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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100021 

     

    O tempo biológico e a defesa do organismo: uma conversa bidirecional entre a glândula pineal e o sistema imunológico

    Regina P. Markus
    Erika Cecon

     

    A evolução dos organismos de unicelulares a pluricelulares exigiu um alto grau organizacional, baseado principalmente na especialização de grupos de células em órgãos e tecidos. A sincronização entre as diferentes funções é essencial para que seja garantida a sobrevivência do todo. Tal sincronia não envolve somente uma organização espacial dos diferentes componentes, mas também uma organização temporal. Embora não percebamos a influência do tempo a maioria das atividades diárias, como acordar, dormir, alimentar-se, requerem uma refinada organização temporal. Esta organização permite que nosso organismo antecipe funções que acontecem mais ou menos no mesmo horário.

    A regularidade dessas ações não é independente de nossa vontade. Existe um sistema de grande complexidade que regula a organização temporal de diversas funções biológicas permitindo um ajuste à alternância claro/escuro. O dia e a noite são os grandes regentes de nossas funções rítmicas e a alternância claro/escuro ambiental tem que ser traduzida em termos hormonais e neurais.

    Uma importante pergunta respondida na segunda metade do século XX foi: como cada célula do corpo sabe que é dia ou noite? Para poder marcar o tempo, o nosso organismo tem um relógio interno, o chamado relógio biológico, que cicla com um período de aproximadamente 24 horas. Este relógio é autônomo, mas deve ser sempre ajustado ao tempo real, isto é, ao tempo do planeta. O relógio biológico central corresponde a um grupo de neurônios localizados no hipotálamo, uma região do cérebro responsável pelo controle de funções vitais e autônomas, tais como a fome, sede, respiração, circulação do sangue, dentre outras. Esse grupo de neurônios é conhecido pelo nome de núcleo supraquiasmático (NSQ), denominação decorrente da localização dessas células logo acima do quiasma óptico.

    As células do NSQ mantêm um ritmo de aproximadamente 24 horas mesmo quando colocadas em cultura — indicando que sua atividade rítmica é independente da informação temporal proveniente do meio ambiente. Portanto, para uma adaptação aos ritmos ambientais estas células são sincronizadas diariamente à informação de claro/escuro através de uma via sináptica que conecta a retina ao NSQ. No início do século XXI foi demonstrado que a retina tem um pigmento especial (melanopsina) localizado em neurônios que conectam a retina ao NSQ, e a percepção da luz por estes pigmentos ajusta o relógio cada vez que inicia-se um novo dia (1).

    Sabendo como o relógio é reajustado, vamos rapidamente entender como esta informação é enviada para todo o organismo. Os NSQs conectam-se também por via neural com a glândula pineal — uma glândula em forma de pinho localizada na base do cérebro, que é ativada pelo escuro e produz um hormônio — melatonina. A melatonina cai rapidamente na circulação sanguínea, informando a todas as células do organismo: ESTÁ ESCURO! — por isso ela também é conhecida como o hormônio do escuro.

    Muitos pesquisadores queriam entender o que fazia esse hormônio — e a controvérsia na literatura era grande. Nos anos de 1950, alguns autores diziam que era um hormônio que inibia as gônadas (ovários e testículos), enquanto outros obtinham resultados contrários. Uns afirmavam que era um hormônio que facilitava a indução do sono, enquanto outros afirmavam o contrário! Essa controvérsia só foi resolvida quando ficou realmente confirmado que a função da melatonina era marcar o escuro – e, dessa forma, os experimentos feitos com animais noturnos, como os roedores, muito usados como modelos experimentais, indicavam que a melatonina favorecia a atividade, enquanto que os feitos com humanos indicavam que esse hormônio favorecia o sono. Assim, independentemente do que o organismo está programado para fazer nessa fase de escuro (entrar em atividade ou em repouso), a melatonina é a responsável por essa informação ambiental. Quanto à reprodução, há sempre o objetivo das crias nascerem no final da primavera ou no início do verão, época com mais fartura de alimentos e com temperaturas mais adequadas para a sobrevivência do recém-nascido. Como durante as noites longas de inverno há maior produção de melatonina, há uma involução das gônadas dos animais com curto período de gestação, pois estes devem copular no início da primavera, quando os dias começam a ficar mais longos e as noites mais curtas. O inverso ocorre com os animais que precisam de longos períodos de gestação. Russel Reiter, em um artigo seminal, introduz o conceito que a melatonina informa as horas e as estações do ano para todo o organismo (1).

