SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.64 número4 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.4 São Paulo out./dez. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400017 

     

    A Turquia e a Primavera Árabe

    André Barrinha

     

    Ao contrário do que a visão comum da Turquia como "ponte" entre o Ocidente e o Oriente poderá deixar transparecer, a relação de Ancara com os seus vizinhos do sul, tem historicamente sido mais marcada pela desconfiança e antagonismo do que pela amizade e cooperação. Nos últimos anos, contudo, a Turquia tem apostado numa aproximação política, econômica e cultural aos países do Oriente Médio (1) no sentido de inverter esse padrão de relacionamento. A ascensão política do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) e o forte crescimento econômico que a Turquia tem vivido na última década ajudam a explicar essa mudança de atitude que, por sua vez, tem passado pelo estabelecimento de laços de confiança com os regimes políticos desses países. As revoluções da Primavera Árabe, que têm contribuído para a mudança do panorama político da região, levaram à deposição de alguns desses regimes com os quais Ancara mantinha um relacionamento estável, obrigando a Turquia a readaptar a sua estratégia para com o mundo árabe.  

    Neste artigo procuraremos analisar a evolução recente das relações entre a Turquia e os seus vizinhos do Oriente Médio, com particular destaque para o papel de Ancara no contexto da Primavera Árabe. Assim, começaremos por salientar as principais mudanças ocorridas na política externa turca desde o final da Guerra Fria, para em seguida analisarmos o período que decorre de 2002 até aos nossos dias, marcado pelo domínio político do AKP e, em termos internacionais, pela "doutrina Davutoglu", um conjunto de princípios desenvolvidos pelo ministro das Relações Exteriores da Turquia, Ahmet Davutoglu, que estão na base da atual orientação da política exterior turca. Por fim, olharemos para o papel que a Turquia tem desempenhado na Primavera Árabe, analisando até que ponto a mudança de regimes nessa região do mundo pode ou não levar à ascensão do país como o principal polo de poder na região.

    DE FRONTEIRA DA ALIANÇA ATLÂNTICA A POTÊNCIA EMERGENTE: A TURQUIA DO PÓS-GUERRA FRIA Surgida dos escombros de um Império Otomano dividido pelas potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial, a República Turca liderada por Mustafa Kemal "Ataturk" passou as suas primeiras décadas de existência negociando com o seu passado, tentando construir uma nova identidade nacional, distinta do passado otomano, o que implicou não só na redefinição do papel da religião no Estado, como no papel do Estado na região circundante, recém-independente de Constantinopla. Deixando para trás um vasto império assente no Islã, a Turquia era agora uma República laica, territorialmente restrita a pouco mais que a península da Anatólia. As reformas internas levadas a cabo por Ataturk foram vastas e profundas, como a declaração do fim do califado (1924) ou a definição de uma língua turca assente no alfabeto latino, pelo que a política externa turca tinha como preocupação central evitar que dinâmicas externas interferissem no processo de construção do Estado turco. A neutralidade turca durante a Segunda Guerra Mundial derivou exatamente dessa vontade em se manter afastada das externalidades negativas das relações internacionais.

    Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a redefinição da distribuição de poder no sistema internacional – com os EUA e a União Soviética assumindo-se como principais polos de dois blocos ideológicos antagônicos – a Turquia optaria pela adesão ao bloco ocidental. Na verdade, a Turquia revolucionária entrava agora numa fase de maior estabilidade interna, que levaria à abertura democrática com a realização de eleições regulares a partir de 1946. Externamente, a Turquia passava assim a ter um comportamento mais ativo, o que levaria à sua participação na Guerra da Coreia, em 1950, e dois anos mais tarde à proclamação da Doutrina Truman e consequente adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Em nível regional, a Turquia tentou uma aproximação às suas ex-colônias, através da criação de um acordo de segurança regional, o Pacto de Bagdá, assinado em 1955 (2). A recusa de vários países em fazer parte do mesmo demonstrou à Ancara que esta não era particularmente bem-vinda ao Oriente Médio.

