 18 milhões de habitantes), os combatentes talibans rurais não são terrivelmente intimidadores. O Paquistão não é nem a Somália nem o Sudão, nem mesmo o Iraque ou o Afeganistão. É um Estado completamente moderno com vasta infraestrutura; com uma mídia verdadeiramente crítica e diversa; uma economia ativa, global; e com fortes laços com os poderes regionais, como a China e o Irã. Não é um "Estado falido"— já pagou inclusive as suas dívidas com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, à custa do fornecimento de eletricidade aos seus cidadãos. Possui uma burocracia civil profundamente arraigada. A retórica do "Estado falido" obscurece essas realidades. Ela esconde o fato de que os partidos com bases religiosas nunca terem conseguido garantir mais do que 10 porcento dos assentos em qualquer eleição (16).

    As análises midiáticas, e uma larga maioria das análises acadêmicas, nas capitais europeias e norte-americanas caem no mesmo erro, apenas reconhecendo agência aos terroristas ou aos indivíduos e organizações envolvidos na "Guerra contra o terror", e caracterizando regularmente os cidadãos e países no Sul global como incapazes de resistir ou lutar contra o extremismo e o terrorismo nos seus próprios termos. Se os acontecimentos da última década demonstram alguma coisa, é que essa perspectiva eurocêntrica dominante e a subalternização dos conhecimentos, práticas, aspirações e projetos do outro que ela implica, ainda que eventualmente apelativa pela simplicidade, limita severamente o nosso entendimento do complexo contexto político da "Guerra contra o terror", e da segurança internacional em geral. A nossa responsabilidade – enquanto analistas políticos, mas também enquanto cidadãos – passa por desenvolver um espírito mais crítico, por desenvolver narrativas mais descentradas e menos estereotipadas.

     

    Daniel Pinéu é membro do Conselho Científico do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e pesquisador associado da Escola de Política e Relações Internacionais da Universidade Quaid-i-Azam em Islamabad, no Paquistão.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Para um ótima introdução a este tipo de perspectiva, e a sua aplicação às relações internacionais, cf. Nayak, Meghana, e Eric Selbin. Decentering international relations. London: Zed Books. 2010.

    2. Um claro exemplo desta tendência é a forma como a própria expressão "11 de setembro" ou "9/11" se tornou unívoca, apagando qualquer referência histórica a qualquer outro 11 de setembro, como por exemplo a data do golpe de estado no Chile que derrubou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e instalou a ditadura do Gen. Augusto Pinochet, com o apoio cúmplice do governo de ­Nixon ­(Maxwell, Kenneth. "The other 9/11 – the United States and Chile, 1973". In: Foreign Affairs 82: 147. 2003.

    3. O primeiro ataque contra interesses dos EUA reivindicado pela al-Qaeda ocorreu em dezembro de 1992, em Aden, no Iêmen. Entre 1992 e 2001, a al-Qaeda reivindicou ainda os ataques contra as embaixadas dos EUA em Nairobi (Kenya) e Dar-es-Salaam (Tanzânia), e o ataque contra o navio de guerra americano USS Cole, estacionado no porto de Aden. Os EUA atribuem ainda à al-Qaeda a autoria ou pelo menos cumplicidade em vários outros ataques (incluindo ataques falhados e/ou frustrados pelos serviços de segurança), em particular a primeira tentativa contra as Torres Gêmeas, em fevereiro de 1993.

    4. Uma imagem de tal forma poderosa que efetivamente secundarizou ou apagou, na memória coletiva, outros aspectos do 11 de setembro, incluindo o ataque contra o Pentágono, e o ataque falhado devido à coragem dos passageiros do voo da United Airlines 93, que se despenhou num descampado da Pensilvânia.