    QUANDO O CORPO DEIXA DE PERCEBER O DIA E A NOITE Existem algumas situações em que o ajuste entre os ritmos internos e a informação luminosa ambiental parece falhar – são aqueles dias em que nos sentimos doentes. Em uma gripe, por exemplo, sentimos dor generalizada no corpo, não temos muita energia para realizar tarefas, sentimos sonolência durante o dia mas temos dificuldade de conciliar o sono à noite. Esse conjunto de sensações é denominado "comportamento doentio". Nesta condição o organismo perde a capacidade de ser regulado pela alternância dia/noite, e a principal informação que regula as funções biológicas passa a ser proveniente de seu sistema imunológico ativado.

    A compreensão de como a percepção do meio interno pode afetar a percepção do mundo externo tem sido buscada por nosso grupo nos últimos 20 anos e, recentemente, foi possível determinar os mecanismos moleculares, celulares e organísmicos que mostram que a glândula pineal pode ser controlada pelo estado de higidez orgânica (quando se está saudável, mas com diferentes propensões para entrar em estado patológico).

    ENVOLVIMENTO DA GLÂNDULA PINEAL NA DEFESA DO ORGANISMO Indícios de que a glândula pineal estaria relacionada de alguma forma com o sistema imune foram notados já na década de 1970, durante os primeiros experimentos em busca da função da pineal. Animais que haviam passado por procedimento cirúrgico para retirada da glândula pineal foram acompanhados por todo seu desenvolvimento e, dentre as alterações observadas, apresentaram aceleração na involução do timo, órgão do sistema imune relacionado com a maturação de linfócitos. A partir da década de 1990, muitos estudos demonstraram que a melatonina podia atuar como um anti-inflamatório, mas havia grandes dúvidas se esta era uma função do hormônio da pineal ou uma propriedade da molécula (melatonina) quando administrada ao organismo em grandes concentrações. De fato, a quantidade de melatonina descrita para ter um efeito anti-inflamatório era cerca de 10 mil vezes maior que a máxima obtida no sangue. Mesmo não sendo uma ação hormonal da melatonina, sua propriedade anti-inflamatória continua sendo estudada até hoje com o intuito de buscar novos fármacos para aplicação em doenças inflamatórias (2).

    Outro achado interessante foi feito pelo grupo do psicólogo Rand Nelson, da Universidade de Ohio (3), que verificou que a imunidade era diferente no inverno e verão, mostrando que no inverno muito mais energia é dirigida para os mecanismos de defesa do que no verão. No entanto, a conexão entre esses efeitos e o aumento de melatonina nas noites longas de inverno não eram tão evidentes como o que descrevemos acima para a reprodução. Os pesquisadores não obtinham resultados que fossem de fácil reprodução e que permitiriam comprovar que o hormônio do escuro, produzido pela glândula pineal, teria um papel relevante no controle das respostas de defesa.

    Uma das mudanças conceituais importantes foi considerar que a melatonina poderia ter duas ações, uma cronobiótica (hormônio do escuro) e outra independente de ritmos e que poderia ser obtida quando essa molécula era administrada como um fármaco (4). Dentre as ações cronobióticas, podemos citar não só o ajuste do ritmo de sono e vigília, mas também o ajuste de diversos outros ritmos como o de temperatura, de reprodução, e o de liberação de alguns hormônios e citocinas (mediadores do sistema imunológico). Com relação aos efeitos não-cronobióticos da melatonina, merece destaque sua participação como moduladora de diversos aspectos do sistema imunológico, tais como na proliferação das células imunológicas e na indução da produção de citocinas, e seu papel como antioxidante, um dos aspectos mais focados atualmente nos estudos da melatonina. A molécula é capaz de reagir diretamente com radicais livres, neutralizando-os, além de induzir a expressão de enzimas envolvidas nos processos antioxidantes.

    Como os efeitos não-cronobióticos da melatonina eram observados com concentrações bem acima daquela liberada na corrente sanguínea durante a noite, restava saber se tais concentrações poderiam ser encontradas no organismo em alguma situação que não envolvesse administração de melatonina exógena. A constatação de que há produção de melatonina em outros órgãos que não a pineal, em determinadas condições, lançou nova luz ao entendimento dos diferentes aspectos dessa molécula tão versátil. Entretanto, a compreensão do papel da melatonina no âmbito organizacional, considerando seus diferentes papéis, locais e condições de produção, ainda está em sua fase inicial.

