SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.1 São Paulo Jan. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000100024 

    CINEMA

    Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer mockumentary

     

    "Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer documentários." Esse slogan da TV Brasil para o programa DOC TV, resume um pouco do espírito renascentista do cinema documentário nos últimos 20 anos. Na esteira dessa efervescência documentarista mundial, um gênero específico tem animado cineastas independentes e, também, produções de maior orçamento. Trata-se de uma espécie de "filho bastardo" do documentário e da ficção, um híbrido muitas vezes renegado entre os estudos mais puristas. Falamos do mockumentary, fake documentary ou, em português, pseudodocumentário: uma obra de ficção enunciada de forma a emular um filme documentário.

    Mockumentaries são muito mais comuns do que imaginamos. Muitas vezes, o espectador mais desavisado mal se dá conta deles. Os mockumentaries circulam pelos mais variados canais de comunicação: rádio, TV, cinema e, atualmente, internet. Assim como a tecnologia digital beneficiou o cinema documentário, web e câmeras superportáteis também ajudam a produzir mockumentaries. O gênero tem antecedentes célebres, como a adaptação para o rádio do romance A guerra dos mundos, de H. G. Wells (1939), sob a batuta do gênio Orson Welles, além de puros exemplares de prestígio, como Zelig (1983), de Woody Allen, ou o cult movie This is spinal tap (1984), filme de Rob Reiner (no papel do documentarista Marty DiBergi) que relata a trajetória estelar de uma banda fictícia. Vários filmes independentes, de baixíssimo orçamento, optam pela estratégia "mockumentária", obtendo repercussões inesperadas. Na era da internet, o fenômeno se intensifica. The blair witch project (1999), de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, é outro exemplo célebre de mockumentary de ampla repercussão. A partir dele, a própria indústria do cinema retoma o interesse por esse gênero "maldito", lançando filmes como Contatos de 4º grau (2009), de Olatunde Osunsanmi, ou Apollo 18 (2011), de Gonzalo López-Gallego. O espanhol Rec (2007), de Jaume Balagueró e Paco Plaza, assim como o disaster movie Cloverfield (2008), de Matt Reeves, também têm lá suas afinidades com o atraente campo do "mockumentário".

     

     

    É bom salientar, porém, que mockumentaries não são obrigatoriamente irônicos, debochados, satíricos ou paródicos. Podem ser absolutamente cínicos e melancólicos – por vezes combinam-se muito bem ao thriller e ao cinema de horror. Mesmo o drama baseado em fatos reais já recorreu ao método "mockumentário", como No lies (1973), de Mitchell Block, curta-metragem extremamente perturbador, no qual uma atriz representa uma mulher que fora estuprada. O roteiro foi baseado em gravações de mulheres estupradas de fato, entrevistas obtidas nos arquivos da polícia.

    FALANDO DO APARTHEID Quem assistiu a Distrito 9 (2009), de Neill Blomkamp, conheceu um bom exemplo de filme contemporâneo de longa-metragem, de produção bem cuidada, alinhado à tradição dos mockumentaries. Ele expande um dos mockumentaries mais genuínos e criativos dos últimos anos, Alive in Joburg (2006), do mesmo diretor sul-africano. Com recurso à retórica e prosódia típicas do cinema documentário, Alive in Joburg relata uma situação de contatos imediatos de 3º grau em Johannesburg, África do Sul, em que os habitantes da cidade se veem às voltas com a incômoda presença de alienígenas, os quais não tardam a ser discriminados – uma metáfora do apartheid. Para realizar Alive in Joburg, Blomkamp recorreu a uma estratégia de deslocamento de discurso (descontextualização): entrevistou pessoas que viveram o fluxo imigratório na pele na capital sul-africana, transformando os depoimentos reais dos refugiados em uma espécie de documentário sobre alienígenas indesejados pela população local.

    Distrito 9 expande o tema do curta Alive in Joburg para longa-metragem, com produção mais esmerada. O título do filme foi inspirado no Distrito 6, uma área residencial na Cidade do Cabo que ficou conhecida por conta de 60 mil moradores que foram expulsos na década de 1970, durante o regime do apartheid. Como em Alive em Joburg, explora a problemática ligada à convivência inter-racial ou intercultural. Mistura de Cidade de Deus (dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), A mosca (David Cronenberg, 1986) e A metamorfose (1915) de Kafka, Distrito 9 usa alienígenas como metáfora e retórica documental/televisiva para mostrar como o absurdo e o fantástico podem fazer parte da nossa realidade mais corriqueira.

