SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100014 

     

    Conflitos por terra e água no Alto Solimões envolvendo povos e comunidades tradicionais.

    Reginaldo Conceição da Silva

     

    Os múltiplos usos dos recursos florestais e hídricos e a variedade de agentes sociais evidenciam a complexidade dos fenômenos associados à sociodiversidade amazônica e as estratégias diferenciadas de povos tradicionais face a seus direitos territoriais. As oposições a estes usos, por interesses que pressionam o mercado de terras, evidenciam os inúmeros conflitos sociais por acesso a terras e água, que dispõem as comunidades tradicionais num cenário de incertezas face ao futuro.

    Na mesorregião do Alto Solimões, na fronteira tríplice Brasil, Colômbia e Peru, as tensões sociais têm aumentado, devido à intensificaçao da ação ilegal de madeireiros, grileiros, garimpeiros, empresas mineradoras e pescadores comerciais envolvendo terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, ribeirinhos e comunidades agroextrativistas.

    Este texto visa um breve mapeamento dos conflitos por terra e água, no Alto Solimões, no estado do Amazonas. Para tal, utilizamos dados secundários extraídos dos Informativos da Comissão Pastoral da Terra – CPT – 2011 (1), e de informações obtidas nos órgãos públicos, localizados na cidade de Tabatinga, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), no período de 2009 a 2012, bem como de observações de campo.

    Acerca da Amazônia Ocidental, escreve Becker (2): "é forte a presença de populações indígenas, caboclas e de forças militares". A autora continua "A região é também marcada pela vulnerabilidade das fronteiras políticas com Colômbia, Peru e Bolívia". Cabe-nos chamar a atenção para o fato de que a mesorregião do Alto Solimões, abrange terras tradicionalmente ocupadas justapostas aos territórios colombiano e peruano, cujas populações indígenas e ribeirinhas perpassam as jurisdições territoriais e políticas.

    No tocante às características sociais e espaciais do Alto Solimões, Becker reitera que:

    "Apresenta e maior diversidade cultural e étnica, decorrente da convivência de três nacionalidades na fronteira política com o Peru e a Colômbia, onde é forte a mobilidade espacial em torno de Tabatinga e Letícia. Ademais, as populações ribeirinhas e extrativistas são significativas e os núcleos urbanos relativamente mais numerosos" (2).

    Quanto à sua composição, a mesorregião é composta dos municípios: Tabatinga, Benjamin Constant, São Paulo de Olivença Atalaia do Norte, Santo Antônio do Iça, Amaturá, Tonantins, nos quais convivem os seguintes povos indígenas: Tikuna, Kokama, Kambeba, Kulina, Kanamari, Katukina, Mayoruna, Miranha e Cayxana. Nesta configuração, percebe-se, pela quantidade de cidades e pela diversidade de grupos indígenas, que a divisão territorial aos moldes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é pouco expressiva, quando se tenta entender a complexa relação socioespacial no contexto fronteiriço.

     

     

    Importa destacar que a demarcação e criação de terras indígenas – TI, sob responsabilidade da Funai, nessas unidades espaciais, não foi suficiente para assegurar-lhes o direito de uso do território, enquanto espaço de uso tradicional. Há conflitos com interesses que pretendem usurpar as terras indígenas. Há conflitos que negam os direitos constitucionais e a ocupação tradicional, contrariando também o que estabelece o Decreto 6.040 de fevereiro de 2007, que determina a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT. (3)

    Uma datação desses conflitos pode ser registrada com a ocorrência do chamado "Massacre do Capacete", perpetrado por madeireiros e registrado pelo Máguta-CDPAS (Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões) na publicação de 1988 intitulada "A lágrima Tikuna é uma só" (4): "Viemos comunicar que hoje, 28 de março de 1988, às 12 horas do dia, nós reunidos entre 4 comunidades, na localidade Ticuna São Leopoldo no Amazonas, município de Benjamin Constant, na casa do Ticuna Aseliares Flores Salvador, aconteceu uma grande tristeza entre nós. Que 20 homens armados, homens civilizados armados com espingardas calibre 16, rifles, revólver e metralhadora ameaçaram nós.

    Com esta ameaça, eles mataram em adultos e crianças 11 pessoas. E 22 ficaram feridas. As comunidades que estavam reunidas são: S.Leopoldo, Novo Porto Lima, Bom Pastor e Porto Espiritual." (Carta–relatório escrita na Aldeia de Novo Porto Lima, na noite do massacre, antes da chegada da Funai e da Polícia Federal, pelo professor Ticuna dessa localidade, Santo Cruz Mariano Clemente ou Pucuracu).