    Os primeiros estudos de nosso grupo estavam focados no efeito da melatonina como agente anti-inflamatório (4-7). A resposta inflamatória é caracterizada, de forma geral, pelos seguintes sinais: dor, calor, rubor e tumor. A dor é decorrente da própria lesão ou agressão sofrida e também por algumas substâncias liberadas no local; o calor é devido ao aumento na irrigação sanguínea no local, o que também resulta no rubor; já o tumor é decorrente de aumento na permeabilidade vascular, de modo que células do sistema imune e líquido migram para o tecido lesionado. Ao induzir uma lesão na pata de camundongos, foi observado que o inchaço da pata apresentava uma ritmicidade, estando mais inchada durante o claro e menos inchada durante o escuro. A retirada da glândula pineal fez com que esse ritmo desaparecesse, indicando que a melatonina estaria impondo esse ritmo na lesão. Posteriormente, foram demonstradas as bases moleculares desse efeito da melatonina. Analisando ação hormonal da melatonina sobre células endoteliais, as células que revestem os vasos sanguíneos, observou-se que a melatonina inibe a permeabilidade dessa camada celular, impedindo que as células do sistema imunológico migrem da corrente sanguínea ao tecido lesionado. Assim, na presença do hormônio, ou seja, na fase de escuro ambiental, essa permeabilidade está inibida, o que está de acordo com a observação de que o inchaço na pata dos camundongos é menor durante a noite.

    Tornou-se intrigante, porém, o fato de que animais de hábito noturno poderiam ter sua resposta imunológica prejudicada pela melatonina justamente no período em que estão ativos e expostos a infecções. Isso nos levou, então, a investigar como a glândula pineal responde a mediadores inflamatórios.

    MELATONINA E A DEFESA DO ORGANISMO A exposição da glândula pineal a padrões moleculares associados a patógenos (Pamps, sigla do inglês), tais como o lipopolissacarídeo (LPS) presente na membrana de bactérias, resulta em bloqueio da expressão da enzima chave para a síntese de melatonina. O mecanismo de ação responsável por esse bloqueio envolve a ativação de receptores de membrana para Pamps e a ativação de um fator de transcrição, conhecido como NF-kB, que regula a expressão de um pacote de genes responsáveis pela montagem da primeira resposta de defesa do organismo.

    O bloqueio da produção noturna de melatonina tem duas importantes consequências. A primeira é permitir uma eficiente migração de células de defesa do sangue para o local injuriado — e a segunda é deixar de informar ao organismo o ciclo de iluminação ambiental e permitir que este se concentre de forma integral no processo de eliminação do patógeno (6).

    Como sabemos, a biologia é muito complexa e os mecanismos moleculares são processos altamente modulados pelo ambiente em que são desencadeados. Este conceito genérico é verdadeiro no que tange o controle da produção de melatonina. Muito já é conhecido sobre o efeito de Pamps sobre células do sistema imunológico, em especial sobre macrófagos — células responsáveis por "capturar" e matar micróbios e agentes patogênicos em geral. Estas células normalmente não produzem melatonina. Entretanto, foi verificado que a ativação dessas células por Pamps leva à expressão da enzima chave na síntese de melatonina, resultando em produção local de melatonina pelos macrófagos. Por ser uma produção restrita em um local compartimentalizado (no tecido que está sofrendo a lesão), as concentrações de melatonina produzida por essas células chega a ser centenas de vezes maior do que a encontrada na corrente sanguínea no pico noturno. Conforme comentado anteriormente, a melatonina em altas concentrações exerce funções não-cronobióticas e que são muito relevantes na resolução do quadro inflamatório.

    RESTAURAÇÃO DA PRODUÇÃO DE MELATONINA PELA PINEAL Através de experimentos com as células do sistema imunológico que fazem fagocitose e produzem melatonina (macrófagos), constatou-se que há produção apenas na presença de um agente patogênico (ex: bactéria, fungos). Após a morte do agressor, a produção de melatonina cessa.

    A questão final para fechar o ciclo desencadeado pelo agente agressor é a restauração da produção hormonal da glândula pineal. Interessantemente, isso é realizado com o auxílio do próprio sistema imunológico. Entre as substâncias produzidas na fase de recuperação, estão os hormônios anti-inflamatórios da glândula adrenal — os glicocorticóides. Nosso laboratório mostrou que na glândula pineal esses hormônios inibem o fator de transcrição NF-kB, permitindo que novamente o escuro possa induzir a expressão da enzima chave na síntese de melatonina. Esse ciclo da influência de patógenos sobre a produção pineal e extra-pineal de melatonina foi denominado de eixo imune-pineal.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta da existência de um eixo imune-pineal cria um novo paradigma para o entendimento da biologia do tempo e também esclarece várias controvérsias sobre as funções da melatonina.

