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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100009 

     

     

    ENTREVISTA RÉMY LESTIENNE

    A possibilidade da emergência para entender o surgimento de novas propriedades

     

    Como funcionam a consciência e o livre arbítrio? E a vida na Terra, como surgiu? São questões como essas, ainda não respondidas pela ciência, que o conceito de emergência se propõe a abordar. "A ideia da emergência pretende oferecer um caminho para entender como esses 'milagres' são possíveis, sem recorrer a causas transcendentais", propõe o físico e neurocientista francês Rémy Lestienne, diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ele é autor de vários artigos e livros sobre o tema. O mais recente, Dialogues sur l'émergence, lançado em 2012 na França pela editora Le Pommier, ainda não tem versão em português.

    Nesta entrevista Lestienne explica que a ideia de emergência se contrapõe ao reducionismo científico, que busca apreender os fenômenos por meio do estudo dos elementos que compõem um sistema. Diferentemente, a proposta é compreender a organização espontânea de grandes sistemas e de que maneira eles adquirem propriedades novas, não antecipadas pelo estudo dos elementos que os integram. E descreve um exemplo de emergência na revoada de um bando de estorninhos: "no início eles voam em desordem, mas logo a colônia se organiza espontaneamente para tomar uma direção".

    Em seu último livro o senhor diz que, tradicionalmente, a ciência procura desvendar os fenômenos buscando compreender o mais simples, a partícula elementar. Mas há exemplos na natureza de que o todo não se reduz às partes que o integram, mas é composto pelos processos e dinâmicas que o constituem. Isso quer dizer que a ciência, tal como o cidadão comum a conhece, está errada?

    Não diria que a ciência, tal como ela é ensinada nas escolas e praticada pelos pesquisadores, esteja errada, mas sim que ela parece incompleta. O reducionismo científico – o método de buscar explicações para os fenômenos observados no estudo dos elementos que compõem o sistema – é muito poderoso e, sem dúvida, permitiu desenvolver a nossa civilização tecnológica. Mas ele não esclarece como a vida emergiu há mais de 3 bilhões anos na Terra, nem como a consciência – isto é, a representação de si mesmo e dos outros na cena do mundo e a faculdade de interferir no seu desenrolar –, apareceu nos sistemas nervosos dos animais superiores.

    A ideia da emergência nas ciências pretende oferecer um caminho para entender como esses "milagres" são possíveis, sem recorrer a causas transcendentais. Mais que uma descoberta, ele aponta fatos que são bem conhecidos, mas geralmente negligenciados pela ciência reducionista. O fato, por exemplo, de que muitas propriedades do mundo onde vivemos não podem ser atribuídas a unidades elementares, como os átomos ou as partículas elementares, mas somente a conjuntos enormes de tais elementos. A forma estável das moléculas e de cristais, de modo geral, não pode ser definida por apenas uma molécula, mas por edifícios grandes e complexos. A ideia tão poderosa na física contemporânea de "quebra espontânea de simetria" para explicar a aparição de propriedades novas, tal como o ferromagnetismo, não está distante da ideia de emergência.

    O conceito de emergência influi na vida cotidiana ou implica numa mudança da maneira como percebemos e nos relacionamos com o mundo?

    A emergência é, em primeiro lugar, outra visão do mundo, uma filosofia que se opõe à filosofia do reducionismo. Aristóteles já pensava assim, quando escreveu que "a totalidade é mais do que a soma das suas partes". Os emergentistas acreditam que, para explicar o que ainda resta a descobrir no mundo, é preciso compreender melhor como a organização espontânea de grandes sistemas é possível, e como eles podem adquirir, às vezes, propriedades novas que não podiam ser antecipadas pelo estudo de seus componentes e dos intercâmbios entre eles.

    Certamente, não encontramos situações desse tipo todos os dias em nossa vida – ao menos nas nossas práticas tecnológicas. Para entender como funciona um forno de micro-ondas, basta utilizar as prescrições do reducionismo científico. Pois a superveniência (1) de propriedades novas diz respeito a sistemas muito complexos, e de modo geral requer muito tempo e intercâmbios com o meio ambiente, como, por exemplo, a aparição de novas espécies ao longo da evolução. A possibilidade, então, está restrita aos sistemas que chamamos de sistemas termodinâmicos abertos.