    Com inimigos na fronteira ocidental (Grécia e Bulgária) e norte (União Soviética) e com um relacionamento limitado com os restantes países limítrofes, ao que se pode juntar um longo período de instabilidade política interna (que levou as forças armadas turcas a intervir por três vezes, entre 1960 e 1980, no rumo da vida política do país), a política externa turca durante a Guerra Fria foi sobretudo marcada por um comportamento reativo. Foi assim, por exemplo, no Chipre em 1974, onde sob o pretexto de proteger a minoria turca no país, a Turquia desencadeou uma operação militar que culminou na ocupação da parte norte da ilha, estando esta dividida até aos dias de hoje.

    O principal papel internacional que a Turquia desempenhou durante esse período foi, portanto, o de ponta-de-lança da Aliança Atlântica: uma fronteira fortificada contra a ameaça soviética. O fim da Guerra Fria e a desintegração do Bloco do Leste implicou também o fim desse papel da Turquia. Tal como a Otan, também a Turquia necessitava de um novo rumo. Com a exceção de aproximações pontuais aos recém-independentes países da Ásia Central, na primeira metade da década de 1990, e ao mundo muçulmano durante a curta vigência do governo liderado pelo partido islâmico, Refah de Necmettin Erbakan, entre 1996 e 1997, o relacionamento externo da Turquia foi sobretudo marcado por três vetores: manutenção dos laços com os EUA através da Aliança Atlântica, aproximação com Israel e conflito curdo. Se os dois primeiros vetores contribuíram para a estabilização da política externa turca nesse período, a questão do conflito curdo foi, sem dúvida, um fator de desestabilização interna e externa, ao ponto de ter colocado a Turquia à beira de um conflito com a Síria em 1998, devido ao apoio de Damasco ao movimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), em particular ao seu líder, Abdullah Ocalan. Também o relacionamento com Irã, Iraque e Grécia seriam afetados por essa questão.

    A TURQUIA DE ERDOGAN Se o período da Guerra Fria e do imediato pós-Guerra Fria foi marcado por uma agenda de segurança, uma confluência de três fatores contribuiu para uma alteração dessa mesma agenda: a prisão de Abdullah Ocalan, o relacionamento com a União Europeia (UE), e a vitória eleitoral do partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP). A prisão do líder do PKK em 1999 e a consequente declaração de cessar-fogo por parte desse movimento (que duraria até 2004) teve como consequência a secundarização dessa questão na agenda política interna e externa, possibilitando uma reaproximação com países vizinhos, sem a preocupação com o PKK como ponto de partida. Também a candidatura da Turquia à UE e a sua aceitação como candidata à adesão em 2004, levou a Turquia a enveredar por uma série de reformas internas para, assim, fazer face ao caderno de encargos exigido por Bruxelas. Levou também à consolidação das relações com a Grécia, com quem esteve perto da confrontação militar em 1996. Por fim, é preciso salientar a chegada ao poder do AKP, vencedor das eleições legislativas de 2002 com uma maioria relativa, que devido ao complicado sistema eleitoral turco permitiu a esse partido obter a maioria absoluta de deputados no parlamento e, assim, a formação de um governo forte, com capacidade para encetar não só as reformas exigidas por Bruxelas, como reformas adicionais que satisfizessem a sua base eleitoral socialmente conservadora, mas economicamente liberal.

    Permitiu igualmente a definição de uma estratégia de política externa, assente em princípios gerais, que passaram a guiar o posicionamento de Ancara no sistema internacional. Essa estratégia foi desenvolvida, em larga medida, pelo então assessor político do primeiro-ministro, Recep Tayip Erdogan, e pelo atual ministro das Relações Externas, Ahmet Davutoglu. Professor universitário em relações internacionais, Davutoglu escreveu em 2001 a obra que serve atualmente de base à atuação externa da Turquia. Nessa obra, Davutoglu destacava a importância da estabilidade regional para o desenvolvimento da Turquia, algo que só podia ocorrer através de uma política de "problemas zero" com os seus vizinhos. Para isso contribuiria uma abordagem geoeconômica das relações internacionais, em que as prioridades econômicas estariam no topo da agenda do relacionamento externo turco (3).

