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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200003 

     

     

     

    URBANISMO

    Cidades nascem abraçadas a seus rios, mas lhes viram as costas no crescimento

     

    O Brasil tem a maior rede hidrográfica e possui a maior reserva de água doce do planeta. Se levarmos em conta a quantidade de água de territórios estrangeiros que ingressa no país pelas bacias amazônica, do Uruguai e do Paraguai, a vazão média de nossos rios é da ordem de 267 mil metros cúbicos por segundo, ou seja, pouco mais de 100 piscinas olímpicas por segundo. É muita água! Que tem um papel de grande importância na vida das pessoas.

    Mas o país mantém com seus rios uma relação ambígua: as cidades os abraçam para crescer e se desenvolver, criando importante laço para o desenvolvimento urbano e agrícola, mas os destroem, ao torná-los o principal meio de escoamento de esgoto. Os rios sofrem com a poluição, o assoreamento, o desvio de seus cursos e com a destruição das matas ciliares; e a beleza da paisagem fica obstruída pelo mau cheiro, mudança de coloração, incapacidade de uso original de seus recursos.

    Os cursos d'água possuem múltiplos usos: consumo humano , aproveitamento industrial, irrigação, criação animal, pesca, aquicultura e piscicultura, turismo, recreação, geração de energia, lazer e transporte. A arquiteta e paisagista Maria Cecília Barbieri Gorski, escreveu o livro Rios e cidades: ruptura e reconciliação, onde afirma que, em algumas regiões do Brasil, rios e córregos estiveram, e ainda estão, associados ao cotidiano de populações ribeirinhas, fornecendo água para as habitações e para ativação de engenhocas como monjolo e roda d'água. O leito fluvial continua sendo usado para o deslocamento de pessoas e mercadorias, para lavagem de roupas, para atividades extrativistas como a pesca e para a mineração de areia, argila e minerais como o ouro.

    Segundo dados do GeoBrasil – Recursos Hídricos, elaborado pela Agência Nacional de Águas, a irrigação na agricultura é responsável pelo maior percentual de água consumida (45%), com destaque para as regiões do Atlântico Sul, do Uruguai, do Paraná, Atlântico Nordeste Oriental e do São Francisco (ver gráfico). Mas existem grandes diferenças regionais nesse uso. Em quantidade consumida, predomina a região hidrográfica do Paraná que se destaca em todos os usos, com exceção da irrigação, na qual aparece em 3º lugar. A região do Atlântico Sudeste apresenta usos relevantes no abastecimento urbano e industrial devido a suas grandes metrópoles. Já nas regiões do Atlântico Nordeste Oriental, do Atlântico Leste e do São Francisco, onde a migração urbana foi menos intensa, a predominância é do uso da água no meio rural.

    RIOS QUE ATRAEM CIDADES Gercinair Silvério Gandara, historiadora e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), analisa as cidades brasileiras de um ponto de vista da beira, ou seja, da perspectiva do rio, do mar, do ribeirão, das estradas, da rodovia, da ferrovia, entre outras. E, se muitas de nossas cidades são de beira, várias cresceram a custa de seus rios. Por exemplo, em todas as capitais brasileiras, incluindo Brasília, rios tiveram papel importante no desenvolvimento urbano, ainda que muitas vezes eles estejam poluídos, canalizados ou com suas características físicas alteradas. Cidades ribeirinhas de médio e pequeno porte, como Penedo em Alagoas, Piracicaba em São Paulo e Blumenau em Santa Catarina, têm nos seus rios um fator de vitalidade e atração turística.

    Gercinair considera os rios um espaço social em constante transformação. Segundo ela, muitas cidades que nascem voltadas para os rios acabam virando-lhes as costas: "isto resulta das próprias dinâmicas históricas das cidades no cruzamento dos caminhos fluviais e terrestres; assim, as cidades-rios são chaves para a leitura do mundo e do ambiente".

