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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.64 no.4 São Paulo out./dez. 2012

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252012000400023 

    ASTRONOMIA

    O céu como guia de conhecimentos e rituais indígenas

     

     

    Há muito tempo, contam os índios Tembé, da Amazônia, havia uma grande aldeia nas margens do rio Capim, no estado do Pará. Nessa aldeia vivia um cacique que tinha uma filha muito bonita, olhos negros e cabelos lisos e longos, chamada Flor da Noite. Ela gostava de ficar às margens do rio, observando o pôr-do-sol. Em uma noite de lua cheia, a índia adormeceu na praia e foi acordada por um grande barulho que vinha do rio. Então, um rapaz saiu da água e eles passaram a namorar em todas as noites de lua cheia. O rapaz, porém, era um boto cor-de-rosa e, depois de engravidar Flor da Noite, nunca mais voltou. A índia deu à luz a três botos e, embora triste, ela decidiu soltá-los nas águas do rio, para que eles não morressem. Assim, quando sentem saudades da mãe, os três botos unem-se à procura dela, saltando sobre as águas, sempre na lua nova e na lua cheia, fazendo uma grande onda que se estende até as margens do rio, derrubando árvores e virando barcos.

    Essa fábula, na verdade, narra o fenômeno da pororoca, o estrondo provocado pelo encontro do rio com as ondas do mar, durante o período da maré alta, e mostra que esses índios já conheciam a relação entre as fases da lua e o ciclo das marés. "O conhecimento indígena sobre o movimento dos astros, as fases da lua e sobre as constelações é muito semelhante à astronomia de culturas antigas, ágrafas, que faziam do céu o esteio de seu cotidiano, tais como os sumérios e os egípcios, antes de criarem seus sistemas de escrita", conta Germano Bruno Afonso, físico e etnoastrônomo do Museu da Amazônia. Esse conhecimento era transmitido por meio de histórias e mitos, como o da pororoca.

    Ao contrário da astronomia convencional, uma ciência exata e essencialmente teórica, a astronomia indígena utiliza métodos empíricos, relacionando o movimento do sol, da lua e das constelações com eventos meteorológicos que acontecem ao longo do ano, com períodos de chuva e estiagem, de calor ou de frio. "Com esse conhecimento, os índios constroem seus calendários, marcando a época dos trabalhos agrícolas, de floração e frutificação, da reprodução dos peixes e outros animais", explica Afonso. O céu também guia o tempo das festas religiosas e dos procedimentos feitos pelos pajés para proteção e cura dos índios da tribo.

    Provavelmente por conta desse aspecto empírico, o conhecimento dos índios sobre vários fenômenos naturais antecipou várias descobertas da astronomia convencional. Claude d'Abbeville, missionário capuchinho francês, que passou quatro meses entre os índios Tupinambás do Maranhão, relatou esse extenso conhecimento astronômico em um livro publicado em 1614, em Paris. Nessa obra ele discorre sobre o extenso conhecimento dos índios a respeito das fases da lua e sua influência nos ciclos naturais da Terra. "Os Tupi-Guarani sabem quais as espécies de peixe mais abundantes em função da época do ano e da fase da lua", conta Germano Afonso. Somente em 1687, 73 anos após a publicação do livro de d'Ábbeville, Isaac Newton demonstrou que a causa das marés é a atração gravitacional do sol e, principalmente, da lua sobre a superfície da Terra.

     

    RAÍZES DO TUPI

    Tupi é o nome dado a um tronco linguístico, do qual se originaram várias línguas da mesma família, das quais o Tupi-Guarani é a mais extensa em número e na distribuição geográfica. Elas são encontradas em todas as partes do Brasil, na Guiana Francesa, Argentina, Paraguai, Bolívia, Uruguai e Peru. De acordo com o pesquisador Germano Afonso, os Guarani, assim como os Tembé e os Tupinambá, pertencem à família linguística Tupi-Guarani. No Brasil, existem três subgrupos de Guarani: os Kaiowa, os Ñandeva e os Mbya.