    E, na verdade, contrariamente ao que aconteceu durante as décadas precedentes, a política externa turca atual é fortemente marcada por uma agenda econômica em que a Turquia pretende garantir um bom relacionamento tanto com países ricos em recursos, particularmente os energéticos (como a Rússia e o Azerbaijão), como com países que sirvam de mercados para a pujante economia turca. A Turquia tem tido, na última década, um crescimento econômico de 4,62% ao ano (4), tornando-se a 16º maior economia do mundo (o que lhe deu um lugar no G20) e podendo, de acordo com a ­Goldman Sachs, estar em 9º lugar em 2050 (5).

    A nível bilateral, o volume das trocas comerciais entre a Turquia e os seus vizinhos árabes cresceu 591% (!) entre 1991 e 2008, tendo passado de 1907 milhões de USD para 35921 milhões de dólares (6). Este crescimento assentou num relacionamento bilateral conduzido a dois níveis fundamentais: a um nível transnacional, entre empresas árabes e turcas; e a um nível diplomático, envolvendo os governos que apoiam e promovem essa aproximação econômica. É, pois, um tipo de relacionamento que na prática não tem pretendido alterar o dos regimes políticos da região mas, sim, incentivar a integração desses mesmos países no mercado global. Em boa verdade, essa atitude pragmática tem permitido à Turquia desempenhar o papel de mediador da região, apresentando-se como um país que está simultaneamente fora e dentro da complexa política do Oriente Médio, que tem os seus interesses alicerçados na estabilidade da região e que, como tal, pretende  situar-se à margem das disputas de poder intrarregionais.

    A TURQUIA E A PRIMAVERA ÁRABE Esta política de empenho moderado na região tem, contudo, sido posta em causa, em primeiro lugar pela questão palestina e, em segundo, pela Primavera Árabe. Com efeito, as relações entre Israel e a Turquia, que na década de 1990 eram uma exceção positiva no relacionamento passivo de Ancara com os seus vizinhos do Oriente Médio, são agora a exceção pela negativa de uma abordagem muito mais positiva da Turquia para com a região. A Turquia tem, nos últimos anos, feito um esforço diplomático significativo no sentido de melhorar o relacionamento com os seus vizinhos e de assumir um papel de mediador na região expresso, por exemplo, nas tentativas de aproximação entre Israel e os seus vizinhos árabes. No entanto, a incursão militar israelita em Gaza em final de 2008, e o incidente com a flotilha humanitária, que no verão de 2010 tentou romper o bloqueio de Israel à Gaza e que resultou na morte de oito indivíduos de origem turca, deu origem a uma deterioração significativa das relações entre Israel e Turquia. No início de 2009, por exemplo, quando Ancara e Telavive já mostravam claros sinais de desentendimento, o ministro turco, Ahmet Davutoglu, gabava-se do fato de a Turquia ser o único país capaz de manter um relacionamento positivo com a Fatah, o Hamas, Israel, o Egito e a Síria (7).

    A consequência mais visível do desentendimento entre Israel e a Turquia tem sido a progressiva mudança de comportamento por parte da Turquia para com a região. Voluntária ou involuntariamente, Ancara vem sendo arrastada para o epicentro das lutas de poder no Oriente Médio, vendo-se, portanto, na obrigação de tomar posições, o que, se no caso da Palestina é uma situação que angaria votos para Erdogan e apoio popular na região, pode, se transformado em princípio geral de ação, acabar por colocar em causa o princípio de "problemas zero" definido por Davutoglu.

    E a verdade é que, se a relação com Israel poderia de certa forma ser vista como um problema isolado, a onda de instabilidade política no mundo árabe, a chamada Primavera Árabe, tem exigido da Turquia a definição de uma posição geral mais coerente. A Turquia viu-se obrigada a escolher entre o não envolvimento no processo ou a ativa participação no mesmo. Contudo, os resultados têm sido, no mínimo, ambivalentes.