    Com essa ótica, a historiadora estudou o rio Parnaíba, que banha os estados do Maranhão e do Piauí. Com a transferência da capital do Piauí, de Oeiras para Teresina, em 1852, atividades extrativistas e de comercialização e a navegação a vapor foram intensificadas e contribuíram para que o rio Parnaíba assumisse um importante papel de integração comercial. Teresina, que está situada no centro médio do rio Parnaíba, foi projetada e construída para alavancar o crescimento do Piauí e deter a influência que o Maranhão começava a exercer sobre o interior piauiense. Gercinair salienta que, em consequência da mudança da capital, surgiram e ressurgiram vários povoados à beira do rio Parnaíba, que mais tarde se tornaram vilas, cidades, empórios comerciais: "elas foram surgindo marcadas pelo tráfego das mercadorias transportadas pelo rio, durante a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX".

    Outra cidade cuja formação e desenvolvimento são marcados por rios é São Paulo, a sexta maior cidade do mundo. Para o historiador Janes Jorge, da Universidade de São Paulo, é impossível discutir a formação e o desenvolvimento de São Paulo sem considerar o papel dos rios Tietê, Pinheiros, Anhangabaú e Tamanduateí, e como a cidade e seus moradores se relacionaram com eles ao longo do tempo. Os jesuítas, liderados por Anchieta e incentivados pela Coroa portuguesa, fundaram seu Colégio no alto de uma colina, delimitada a oeste pelo vale do riacho Anhangabaú e a leste pelo rio Tamanduateí, afluente da margem esquerda do Tietê. Jorge acrescenta que "a colina era tida como mais propícia à defesa militar, do ponto de vista do europeu, impondo dificuldades de locomoção e defesa face aos atacantes e garantindo visibilidade ampla aos defensores". Mantinha-se, entretanto, a possibilidade de se obter tudo aquilo que os rios ofereciam aos indígenas, completa Jorge.

    Em seu livro Tietê, o rio que a cidade perdeu, Jorge aponta que, durante mais de três séculos, São Paulo se desenvolveu mantendo praticamente inalterada a conformação da bacia hidrográfica à qual se amoldava. Até o final do século XIX ocorreram "modestas intervenções nos traçados dos rios, cujas águas já recebiam pequenas cargas de esgotos e resíduos; nas várzeas houve a introdução de animais de criação, plantas domesticadas ou exóticas, corte das matas ciliares ou de cabeceiras; e a pesca e a caça eram habituais".

    Nas primeiras décadas do século XX, São Paulo transformava-se em grande cidade, com o setor industrial ganhando cada vez mais espaço. Janes Jorge explica que foi preciso repensar a relação entre a cidade e o seus rios e houve uma intensa disputa social por esse recurso valioso para a vida cotidiana dos moradores e a economia da cidade: "em linhas gerais buscava-se garantir o saneamento, o seu abastecimento de água e energia elétrica e incorporar as várzeas dos rios paulistanos à área urbana, transformando-as em vias expressas, área de lazer ou em espaço negociável no mercado de terras". A navegação, o uso do rio e de suas margens como área de lazer e o combate às enchentes, apesar dos debates, nunca se tornaram prioridades de fato, afirma Jorge. E acrescenta: "em meados do século XX, os rios passaram a meros canais de esgotos, receptáculos de todo tipo de dejetos, com águas poluídas e perigosas, isolados por pistas expressas de automóveis". Os rios da capital paulista, com suas águas, mesmo contaminadas, produziriam a energia elétrica que São Paulo e sua indústria precisavam, mas o cotidiano dos paulistanos se empobreceu brutalmente.

    A RECONCILIAÇÃO POSSÍVEL Mas ainda há esperança, pondera Janes Jorge, pois a sociedade pouco a pouco começa a discutir os rios com vigor, repudiando a situação atual e o conformismo: "Cidadãos procuram participar das discussões, ainda que seja algo incipiente; nas universidades pesquisas sobre diferentes dimensões dos rios se multiplicam em todas as áreas do conhecimento e surgem propostas de intervenção que entusiasmam".

    O poder público, mesmo lentamente, procura dialogar com essas novas demandas e propostas que surgem. A regulamentação para proteger as áreas de proteção permanente (APP) de regiões urbanas existe e tem sido discutida e revista. Mas, para Cecília, sua aplicação é difícil, pois implica em desapropriações, financiamentos, projetos de reocupação das várzeas e projetos de gestão dessas novas áreas destinadas ao uso público. Tanto no Brasil como em vários países do mundo existem exemplos de programas e projetos de recuperação de rios urbanos bem sucedidos. Enfim, cidades e seus habitantes buscam reconciliar-se com seus rios.

