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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100011 

     

    Algumas observações sobre fronteiras e migrações

    Marcia Anita Sprandel

     

    Em "Breve genealogia sobre os estudos de fronteiras & limites no Brasil", publicado no livro Nacionalidade e etnicidade em fronteiras, (UnB, 2005) organizado por Roberto C. de Oliveira e Stephen Baines, analisei historicamente as concepções classificatórias e teóricas sobre a fronteira brasileira. No artigo, o pensamento geopolítico no Brasil é compreendido como saber do Estado, dentro de uma perspectiva de contribuição a uma "antropologia do Estado nacional".

    No presente texto, tento trazer para o debate a forma diversa com que a antropologia trata um tema diretamente referido às fronteiras político-administrativas: os deslocamentos populacionais ou as migrações. Importante registrar que não existem "migrantólogos" na antropologia. O que antropologia faz é analisar a construção de categorias sociais em seus significados, a partir de circunstâncias históricas específicas e de relações de poder. Nesse sentido, estudamos a construção do sujeito "migrante" e das "migrações".

    Esta construção pode ser observada de perto no caso dos camponeses brasileiros que vivem no Paraguai, que estudei no começo dos anos 1990. De objeto de tensão em conflitos nacionais e pela posse da terra, estes passaram a ser percebidos pelo Estado brasileiro, no decorrer daquela década, como parte do universo maior de "brasileiros no exterior", ou seja, como emigrantes. Isto se deu em função da saída significativa de brasileiros para o Hemisfério Norte naquele período, o que demandou do Estado brasileiro uma reorganização em termos de atendimento a suas demandas.

    Esse fenômeno passou a ser acompanhado de perto pela antropologia brasileira que precisou, a partir desse momento, incorporar a suas pesquisas o significado da construção desse sujeito "migrante" e a percepção de seus deslocamentos espaciais como "migrações".

    Existem algumas perspectivas teóricas que fundamentam a pesquisa antropológica e que permanecem essenciais para a análise de indivíduos e grupos em deslocamento espacial, tais como a noção de estrangeiro, os conceitos de etnicidade, identidade étnica e fronteiras étnicas, a noção de estratégias e de planos de organização social.

    Comecemos com um autor que marca os estudos sociológicos sobre deslocamentos, analisando brevemente o pequeno texto "O estrangeiro", de Georg Simmel. O texto "O estrangeiro" começa assim:

    Se o mover for o contraste conceitual do fixar-se, com a liberdade em relação a cada ponto dado do espaço, então, a forma sociológica do "estrangeiro" representa, não obstante, e até certo ponto, a unidade de ambas as disposições. Revela também, certamente, que as relações concernentes ao espaço são, por um lado, apenas, a condição e, por outro, o símbolo das relações entre os seres humanos (1).

    Em seu artigo, Simmel diferencia o viajante (aquele que passa) do estrangeiro que permanece. Este, embora possa ser valorizado por suas histórias, sua cultura, segue sempre como um objeto de constante desconfiança.

    Conclui Simmel:

    O estrangeiro, o estranho ao grupo, é considerado e visto, enfim, como um não pertencente, mesmo que este indivíduo seja um membro orgânico do grupo, cuja vida uniforme compreenda todos os condicionamentos particulares deste social (2).

    Outro estudo clássico na área é O camponês polonês na Europa e na América (1918-1920), de Thomas e Znanieck. Neste livro, os autores analisaram as facilidades e escalas de adaptação de camponeses poloneses na Alemanha e na América a partir de correspondência daqueles camponeses com familiares que permaneciam na Polônia. Sua abordagem biográfica e da etnicidade (embora não com esse nome) estava, em muitos aspectos, à frente de seu tempo e foi reatualizada no contexto de estudos contemporâneos de migração.

    Enquanto os estudos sobre campesinato tomaram rumos próprios, a etnicidade seria retomada de forma renovada por Barth, antropólogo norueguês nascido em 1928. Após trabalho de campo no Paquistão, Sudão, Bali e Nova Guiné, Barth editou o livro Grupos étnicos e fronteiras (1969).

    No mesmo ano, Abner Cohen nascido no Iraque em 1921 (tendo estudado em Manchester, com Gluckman e se tornado professor da Universidade de Londres) publicaria Custom and politics in urban África, seu trabalho sobre o ajuste de grupos étnicos a novas realidades sociais, a partir de trabalho de campo entre os Hausa, comerciantes de longa distância da África Ocidental.

