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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100002 

     

    Atual situação de violência – crise na segurança pública em São Paulo?

    Nancy Cardia

     

     

    O que está acontecendo com a segurança pública no estado de São Paulo? Teríamos perdido os ganhos conquistados ao longo da última década ou estamos vivendo uma crise aguda, porém episódica? É difícil dar respostas precisas em meio ao tumulto das notícias, porém é também necessário fazer uma reflexão sobre os dados disponíveis.

    O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) tem trabalhado com dados sobre a violência na cidade e no estado de São Paulo oriundos da Secretaria de Segurança Pública e que são utilizados em vários estudos que buscam identificar as causas da queda dos homicídios. Os dados sobre homicídio na cidade são comparados com os de mortalidade por agressão do Ministério da Saúde (Datasus) e com os que provêm de atestados de óbito na cidade do banco de dados do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade. Essas fontes subsidiárias permitem algum controle sobre a qualidade da informação.

    Além desses dados, realizamos a cada dois anos um survey na cidade de São Paulo sobre o contato (exposição) que as pessoas têm com a violência, com a particularidade de ser realizada uma amostra suplementar em três distritos onde as taxas de homicídio, nos anos 1980 e 1990, foram muito altas: Jd. Ângela, Jd. São Luís e Capão Redondo. De certo modo os dados do survey permitem balizar os dados oficiais sobre ocorrências criminais, pois expressam uma experiência da população enquanto vítima de delitos que podem, ou não, ter sido registrados pela polícia.

    Uma revisão dos dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, de 1996 até outubro de 2012, revela informações que contradizem a imagem de crise na segurança pública, se por "crise na segurança pública" estivermos nos referindo a um aumento generalizado de ocorrências criminais. Como nem todas as ocorrências criminais têm a mesma probabilidade de serem registradas, selecionamos os tipos de delitos com menor risco de subnotificação: homicídios dolosos, tentativas de homicídios, latrocínios, roubos e furtos de carros, roubos a bancos, roubos de carga e um delito que é passível de sub-representação, o tráfico de entorpecentes. O número de homicídios dolosos caiu no estado de São Paulo, desde o início dos anos 2000, passando de uma taxa de 30,3 (por 100 mil habitantes), em 1996, para 10,6 (por 100 mil) em 2011. Na cidade de São Paulo, a queda foi ainda maior: de 46,6 homicídios (por 100 mil), em 1996, para 8,9 em 2011, tendo atingido em 1999 o pico de 52,4 homicídios (por 100 mil).

    Essa queda se deu em todos os delitos selecionados, exceto em relação ao tráfico de entorpecentes que cresceu continuamente. Aumento que ocorreu principalmente no interior do estado, onde saltou de 25,5 para 109,4 (por 100 mil) assim como na região metropolitana, que foi de 12,6 para 57,2 (por 100 mil). Como esses dados se referem ao pe­ríodo anterior à crise é possível que em 2012 tenha ocorrido uma reversão nesta tendência. Porém, a análise dos dados disponíveis até outubro de 2012, não corrobora essa hipótese; os números continuam em queda ou estão semelhantes aos de 2011.

    QUEDA DA VITIMIZAÇÃO Uma primeira questão que se levanta é sobre a qualidade desses dados em termos de representarem efetivamente a experiência das pessoas. Os surveys realizados pelo NEV permitem, ao menos, identificar se os dados oficiais são ou não congruentes com a vitimização relatada pelos entrevistados. Os dados, tanto da cidade como os dos três distritos, revelam queda na vitimização entre 2000 e 2010. Cai também a prevalência de vitimização.

    De modo geral, a queda na vitimização foi constante ao longo do período, no que se refere aos delitos mais graves: ser ferido por arma de fogo, vítima de roubo à mão armada e ter perdido parente próximo assassinado. Caíram também as agressões e extorsões por policiais ainda que esta queda tenha flutuado e que nos três distritos tenha sido inferior ao observado na cidade. Os surveys registram ainda uma melhoria na imagem das instituições do sistema de justiça criminal, exceto a do sistema prisional que continua tendo baixa credibilidade.