    Na França, seguindo os passos de Lyon e Bordeaux, está em andamento o projeto do atual prefeito de Paris, Bertrand Delanoë, para devolver as margens do rio Sena aos pedestres. Desde setembro passado, a via expressa na margem direita do Sena se transformou em um boulevard, no qual semáforos coexistem todos os dias da semana com pedestres, carros e bicicletas. Nos próximos meses será a vez da margem esquerda ser liberada para parisienses e turistas, que nela vão encontrar esplanadas, restaurantes, locais de festa e de entretenimento.

    Em Brisbane, na Austrália, está em andamento o Projeto Rio e Baía Saudáveis, que visa limpar, até 2026, as águas do rio Brisbane e da Moreton Bay, bem como as áreas de captação de água da cidade. O objetivo é dar, aos moradores, fácil acesso a cursos de água para prática de esportes e permitir que o rio Brisbane seja ao mesmo tempo uma via de transporte, lazer e entretenimento.

    PROJETOS CAROS E DE LONGO PRAZO No Brasil, Cecília Gorski exemplifica com o Projeto Beira-Rio, de requalificação ambiental e urbanística, desenvolvido e implantado pela Prefeitura Municipal de Piracicaba, no interior paulista. Esse projeto surgiu da constatação que o desenvolvimento da cidade está vinculado à relação com o rio. Implantado em etapas, os resultados já alcançados são a recuperação parcial da mata ciliar ao longo dos rios Piracicaba e Corumbataí, requalificação da Rua do Porto, com reforma das casas da orla e construção de um deque comum para todos os restaurantes do local, substituindo as antigas palafitas; abertura da orla a toda população independentemente de consumo nos restaurantes; implantação de coletor de esgoto, de trilha na faixa de inundação do rio e de comportas, ao longo do rio, para controle de enchentes e manutenção de qualidade das águas.

    Projetos de recuperação de rios são caros e de longo prazo. Mas, conforme salienta Cecília, os entraves não se resumem aos custos, mas à ótica que rege o planejamento urbano de caráter eminentemente rodoviarista. Para Cecília, o grande comprometimento dos rios Pinheiros e Tietê, na cidade de São Paulo, por exemplo, é morfológico: "as várzeas desses rios lhes foram subtraídas e ocupadas pelos principais eixos viários e de logística da cidade de São Paulo". Assim uma proposta de recuperação desses rios pressupõe repensar os eixos viários e a matriz de transporte metropolitano da megalópole que é São Paulo. E isso envolve vontade política e planos de longo prazo, acrescenta Cecília.

    ESGOTO NOS RIOS Um grande número de rios brasileiros tem, hoje, o papel de escoadouro de esgoto e dejetos de todos os tipos. Dados da organização não governamental (ONG) Trata Brasil, com base nos indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico (SNIS), publicado pelo Ministério das Cidades (base 2010), apontam que apenas cerca de 36% do volume de esgoto gerado pelas 100 maiores cidades do país é tratado. Isto representa quase oito bilhões de litros de esgoto lançados todos os dias nas águas brasileiras sem nenhum tratamento, o que equivale a jogar 3.200 piscinas olímpicas de esgoto por dia na natureza, somente por essas 100 cidades.

    O estudo da ONG Trata Brasil alcançou uma população de 77 milhões de pessoas, ou seja, 40% da população do Brasil em 2010, que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), era de 191 milhões de habitantes. Desses 77 milhões, quase 7 milhões de habitantes das 100 maiores cidades do país ainda não tinham acesso à água tratada e 31 milhões não tinham acesso à coleta de esgotos.

     

     

    Esses números evidenciam os imensos desafios que precisam ser enfrentados pelo Brasil visando o saneamento básico nas aglomerações urbanas e a reconciliação da população com seus rios. No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição e definido pela Lei nº. 11.445/2007 como o conjunto dos serviços, infraestrutura e instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais. Mas enquanto persistir a lógica do adensamento populacional, da ampliação de vias de transporte para circulação de automóveis, da desvalorização do transporte público e principalmente, enquanto as cidades derem as costas para seus rios, continuaremos tendo enchentes, deslizamentos, desmoronamentos, doenças e mortes causadas por águas revoltas.

     

    Leonor Assad