     

    O DEUS SOL Além disso, a astronomia indígena está profundamente relacionada com a religião. No entanto, existe uma clara diferença entre seu uso cotidiano e o religioso. Assim o sol, principal regulador da vida desses povos, recebe dois nomes: Kuarahy, na linguagem do dia a dia, e Nhamandu, o nome do sol nos rituais religiosos. "Muito provavelmente, por conta desses dois tipos de significado, toda essa sabedoria foi ignorada pelos estudiosos", acredita Afonso. Para ele ainda prevalece um desconhecimento muito grande no senso comum sobre o conhecimento dos índios sobre astronomia. Isso ocorre principalmente pela falta de pesquisas, nessa área, por astrônomos profissionais. "A maioria dos trabalhos envolvendo astronomia indígena foi publicada por pesquisadores de outras áreas, sem o conhecimento suficiente do céu. Isso levou a uma inconsistência dos resultados obtidos, que muitas vezes eram incorretos. Esse fato não ocorreu, por exemplo, em relação aos conhecimentos indígenas sobre botânica", diz.

     

     

    Há registros sobre essa ligação dos indígenas brasileiros com os astros desde a chegada dos europeus, mas é possível que eles utilizassem esse conhecimento desde que deixaram de ser nômades. "Existem alguns painéis de arte rupestre que, além do sol, da lua e de constelações, parecem representar cometas, meteoros ou um eclipse, fenômenos que alteravam a ordem do universo e amedrontavam o povo", explica o pesquisador do Museu da Amazônia. Vestígios arqueológicos são outro tipo de fonte que atesta a antiguidade do conhecimento astronômico indígena. Eles mostram, por exemplo, que os Tupi-Guarani, assim como outros povos antigos, entre eles gregos, chineses e egípcios, utilizavam o gnômon, um relógio solar vertical que servia para determinar o meio dia solar, os pontos cardeais e as estações do ano. O gnômon é um dos mais simples e antigos instrumentos de astronomia.

    O CÉU QUE SE REPRODUZ NA TERRA De acordo com Germano Afonso, entre os indígenas brasileiros o tipo mais comum de gnômon era constituído por um bloco de rocha bruta, pouco trabalhada artificialmente, com cerca de 1,5 metro de altura e com entalhes para os quatro pontos cardeais. Em volta dele há rochas menores, dispostas em forma de círculo com orientações tanto para os pontos cardeais quanto para os pontos colaterais (nordeste, sudeste, noroeste e sudoeste), formando a rosa-dos-ventos, comum nas cartas náuticas.

    Para os Guaranis, Nhande Ru Ete, que, em português, significa "Nosso pai sagrado", criou quatro deuses que o ajudaram na criação da Terra e de seus habitantes. O gnômon aponta para Nhande Ru Ete, ou Zênte, ponto mais alto do céu e indica esses "deuses assistentes", os pontos cardeais. Jakaira Ru Ete é o norte, deus da neblina e das brumas que abrandam o calor e traz os bons ventos. O leste recebe o nome de Karai Ru Ete, deus do fogo. Já o sul é Nhamandu Ru Ete, o deus do sol e das palavras e também representa a origem do tempo-espaço primordial. Finalmente, o ponto cardeal oeste corresponde ao deus Tupã Ru Ete, deus das águas, do mar, das chuvas, relâmpagos e trovões. Os pontos colaterais são domínios das esposas desses deuses.

    CONHECIMENTO DO PASSADO PARA O FUTURO Além de contar sobre o modo de vida dos indígenas brasileiros as pesquisas sobre astronomia abrem outras hipóteses sobre esse passado e podem indicar novos usos. Conforme explica Germano Afonso, existem especificidades no conhecimento sobre o céu e em sua aplicação, dependendo da etnia indígena. A localização geográfica, por exemplo, determina diferenças nas necessidades de leitura e interpretação do céu. Por outro lado, diversos povos indígenas da América do Sul utilizam as mesmas constelações, muitas vezes até com o mesmo nome. "Isso indica que as trocas culturais eram mais intensas entre as diversas etnias do que normalmente se supõe. No Brasil, por exemplo, índios Guarani do Sul e Norte, de etnias que não têm contato entre si, relatam mitos parecidos para explicar as fases da lua e outros fenômenos astronômicos", diz.

    Com o objetivo de disseminar os conhecimentos astronômicos elaborados pelos povos indígenas do país, especialmente da família Tupi-Guarani, Afonso tem elaborado cartilhas para serem usadas na educação dessas populações. A última foi lançada em maio com o título O céu dos índios de Dourados, Mato Grosso do Sul (Editora UEMS, 2012), com coautoria do físico da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Paulo Souza da Silva. Com linguagem simples e muitas ilustrações, o livro foi publicado em português e também em guarani. Traz ainda orientações para utilização do material em sala de aula, como construir um relógio solar vertical, além de ilustrações que orientam e esclarecem conceitos mais complexos da astronomia.

     

    Patrícia Mariuzzo