    Quais os indicadores de crise na segurança pública e por que os dados oficiais não refletem esta crise? Os indicadores de que há algo errado são os assassinatos de policiais e de pessoas que apresentam indícios de execução, acompanhados de notícias sobre existência de ordens, por parte de grupos de organizações criminosas, de: execuções de policiais, toques de recolher em comunidades e de atos de violência como queima de ônibus.

    Por lei de 1995 a Secretaria de Segurança Pública deve tornar público a cada três meses os dados de ocorrências criminais no estado incluindo o número de pessoas mortas e feridas em ocorrências envolvendo cada uma das polícias, militar e civil. Nesses dados deve estar discriminada a situação do policial, se em serviço ou de folga. Os dados trazem informação sobre ferimentos e morte de policiais civis e militares em ação. Assim, os dados para os três primeiros trimestres de 2012 nos revelam que 13 policiais militares foram mortos e 163 feridos em ocorrências criminais até o fim de setembro de 2012. Revelam ainda que foram mortas pela polícia militar, em serviço, 379 pessoas no mesmo período. Esses números seguem a tendência de anos anteriores. Após um pico de 868 mortes pela polícia militar, em 2003, essas mortes vinham caindo tendo, em 2011, atingido 437 pessoas, número ainda excessivamente alto quando comparado ao de outros países. Os dados da secretaria indicam que os policiais que foram mortos nos últimos meses provavelmente o foram fora de serviço e/ou eram policiais aposentados, em casos que seriam computados como "homicídios dolosos". Quando pouco mais de 100 policiais são mortos em curto espaço de tempo há algo errado na segurança pública, ainda mais quando esse número representa mais do que o total de policiais militares mortos em serviço ao longo dos últimos cinco anos.

    MAS O QUE ESTÁ EM CURSO? Não há indícios que conquistas obtidas na redução da violência na última década estejam em risco de se perder, mas há sinais de que há algo errado na atuação das polícias e, possivelmente, na abordagem dada ao problema do crime organizado.

    Os casos de execução descritos pelos jornais nos quais dois indivíduos mascarados (com frequência em uma moto) matam a tiros pessoa(s) estão sendo classificados, de novo, como "homicídio doloso". Sem mais informações sobre essas ocorrências, como a identidade das vítimas, contexto ou sobre as investigações é difícil extrair conclusões sobre o que está em curso. As mortes de policiais foram provocadas por ações violentas da polícia contra grupos acusados de pertencer ao PCC? São as mortes de jovens nas periferias ações de vingança, intimidação ou retaliação, ou não têm nenhuma conexão com as mortes de policiais? Tampouco podemos responder a estas questões.

    Chama a atenção, porém, o fato de que o crime de tráfico de entorpecentes, considerados uma das principais atividades do crime organizado e uma das mais lucrativas, seja o delito cujo registro cresceu de modo substancial nas últimas décadas (de 21,7 para 85,4 por 100 mil). Esse crescimento pode decorrer tanto de maior ação da polícia ou de uma maior presença do delito na sociedade, ou ambos. De qualquer modo os dados revelam uma forte resistência desse delito às iniciativas de coibi-lo.

    Os dados do survey do NEV-USP revelam que aumentou, ao longo da década, a visibilidade das transações e do uso de drogas no espaço público, na percepção dos entrevistados, e isso não ocorreu só em São Paulo, pois dados do mesmo survey aplicado em 11 capitais brasileiras mostram que entre 1999 e 2010 essa visibilidade do uso e venda de drogas se generalizou no país. Além disso, o maior crescimento de ocorrências relacionadas com o tráfico de drogas tem se dado no interior do estado de São Paulo e não na capital ou região metropolitana. No passado as polícias atribuíam ao tráfico de drogas a responsabilidade pelo crescimento dos homicídios. Os homicídios despencaram e o tráfico parece ter florescido. Há alguma relação entre esse crescimento e a crise atual? Será que a crise atual desvenda para o público que certo tipo de trégua foi rompido? Como dito anteriormente não temos condição de responder a esta pergunta; o tempo nos dirá, e quão mais abertas à sociedade forem as autoridades maior será a probabilidade que possam contar com o apoio desta para ações que visem garantir a segurança pública dentro do respeito às leis.

     

    Nancy Cardia é coordenadora adjunta do NEV-USP.