     

     

    Outro exemplo de jovem cineasta contemporâneo pertencente a um suposto "clube dos mockumentaristas" é o americano de origem latina Alex Rivera. Rivera usa seu cinema altamente criativo como ferramenta para seu ativismo político. É nesse panorama que ele realizou Sleep dealer (2008), filme beneficiado pelo Sundance Institute. Não é exatamente um mockumentary; trata-se de um filme de ficção, no contexto do cinema independente, com traços documentais. O espírito "mockumentarista" do filme estaria em suas ramificações transmídia, especialmente no pseudo-website oficial da empresa Cybraceros, citada no filme. Mas o fato é que, conforme explica o próprio diretor, a idéia de Sleep dealer remonta a 1997, quando Rivera lê um artigo da revista Wired sobre telecommuting, ou o impacto da internet nas relações de trabalho. No artigo era debatida a hipótese de um futuro em que trabalhadores cumprissem suas funções profissionais sem sair de casa. Rivera cruzou essa hipótese com a realidade dos imigrantes e imaginou um futuro em que trabalhadores estrangeiros não precisassem mais deixar seus países. O diretor conta que não soube como expressar visualmente essa ideia até se deparar com o documentário Why Braceros? (1959), filme de propaganda produzido pelo California Grower's Council no final dos anos 1940, e encontrado por Rivera nos Prelinger Archives. O programa Braceros foi estimulado pelo governo americano durante a Segunda Guerra Mundial, e consistia no oferecimento de postos temporários de trabalho para mexicanos nas lavouras dos EUA. Rivera então realizou Why cybraceros? utilizando imagens do documentário original (Why Braceros?), cenas especialmente gravadas em vídeo e animações digitais bastante simples e esquemáticas. O diretor disponibilizou seu mock promotional film na internet e teve uma resposta de público e crítica surpreendente.

    Como Sleep dealer, Why cybraceros? também trata do tema da exclusão social e dos fluxos migratórios – porém pela via da especulação satírica, na tradição de obras como o Micrômegas (1752) de Voltaire. No mock promotional film de Rivera, o governo dos EUA lança um programa revolucionário em que trabalhadores mexicanos operam de forma remota máquinas em solo americano. Com isso, é sanado um grande problema social: a necessidade da mão de obra mexicana, sem o inconveniente da presença física dos chicanos.

    No âmbito da internet, os mockumentaries se multiplicam em razão geométrica. Muitas vezes, tais filmes curtos aderem a atitudes de protesto e criticismo social, valendo-se das propriedades dos vídeos virais e assumindo a roupagem dos mock promotional films (falsas peças de propaganda ou falsos institucionais). Exemplo de mockumentary viral (ou mock promotional film, bem ao estilo de Why cybraceros?) pode ser o projeto Radi-Aid (http://www.africafornorway.no/), com vídeo disponível no YouTube. Em resumo, trata-se de uma galhofa com a suposta inversão dos fluxos de capitais e a instabilidade política e econômica mundial.

    No Brasil, exemplo de mockumentary inspirado é Recife frio (2009), filme de Kleber Mendonça Filho, sobre um estranho fenômeno meteorológico que altera radicalmente o clima de Recife-PE, cidade que começa a ter temperaturas abaixo de zero, neve e a aparição de pinguins nas praias. Outro belo representante do gênero é Avós, de Michael Wahrmann, curta-metragem selecionado para o Festival de Berlim de 2010. O pequeno Léo comemora seu 10º aniversário. Ganha meias de uma avó e cuecas de outra. Do avô, Léo ganha uma velha câmera Super-8, com a qual procura documentar a tentativa de trocar os presentes com as avós. Filmes em Super-8 de Marcos Bertoni, como Projeção (ANO), Recuerdos da República (ANO) e Biografia não-autorizada de Edir Macedo (ANO), também operam em maior ou menor grau no regime dos mockumentaries, assim como o célebre e premiado Ilha das Flores (1988), de Jorge Furtado, ou o singelo Sobre cinema e diálogos (2011), de Yuri Wesserman.

    OLHAR ACADÊMICO SOBRE O TEMA Em outubro passado, Bill Nichols, autor de Introdução ao documentário, professor e pesquisador americano da San Francisco State University, veio ao Brasil para uma série de palestras, entre elas, a que tratou do assunto: "Confundindo filmes: mockumentaries e outras formas de documentário irônico", em evento do Centro de Estudos em Cinema Documentário (Cepecidoc) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

    Para Nichols, os dois livros mais famosos sobre o mockumentary confundem o gênero com ficção que finge ser documentário – o que constitui um equívoco em sua opinião. Nichols assinala que normalmente os mockumentaries são identificados como filmes de ficção que emulam documentários. Em sua opinião, porém, o fenômeno é bem mais sutil, diz respeito a particularidades da manipulação da ironia no discurso audiovisual. Segundo Nichols, o momento inicial é de indecisão, em que o espectador primeiramente assiste a um mockumentary sem saber que se trata de um pseudodocumentário. Nichols observa que a ironia confunde o que os psicólogos cognitivos chamam de esquema ou schemata. Instala-se, nesse fenômeno muito sutil, subjetivo e particular, o suposto "encanto" do mockumentary, algo que Nichols traduz como uma espécie de "efeito Magritte" – a ideia inquietante de que "C'est n'est pas une pipe".

    Nichols desafia a ideia de que mockumentaries ridicularizam / "arremedam" (mock) documentários em particular, bem como a noção de que mockumentaries são ficção. Segundo o professor e pesquisador, mockumentaries não estão realmente ridicularizando ou parodiando qualquer documentário em particular, eles satirizam nossa ideia pré-concebida de documentário. Em resumo, Bill Nichols observa que os mockumentaries enquadram a ideia dos documentários, aquilo que desejamos encontrar num documentário.

     

    Alfredo Suppia