    De acordo com os estudos acima descritos, a melatonina endógena além de ter uma função cronobiótica também atua de forma independente da alternância claro/escuro. O novo paradigma criado pela proposta do eixo imune-pineal implica que organismos atacados agudamente perdem a noção do dia e da noite. Do ponto de vista clínico, é bem conhecido o chamado "comportamento doentio", que envolve uma incapacidade de coordenar horários para vigília e para repouso. À noite, é difícil conciliar o sono e, durante o dia, há uma vontade contínua de dormitar. A falta da produção de melatonina induzida pela ativação do eixo imune-pineal poderia ser uma das causas desse "comportamento doentio".

    A ativação do eixo imune-pineal é um processo que permite uma melhor defesa do organismo e deve passar a ser considerada como parte integrante da resposta imune-inata de mamíferos. Essa ativação compreende um ciclo completo que se inicia com a perda da sinalização do escuro, a resolução do fator que gerou essa resposta e a volta à produção noturna de melatonina. A questão que se impõe é o que ocorre quando esse ciclo não é completo. Apesar de ainda não serem conhecidas alterações específicas resultantes da falta de produção de melatonina noturna, certamente esses sujeitos não estarão vivendo em situação fisiológica apropriada. Uma das formas que temos para entender o resultado dessa falta hormonal é buscar doenças em que essa perda ocorra de forma sistemática. Um exemplo são os pacientes com doença de Alzheimer (8), que não apresentam ritmo diário de melatonina e que, quando tratados com este hormônio, apresentam um retardo na progressão da doença.

    Em suma, a glândula é capaz de responder não apenas ao ciclo claro/escuro ambiental, mas também é um sensor de agentes patogênicos. O paradigma do eixo imune-pineal inicia uma nova fase no entendimento da relação entre o tempo biológico e a defesa de nosso organismo. A incapacidade do organismo em sincronizar suas atividades ao meio ambiente deve gerar condições favoráveis ao estabelecimento de patologias.

     

    Regina P. Markus é biomédica, doutora e livre docente em farmacologia, professora titular do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP); Email: rpmarkus@usp.br.
    Erika Cecon é bióloga, mestre em fisiologia pelo Departamento de Fisiologia do IB-USP; Email: erika.cecon@usp.br.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Reiter, R.J. – "The melatonin rhythm: both a clock and a calendar". Experientia Vol.49, no.8, pp.654-664, 1993.

    2. Mauriz, J.L.; Collado, P.S.; Veneroso, C.; Reiter, R.J.; González-Gallego, J. – "A review of the molecular aspects of melatonin's anti-inflammatory actions: recent insights and new perspectives". J Pineal Res. 2012 may 31. [Epub ahead of print]

    3. Walton, J.C.; Weil Z.M.; Nelson RJ. "Influence of photoperiod on hormones, behavior, and immune function". Front Neuroendocrinol. Vol.32, pp.303-319, 2011.

    4. Cecon E. and Markus R.P. "Relevance of the chronobiological and non-chronobiological actions of melatonin for enhancing therapeutic efficacy in neurodegenerative disorders". Endocrine, Metabolic & Immune Drug Discovery Vol.5, no.2, pp. 91-99, 2011.

    5. Markus R.P.; Ferreira Z.S.; Fernandes P.A.; Cecon E. – "The immune-pineal axis: a shuttle between endocrine and paracrine melatonin sources". Neuroimmunomodulation. Vol.14, pp.126-133, 2007.

    6. Markus R.P. and Ferreira Z.S. – "The immune-pineal axis: the role of pineal and extra-pineal melatonin in modulating inflammation". Advances in Neuroimmuno Biology, Vol.1, pp. 95-104, 2011.

    7. Fernandes P.A.C.M. and Markus, R.P. – "Melatonin and inflammation – the role of the immune-pineal axis and the sympathetic tonus". In: Melatonin in promotion of health. Edited by Watson RR – Published by Taylor and Francis, 2011.

    8. Markus, R.P.; Silva, C.L.M.; Franco, D.G., Barbosa, E.M. & Ferreira, Z.S. "Is melatonin modulation of nicotinic acetylcholine receptors a relevant fact for the therapy with cholinergic drugs?". Pharmacology & Therapeutics, Vol.126, pp.251-262, 2010.