    Notem que estávamos diante de um processo de urbanização de grupos tribais e/ou camponeses, o que se reflete na produção antropológica da época. Os trabalhos de Barth e Cohen marcaram uma diferença com os estudos até então feitos, que tratavam os grupos étnicos como unidades fechadas de análise, com características culturais rígidas e imutáveis.

    Por quê? Estes dois autores enfatizaram o sentido político da etnicidade. Uma das principais contribuições de Barth foi a negação do pressuposto que a divisão de uma cultura comum seria característica básica de um grupo étnico. O autor reverte esta visão senso comum à época para propor que a existência de uma cultura comum é antes o resultado da existência daqueles grupos. Criticou também a versão tradicional de que a manutenção de diversidades culturais estaria ligada ao isolamento social e geográfico.

    Direcionou os estudos de etnicidade para a análise da organização do que chamou de fronteiras étnicas. Para Barth, é apenas na interação entre grupos que o indivíduo desenvolve consciência étnica de seu próprio grupo e de sua distintividade. Nestes contatos ou interdependências étnicas, as diferenças culturais tendem a persistir, ou mesmo a serem realçadas.

    Cohen, em seu livro, reflete sobre o ajuste de grupos étnicos a novas realidades sociais. Ele chamou de retribalização o processo pelo qual indivíduos pertencentes a grupos tribais que se transferem para as cidades, enfatizam e exageram a sua identidade e exclusividade cultural, com objetivos políticos e econômicos. Para Cohen, dentro de um sistema político formal, como o Estado-Nação, uma categoria étnica pode manipular costumes, valores, mitos, símbolos e cerimônias de sua tradição cultural no sentido de articular uma organização política informal.

    Outro autor fundamental para as reflexões antropológicas sobre sujeitos em mobilidade espacial é Pierre Bourdieu. A sociedade kabila, na Argélia, foi o palco das suas primeiras pesquisas. Também trabalhou com sociedades de imigrantes na França. Neste sentido, recomenda-se a leitura do livro A miséria do mundo, editado pela Editora Vozes em 2003, na qual ele e sua equipe de pesquisadores entrevistam estas famílias nos subúrbios de Paris.O mundo social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de três conceitos fundamentais: campo, habitus e capital.

    No que concerne à pesquisa de campo realizada entre camponeses brasileiros que viviam no Paraguai, foi muito útil a noção de habitus. Por quê? Após um ano de mobilização pela terra, os chamados brasiguaios assentados no Mato Grosso do Sul, começaram a retornar ao Paraguai ou a procurar novas áreas no Mato Grosso e em Rondônia, consoante um cálculo econômico que incorporava o preço mais baixo ou a fertilidade do solo de áreas de arrendamento em regiões nas quais, com vantagens consideráveis, poderiam lograr a colocação de seus filhos e descendentes.

    Semelhante solução funcionava como medida resolutiva em face de possíveis regras de sucessão que privilegiam a indivisibilidade das áreas do assentamento. Na época, tais estratégias eram percebidas por alguns mediadores como processos de individualização e alienação política, a partir de cálculos supostamente racionais e conscientes.

    Ora, as histórias familiares registradas, o trabalho de campo realizado no assentamento e no Paraguai, tudo isto apontava para outra resposta. Para confirmá-la, o exercício inicial realizado foi estudar o projeto de assentamento a partir da proposta metodológica de Clifford Geertz.

    No artigo "Forma e variação na estrutura da aldeia balinesa", publicado em 1959 na American Anthropologist, Geertz parte da crítica às totalidades que ainda eram objeto da antropologia, como "a aldeia x" ou "a cultura y". Para desfazer tais pressupostas unidades, Geertz trabalha com o conceito de "planos de organização social", cada plano sendo constituído por um conjunto de instituições sociais baseadas em formas totalmente diferentes de agrupar indivíduos ou mantê-los separados.

    Em seu artigo, Geertz identifica, sobretudo, as diferenças entre a cultura de Bali e as convenções de pensamento ocidentais. Ele demonstra como a organização social é importante para o povo de Bali e como sua própria organização difere de aldeia para aldeia e de pessoa para pessoa.