    No caso da Tunísia, país com o qual a Turquia tinha um relacionamento limitado, a queda de Ben Ali pouco contribuiu para uma mudança de política. A Líbia, a Síria e o Egito têm, contudo, sido casos mais complicados. Na Líbia ficou claramente visível a incompatibilidade entre uma política econômica agressiva e uma diplomacia ativa, mas que não interfere nos assuntos internos dos Estados. Os cerca de 20 mil trabalhadores turcos na Líbia e os 15 bilhões de dólares em projetos concedidos pelo regime de Khadafi a empresas turcas, fizeram que Ancara tivesse uma posição inicial bastante conservadora, relativamente aos eventos que estavam acontecendo na Líbia, que davam conta, por um lado, de uma clara insatisfação por parte da população do leste do país com o regime de Khadafi e, por outro, da intenção por parte do mesmo de responder com mão firme a qualquer tipo de revolta que desafiasse o seu poder. Nesse sentido, os ataques aéreos iniciais levados a cabo pelos EUA, o Reino Unido e a França depois da aprovação de uma resolução (1973) do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenatória da situação na Líbia (resolução essa que abria espaço para medidas mais interventivas no desenrolar dos acontecimentos no país) foram recebidos com fortes críticas por parte da Turquia (particularmente direcionadas à França), que simultaneamente procurava, sem sucesso, mediar um cessar-fogo entre as partes. O progressivo sucesso das forças rebeldes, juntamente com o claro consenso que foi se formando em torno da posição dos países ocidentais, levaram Ancara a mudar de posição, acabando por apoiar a causa rebelde. A visita de Davutoglu a Bengazhi foi um sinal claro da inversão de política por parte de Ancara, assim como os 200 milhões de dólares doados por Ancara ao Conselho de Transição Nacional líbio (8). Foi também demonstrativa da ocasional falta de sensibilidade diplomática com que a Turquia muitas vezes se movimenta no contexto dos seus vizinhos do sul. Essa mesma falta de sensibilidade foi, contudo, menos visível relativamente ao Egito, tendo Erdogan sido um dos primeiros líderes políticos da região a apelar à saída de Mubarak do poder. O fato de as relações com o antigo presidente egípcio não serem particularmente positivas e de os eventos terem ocorrido de forma célere certamente ajudou à tomada dessa posição mais interventiva por parte do primeiro ministro turco (9).

     

     

    Finalmente, em relação à Síria, a Turquia tem sido obrigada pelos eventos a tomar uma posição que, de certa forma, desmorona o trabalho diplomático de aproximação ao regime de Bashar Al-Assad que tinha sido desenvolvido na última década. A Turquia tentou inicialmente beneficiar dessa posição próxima do regime de Damasco para sensibilizar o presidente sírio no sentido de levar a cabo reformas estruturais que fossem ao encontro das exigências do crescente número de manifestantes e que, de certa forma, pusessem fim à violência que tem assolado o país. A ausência de uma resposta convincente por parte do regime sírio mostrou os limites da capacidade de influência da Turquia na região. Desde então, Ancara adotou uma retórica mais agressiva, tendo a oposição síria encontrado na Turquia uma importante base de apoio para levar a cabo as suas ações.

    Na realidade, a Primavera Árabe tem ajudado a revelar todas as contradições que a diplomacia turca enfrenta. Por um lado mostra aos seus aliados da Otan que pode ter uma política externa independente da Aliança mas, por outro, não deixa de ser vista pelos seus vizinhos do  Oriente Médio como parte integrante dessa mesma aliança. Tenta também ser um moderador das disputas de poder na região, sem que contudo consiga deixar de tomar partido e uma retórica por vezes agressiva contra alguns dos intervenientes, como Israel, ou mais recentemente o regime de Bashar Al-Assad. Por fim, tenta, simultaneamente, promover uma política de estabilidade – o que implica no apoio à ordem providenciada pelo status quo – e ajudar os movimentos rebeldes que, como no caso da Líbia, estarão na base do novo poder político do país e, como tal, serão os principais interlocutores das futuras relações diplomáticas desse país com a Turquia. No fundo, a estratégia de querer ter boas relações com todos os intervenientes simultaneamente, assumindo um papel de líder regional sem querer interferir nos assuntos internos desses Estados, tem-se mostrado um equilíbrio muito difícil de gerir para um país que, até há pouco tempo, preferia ficar o mais afastado possível da complexidade da política do Oriente Médio.  