    5. Conforme as estatísticas oficiais apresentadas no relatório final da Comissão do 11 de Setembro.

    6. Por exemplo, e segundo dados das Nações Unidas, só em 2009 e só no Afeganistão foram mortos ou feridos 5978 civis (2412 mortos confirmados, dos quais um quarto – 596 ou 25% – foram mortos por forças da Otan ou do governo afegão). Em 2010 foram mortos 2770 civis, 440 dos quais (16%) por forças governamentais ou da Otan, e 2080 (75%) por forças anti-governamentais. No Paquistão, as estimativas de civis mortos por atentados terroristas em 2009 oscilam entre os 2123 e os 2670 (Civic - Civilian Harm and Conflict in Northwest Pakistan. Disponível em: http://www.civicworldwide.org/storage/civicdev/documents/civic%20pakistan %202010%20final.pdf. [Consultado em 20 julho 2011], p. 13).

    7. Vide Roggio, Bill. "Taliban and Pakistan military battle in Swat". In: Long War Journal. Disponível em: http://www.longwarjournal.org/archives/2009/05/ taliban_and_pakistan.php [Consultado em 20 julho 2011] , e ainda Pande, Aparna. Explaining pakistan's foreign policy: escaping India. London/NY: Routledge. p. 79. 2011.

    8. HRCP (Human Rights Commission of Pakistan). Internal displacement in Pakistan: contemporary challenges. Disponível em: www.hrcp-web.org/pdf/Internal%20Displacement%20in%20Pakistan.pdf [Consultado em 20 julho 2011] .

    9. Por exemplo, Bawer, Bruce. While Europe slept: how radical Islam is destroying the West from within. NY: Doubleday. 2006, ou Phillips, Melanie. Londonistan. NY: Encounter Books. 2007. No entanto, para análises críticas que desconstroem esta narrativa, cf. Halliday, Fred. Islam and the myth of confrontation: religion and politics in the Middle East. I. B. Tauris. 2002, e Dabashi, Hamid. Islamic liberation theology: resisting the empire. London/NY: Routledge. 2008.

    10. Marranci, Gabriele. Understanding Muslim identity: rethinking fundamentalism. Basingstoke: Palgrave Macmillan. pp. 2-4. 2009.

    11. Para uma análise desta perniciosa tendência, cf. Mueller, John. Overblown: How politicians and the terrorism industry inflate national security threats, and why we believe them. NY: Free Press. 2006, ou Jackson, Richard, Marie Breen Smyth, Jeroen Gunning, e Lee Jarvis. Terrorism: a critical introduction. Basingstoke: Palgrave Macmillan. pp. 11-14. 2011.

    12. Jackson, Richard. "Constructing enemies: 'islamic terrorism' in political and academic discourse". In: Government and Opposition 42 (3): 394-426. 2007; ver ainda Steuter, Erin e Deborah Wills. "Making the muslim enemy: the social construction on the enemy in the War on Terror". In: The routledge handbook of war and society. Ed. Stephen Carlton-Ford e Morton G. Ender. New York: Routledge. 2010.

    13. Para algumas boas discussões sobre o conceito de excepcionalismo aplicado à "Guerra contra o terror", cf. Aradau, Claudia, e Rens van Munster. "Exceptionalism and the 'War on Terror'." In: British Journal of Criminology 49 (5): 686 -701. 2009; Foot, Rosemary. "Exceptionalism again: the Bush administration, the 'Global war on terror' and human rights". In: Law and History Review 26 (3): 707-725. 2008; ou ainda Neal, Andrew W. Exceptionalism and the politics of counter-terrorism: liberty, security, and the War on Terror. London: Taylor & Francis. 2010.

    14. Vide Williams, Brian Glyn. "The CIA's covert predator drone war in Pakistan, 2004–2010: the history of an assassination campaign". In: Studies in Conflict & Terrorism 33 (10): 871-892. 2010.

    15. Conforme as estimativas apresentadas pela New America Foundation (New America Foundation. The year of the drone - an analysis of U.S. drone strikes in Pakistan 2004-2011. Disponível em: http://counterterrorism.newamerica.net/drones. [Consultado em 20 julho 2011] e considerando que as estatísticas são de julho de 2011.

    16. Tradução de trecho original em inglês extraído de Ahmed, Manan. Where the wild frontiers are: Pakistan and the american imagination. Charlottesville, VA: Just World Books. 2011.