     

     

    Identificar alguns planos de organização social no projeto de assentamento foi a forma que encontrei para romper as fronteiras do seu espaço e criar novas, que se interseccionavam com aquelas e redimensionavam totalmente a concepção administrativa e territorial do projeto como unidade de análise.

    Um destes planos refere-se à organização em grupos por localidade, feita ainda em território paraguaio e mantida no acampamento de Mundo Novo (MS). No grupo eram atualizadas redes de vizinhança em localidade paraguaia ou ainda redes de parentesco em mais de um local, naquele país. O pertencimento aos grupos, indicativo do domicílio anterior, era um plano fundamental de organização social do assentamento. É um plano que se sobrepõe à divisão em lotes, influencia nas formas de organização voluntárias e nas denominações informais de localidades ou "linhas".

    Outro plano de organização social identificado foi a naturalidade. Aparentemente não muito eficaz no Paraguai e no acampamento, reaparece com força no momento de individualização. É um plano que se sobrepõe ao dos grupos e aos próprios limites do assentamento, ligando os indivíduos que assumem estas identidades regionais aos seus estados de origem.

    Um outro plano de organização social importante é aquele das redes de parentesco. Viviam, na época do trabalho de campo, mais de 1,6 mil famílias nos lote rurais do assentamento. A residência em determinado lote, delimitado pelo órgão fundiário, foi relativizada momentos após o sorteio dos mesmos. Aqueles assentados que pertencem à mesma família extensa e não receberam lotes contíguos, trocaram de lote com seus companheiros, para que isso acontecesse.

    Através de vínculos de parentesco, o assentamento interseccionava-se com o Paraguai. Existia um intercâmbio constante de notícias, negócios e visitas. Diariamente saía do assentamento um ônibus para Novo Mundo, na fronteira. Na rodoviária desse município existiam vários horários de viagem para Salto del Guairá, capital do Departamento Canindeyu, que fica a apenas 15 quilômetros. De Mundo Novo também se alcança o oeste do Paraná e todo o sul do país.

    Antes de migrantes, brasiguaios, brasileiros, estrangeiros, eu estava estudando indivíduos que buscavam manter sua condição de pequenos produtores rurais cruzando uma fronteira político administrativa que pouco significado jurídico tinha em termos imediatos. Mesmo para aqueles que obtiveram um lote em um assentamento criado teoricamente para fixá-los em território brasileiro, tal fato não possibilitou propriamente a conquista da "terra prometida".

    Muitas das famílias, na época de minha pesquisa, desenvolviam uma estratégia de contratos de arrendamento para os filhos em propriedades paraguaias, ou "porque lá o milho tá com preço bom" ou pela qualidade e escassez de terras nos arredores do assentamento. Os agricultores, desta forma, manipulavam o princípio de nacionalidade de cá pra lá na fronteira internacional. No seu cálculo econômico de mercado, eram sempre levadas em conta as variações de preço nos dois países.

    O que os mediadores tradicionais não entenderam é que, enquanto agentes sociais, estes grupos familiares sabem desenvolver rituais políticos e sociais que podem ser entendidos como produto do senso prático ou habitus, definido por Bourdieu como "necessidade tornada virtude". Ao fazê-lo, "antecipam a necessidade imanente ao fluxo do mundo".

    "E, no entanto, os agentes fazem com muito mais frequência do que se agissem ao acaso, 'a única coisa a fazer'. Isso porque, abandonando-se às intuições de um 'senso prático' que é produto da exposição continuada a condições semelhantes àquelas em que estão colocados, eles antecipam a necessidade imanente ao fluxo do mundo" (3).

    Ora, é esse antecipar-se à necessidade imanente ao fluxo do mundo que fundamenta o que Bourdieu chama de estratégias. Estas objetivam a reprodução social e biológica do grupo familiar. Se possível, também a reprodução de sua condição de pequenos produtores rurais, evitando dessa forma a inviabilidade da produção, a expoliação total e a marginalização. As estratégias seriam "produto do senso prático como sentido do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido". Pensar assim permite uma compreensão mais totalizante das realidades e das decisões de sair do lugar que se costuma chamar simplesmente de "migração" ou de "movimentos migratórios".