    É, contudo, necessário esclarecer que para além deste papel de ator ativo no desenrolar da política regional, a Turquia tem igualmente assumido nos últimos meses um papel de ator normativo que lidera através do exemplo. O "modelo turco" tem frequentemente sido discutido como a grande saída dos países do Oriente Médio para uma estabilização democrática da Primavera Árabe (10). Isso tem, apesar dos ocasionais passos em falso da sua diplomacia, contribuído para o crescente prestígio de Ancara (e principalmente do seu primeiro ministro) na região. A questão da Turquia enquanto ator normativo levanta, contudo, três grandes problemas. Desde logo porque não é clara a resposta à questão: a que corresponde exatamente este "modelo turco"? Em termos gerais, é possível identificar dois modelos alternativos, dependendo do tempo histórico em questão. Um primeiro modelo de democracia condicionada, em que o poder passa de um sistema autocrático "iluminado" para um sistema democrático supervisionado por um aparelho militar ativo na garantia da estabilidade do país, que poderá eventualmente, numa fase de "maturação" dar origem a uma democracia em que o poder civil se sobrepõe finalmente aos ditames do poder militar. Numa perspectiva de longo prazo, foi essa a evolução política da República turca.

    Um olhar mais contemporâneo centraria, contudo, as suas atenções na abertura política da Turquia para uma maior compatibilização do Islã com a democracia. A curta e não muito bem-sucedida experiência do governo de Necmettin Erbakan estabeleceu as bases para uma ascensão política do AKP, que se apresentava mais moderado no seu discurso religioso, com uma base de apoio mais vasta, e com uma agenda político-econômica mais bem organizada, progressista e atrativa para vários tipos de eleitorado. A mais-valia desse modelo do AKP reside, assim, na ideia de que essa agenda pode ser reproduzida pelos partidos islâmicos nos países do norte da África e do Oriente Médio.

    O problema é que quando os militares, por exemplo, no Egito falam do modelo turco não estão, necessariamente, se referindo à experiência do AKP, mas sim a todo um processo de longo prazo no qual eles têm um papel central a desempenhar. Em sentido contrário, quando a Irmandade Muçulmana e outros partidos de caráter religioso na região falam da experiência turca, referem-se sobretudo ao sucesso do AKP e à forma como a Turquia foi capaz de compatibilizar democracia, Islã e o desenvolvimento econômico do país.

    Em segundo lugar, não é claro que o modelo turco, quer o de longo, quer o de curto prazo, possa ser aplicado ao restante dos países do Oriente Médio. Nem o contexto histórico do modelo de democracia controlada tem correspondência no presente, nem as condições políticas do modelo de compatibilização entre Islã e democracia, que a ascensão política do AKP suscita entre os partidos islâmicos, são equivalentes na região. Como é fácil de observar, por exemplo, no Egito, o desenvolvimento de um projeto político assente no controle militar está muito longe dos anseios de parte significativa da população. A legitimidade das forças armadas turcas deriva de condições muito específicas, que passam não só pelo papel de prestígio que os militares tinham já no tempo do Império Otomano, como pelo papel ativo que desempenharam na libertação da Turquia do jugo das grandes potências. Isso ajudou a criar uma imagem dos militares como os guardiões da República, que estavam por isso acima de qualquer poder político. Essa foi uma imagem construída não só a partir de um período de grande trauma para uma população que viu o seu país passar de império a protetorado em poucos meses, como num contexto em que o autoritarismo era muito mais tolerado no sistema internacional, tanto interna como externamente. É, portanto, difícil replicar o modelo da democracia controlada no mundo das redes sociais e informação instantânea num contexto de espírito revolucionário que nem sequer foi liderado pelos militares.