    Uma outra ocorrência, que difere da anterior por estar referida a tensões entre comunidades tradicionais, foi registrada, dez anos depois, por Carvalho (5) (2010, p.47 – 48), na homologação de Terras Indígenas do Vale do Javari, em 1998, no município de Atalaia do Norte. Segundo o autor foi instituída "uma das maiores reservas da Amazônia, beneficiando várias etnias indígenas; entretanto, os agricultores ribeirinhos, remanescentes de antigos soldados da borracha, tiveram de deixar suas terras, casas e demais benfeitorias", tal medida desencadeou uma tensão, que perdura até os dias de hoje. E, continua o autor, "apenas uma pequena parte dos ribeirinhos recebeu indenização do governo".

    Ao serem compelidos a deixarem essas terras, segundo Carvalho (5) (2010,p. 175) "um dos maiores deslocamentos humanos do estado do Amazonas", aproximadamente seiscentos ribeirinhos foram fixar-se na cidade de Tabatinga, fronteira entre Brasil-Colômbia-Peru.

     

     

    Mediante essas diferentes modalidades de conflito, as terras tradicionalmente ocupadas, entendidas aqui como "os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária", como reza o Decreto 6.040 de fevereiro de 2007, Art. 3º, não estariam longe de serem transformadas em palco de disputas, sobretudo num momento em que os interesses dos agronegócios avançam sobre a faixa de fronteira.

    A CPT, preocupada com tal recorrência, acompanha vários conflitos envolvendo o uso de terras e águas no Alto Solimões, senão vejamos:

    Devido às suas características geográfica e étnica, essa mesorregião, envolvida historicamente em conflitos por terra e água, tem em comum entre os municípios impasses envolvendo, muitas vezes, os próprios poderes executivos. Alguns desses litígios se arrastam por anos e seu final não parece se descortinar a curto ou médio prazo. As atividades econômicas das populações indígenas encontram-se subordinadas aos interesses que controlam a comercialização dos produtos oriundos de práticas agrícolas, extrativistas e pesqueiras.

    Uma simples visita às feiras livres e ruas centrais dessas cidades que sediam os municípios, reflete uma dúbia situação deveras conflituosa. Por um lado, a ausência de pequenos agricultores, produzindo numa escala que atenda ao fornecimento regular de alimentos à população, revelando pontos críticos das políticas agrícolas. De outro as iniciativas agrícolas voluntárias e absolutamente autônomas de indígenas e ribeirinhos, que lavram a terra de acordo com uma dinâmica sazonal e, assim, produzem alimentos frescos (frutas, verduras, legumes e pescados). Além disso, os centros urbanos não dispõem de locais apropriados para a comercialização e armazenamento dos produtos. Uma das dimensões dos antagonismos se configura na oposição entre uma camada de comerciantes, designada como atravessadores, e os produtores diretos. Outra dimensão se refere às tensões entre o poder público e os donos de empreendimentos comerciais fixos, que comercializam roupas, alimentos, bebidas e materiais permanentes, tais como os equipamentos de computação, mobiliário etc. Os interesses comerciais em flagrante expansão abrangem a pesca, a coleta de peixes ornamentais, a atividade madeireira, a exploração mineral e a propriedade da terra.

     

     

    Na cidade de Tabatinga destaca-se também que o uso de força policial para dirimir litígios, envolvendo a disputa por recursos naturais, é recorrente.

    Os tipos de conflitos mostrados acima, bem como os agentes envolvidos, possuem uma peculiaridade histórica, que revigoram no espaço-tempo sob as distintas políticas públicas no âmbito nacional, que são ineficazes quando se trata de assegurar os direitos constitucionais e aqueles preconizados por convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil.

    Longe de grandes empreendimentos estratégicos do ponto de vista governamental, o Alto Solimões, enquanto região de diversidade sociocultural, dotada de um aparato institucional e militar, apresenta ocorrências de conflitos, sem perspectiva imediata de solução, envolvendo o direito ao uso das terras, águas e demais recursos florestais e minerais.

     

    Reginaldo Conceição da Silva é professor de geografia da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) – Tabatinga e membro do Grupo de Pesquisa Saberes e Práticas Discursivas na Amazônia (IFRO). Email: reginho.obi@hotmail.com.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

    1. Canuto, A..; Luz, C.R. da S. e Wichinieski, I. (Orgs.) Conflitos no campo Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional Brasil, 2012.

    2. Becker, B. K. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

    3. Brasil. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que "Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais".

    4. Máguta-CDPAS- A lágrima Ticuna é uma só. Benjamin Constant. 1988

    5. Carvalho, J.B. de. Desmatamentos, grilagens e conflitos agrários no Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2010.