    Lembrando que foi a partir dos anos 1990 que o tema das "migrações" – até então restrito aos demógrafos, geógrafos ou religiosos – retornou com força à pauta política internacional e, consequentemente, à pauta dos Estados nacionais. Estava na agenda dos organismos internacionais, das instituições financeiras multilaterais e das cúpulas governamentais. Discutia-se, sobretudo, "migração e desenvolvimento", com ênfase nos seus aspectos econômicos remessas) e de segurança internacional (tráfico de pessoas e de migrantes).

    Uma leitura detalhada de documentos oficiais sobre a "questão migratória" e sua "governança" identifica imediatamente a utilização de conceitos, categorias e modelos interpretativos onde o sujeito parece desaparecer, obscurecido por fluxos, correntes e tendências migratórias. Existe, pode-se dizer, um "migrante" genérico, algo como uma subespécie do "pobre" genérico, também objeto de convenções, tratados, relatórios e avaliações internacionais.

    A ausência da perspectiva do sujeito é uma das chaves para a crítica da antropologia brasileira aos chamados estudos migratórios, traduzida na já clássica proposição de Moacir Palmeira e Alfredo Wagner no trabalho intitulado A invenção da migração (4), que tem como tema emprego e mudança socioeconômica do Nordeste dos anos 1970. Os autores alertam para o risco de reunirmos como um conjunto de fenômenos da mesma natureza (no caso as migrações) situações que são pensadas, vividas e narradas de forma diversa pelas pessoas que são o suporte dos conceitos construídos (no caso, os migrantes).

    Isto não significa que a antropologia brasileira não tenha se voltado para o assunto, sempre com um olhar diverso. Destacam-se os trabalhos de Giralda Seyferth, que a partir das linhas de pesquisa "minorias nacionais", "relações interétnicas" e "estudos camponeses", produziu uma sólida análise das políticas de imigração do Estado brasileiro iniciadas no final do século XIX, fortemente influenciadas por ideais de branqueamento da população brasileira e, posteriormente, de abrasileiramento da população imigrante. Consoante suas pesquisas, a chamada "questão migratória" sempre foi, em todos os tempos, um assunto controverso, tendo em vista que a imigração (a sua dimensão mais manifesta) produziu, entre outras coisas, conflitos políticos e sociais, negociações, racismos, diversidades culturais, minorias e identidades contrastantes no interior do Estado-nação.

    CONCLUSÃO Temos então duas tarefas, dois approachs teóricos e metodológicos realizados pela antropologia: com os grupos que estuda e com as categorias construídas sobre estes mesmos grupos. A importância das categorias atribuídas são de importância fundamental para a antropologia, uma vez que, como bem afirma Bourdieu, necessitamos de uma sociologia da percepção do mundo social. O que seria uma sociologia da percepção do mundo social para Bourdieu?A sociologia da construção das visões de mundo, uma vez que estas visões de mundo contribuem para a construção desse mundo. Em outras palavras, é necessário entender tanto a realidade objetiva quanto os diferentes significados dados pelos diferentes protagonistas com visões do mundo e posicionamentos distintos nesse espaço social.

    A travessia de fronteiras político-administrativas internacionais é detonadora de uma série de circunstâncias para o sujeito em deslocamento, especialmente em função do controle dos Estados nacionais, gerador de tipologias, identidades e, muitas vezes, criminalizações. Daí a importância de etnografias que apreendam como grupos sociais narram a sua história e a história de vida de seus membros, a partir de categorias próprias. Pensar estes grupos sociais com a categoria "migrantes" e seus deslocamentos como "migração" tem, historicamente e politicamente, obscurecido situações e trajetórias de vida diversas, negando o papel fundamental das estratégias de reprodução social na tomada de decisão para mudanças espaciais e adaptações a novos cenários.

     

    Marcia Anita Sprandel é antropóloga, assessora técnica do Senado Federal. Integra o Comitê de Migrações Internacionais da Associação Brasileira de Antropologia.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. RBSE • Vol. 4 • nº 12 • dezembro de 2005 • ISSN 1676-8965 • 265

    2. Idem

    3. Bourdieu, P. no artigo "Das regras à estratégia", publicado no Brasil em Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.p 23)

    4. Palmeira, M. e Almeida, A. W. B. A invenção da migração. Projeto emprego e mudança socioeconômica no Nordeste. Rio de Janeiro, Museu Nacional/UFRJ -1977.