    Difícil também é reproduzir o modelo do sucesso do AKP em países onde a sociedade civil tem sido oprimida e controlada há décadas, em que não há uma cultura democrática instituída e em que instituições condicionadoras do comportamento dos líderes políticos, como a União Europeia, estão totalmente ausentes. Em suma, o dilema do modelo turco é o de que a realidade política atual só foi possível mediante um processo de maturação de longo prazo, também ele difícil de ser reproduzido no contexto atual.

    Finalmente, é preciso salientar que esse é um processo que, para além de todas as dificuldades de execução, permanece longe de ser concluído. O aparelho judicial na Turquia continua a intervir ativamente na política e as liberdades de expressão e de imprensa têm, na verdade, sido postas em causa nos últimos anos, com a prisão de um número significativo de opositores ao governo do AKP – alegadamente envolvidos em conspirações para derrubar o governo – bem como de supostos simpatizantes do PKK, incluindo jornalistas e acadêmicos. Na verdade, se para uns o AKP trouxe a prosperidade para a Turquia, para outros o preço a pagar poderá ser o de uma democracia novamente limitada, agora não pelos militares, mas pelo partido do poder.

    CONCLUSÃO Em suma, é inegável que a Turquia se tornou um ator importante na política do Oriente Médio. É, contudo, também visível que esse ascendente não tem sido feito de forma necessariamente coerente, algo que a Primavera Árabe veio, de certa forma, acentuar.

    Mais do que um líder regional, Ancara pretende tornar-se um ator central das relações internacionais do século XXI, aproveitando, para isso, o seu posicionamento geográfico, recursos e potencial demográfico. A sua relação com o Oriente Médio não deve por isso ser vista como um fim em si mesmo, mas sim como um passo para uma agenda política mais ambiciosa. Essa dimensão é, no entanto, um passo fundamental, não só pela importância geoestratégica do mundo árabe, como pelo potencial papel desestabilizador que este pode gerar na ascensão da Turquia. Evitar essa possível desestabilização, quer pela liderança regional, quer pelo afastamento relativamente aos seus problemas, é portanto o dilema que a Turquia atualmente enfrenta e não parece, para já, capaz de resolver.

     

    André Barrinha é pesquisador no Centro de Estudos Sociais e professor auxiliar convidado na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. É doutor em relações internacionais pela Universidade de Kent no Reino Unido. Foi entre 2004 e 2006 pesquisador no Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. O Oriente Médio é aqui entendido num sentido lato, incluindo o Norte de África e Irã.

    2. Para além do Iraque e Turquia, faziam parte desta aliança militar o Irã, o Paquistão e o Reino Unido.

    3. Barysch, Katinka (2010),"Can Turkey combine EU accession and regional leadership?" In: Policy Brief, Center for European Reform, p.4. Ver também Grigoriadis, Ioannis. "The Davutoglu doctrine and Turkish foreign policy", Working paper Nº 8, Middle Eastern Studies Programme, 2009. Eliamep e Davutoğlu, Ahmet. "Turkish Foreign Policy and the EU in 2010", Turkish Policy Quarterly, Vol.8, no.3, pp.11-17. 2009.

    4. Hakura, Fadi. "Turkey and the Middle East. Internal confidence, external assertiveness". Briefing Paper, Chatham House, p.2. 2011.

    5. Marthoz, Jean-Paul. "Turkey turns the tide", The Broker, No. 24, p.11. 2010.

    6. Kirisci, Kemal. "Turkey's 'Demonstrative Effect' and the transformation of the Middle East". Insight Turkey, Vol. 13, no.2, p.38. 2011.

    7. Hurriyet Daily News (2009), "Turkey ready for monitoring mission on Gaza-government official", 15/01/09.

    8. Hakura, Fadi. "Turkey and the Middle East. Internal confidence, external assertiveness". Briefing Paper, Chatham House, p.4. 2011.

    9. Kardas, Saban. "Turkey and the Arab Spring: coming to terms with democracy promotion?". Policy Brief, The German Marshall Fund of the United States, October 2011.

    10. A esse propósito, ver Kirisci, Kemal. "Turkey's 'Demonstrative Effect' and the transformation of the Middle East". Insight Turkey, Vol. 13, no.2, pp.33-55. 2011.