    Nós, humanos, somos sistemas abertos em constante interação com o mundo. A nossa liberdade, o chamado livre arbítrio, parece ser um exemplo constante de exercício de emergentismo. A criação artística também o é: como a criação poderia livrar-se dos caminhos deterministas do funcionamento do sistema nervoso central se o cérebro não tivesse a possibilidade, pelo menos, de provocar bifurcações entre vários caminhos possíveis das atividades nervosas?

    O que significa dizer que a natureza é organizada em níveis, patamares? De que modo esta visão modifica a visão de origem – geralmente associada à visão de uma partícula elementar?

    A natureza é obviamente organizada em patamares. Conhecemos, por exemplo, o nível dos quarks, das partículas elementares, dos átomos, das moléculas. No campo dos sistemas vivos, há os níveis das células procariontes, das células eucariontes, dos seres pluricelulares, dos órgãos, dos indivíduos, das sociedades.

    A observação de que a natureza está organizada em patamares e não se apresenta como uma substância não diferenciada é muito importante para abrir a possibilidade da emergência de propriedades novas – ao menos em alguns desses patamares. Ao caos radioativo inicial sucedeu um mundo em que partículas elementares apareceram, átomos se constituíram, galáxias se formaram. Cada um desses patamares pode ser entendido como um exemplo de emergência. Mas estamos longe de compreender tudo o que concerne ao Universo. Cosmólogos descobriram, há algum tempo, que quase 95% da matéria e da energia que compõem o Universo são de natureza completamente desconhecida.

     

     

    O tempo à luz do conceito de emergência pode ser aplicado em áreas do conhecimento além da física?

    O tempo é uma entidade muito complexa. Sua complexidade fica muito longe da imagem simplista que a teoria física, até agora, oferece desta noção. A complexidade começa com a observação de que, para nós, a propriedade essencial do tempo é sua flecha, o fato de que tudo passa e, como Heráclito costumava dizer, "nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio". Ela também se manifesta, por contraste, na percepção de que, para medir o tempo, precisamos de fenômenos que se reproduzem de maneira igual – como as oscilações de um pêndulo ou as oscilações de certa luz emitida pelo césio excitado. A complexidade aumenta quando se procura dar conta da evidência de que o tempo não é somente um fluxo. Entre o passado e o futuro, o presente possui de fato uma propriedade particular – aquela que só podemos atribuir à propriedade de ser real.

    Físicos da relatividade geralmente defendem uma visão relacionalista do tempo: o tempo (como o espaço) seria somente um meio de dar conta da maneira como objetos podem ou não reagir entre eles. Outros, como eu, pensam que o tempo é mais do que isso. Vemos que o tempo não afeta da mesma maneira todos os objetos, nem todos os seres vivos. Um fóton, que sempre voa à velocidade da luz, não conhece a propriedade de tempo próprio. Uma partícula elementar, mesmo que seja radioativa, não serve para construir um relógio, pois sempre existe a probabilidade de ela se desintegrar no segundo seguinte (precisamos de um pedaço de matéria radioativa para construir um relógio desse tipo, e quanto maior for o pedaço melhor será a precisão do relógio).

    Somente os sistemas abertos e, particularmente, os seres vivos, possibilitam saber o que é o presente. E só os humanos têm uma sensibilidade tão aguda para o tempo que os tornam capazes de se deslocar em pensamento no tempo – até pensar na sua própria morte.

    Essa estrutura em patamares nos leva a perguntar: será que a ideia de emergência não deveria se aplicar particularmente ao estudo do tempo? Parece ter chegado o tempo de responder à pergunta de Ilya Prigogine [prêmio Nobel de Química em 1977]: "Não seria o tempo uma propriedade emergente? Mas então devemos descobrir as suas raízes...".

     

    Marta Avancini

     

    NOTA

    1. Superveniência se refere à relação de dependência existente entre uma propriedade de um sistema global e as propriedades dos seus componentes.