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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200012 

     

    Algumas abordagens teóricas na arqueologia histórica brasileira

    Diogo M. Costa

     

    Como todas as demais subdisciplinas da arqueologia, a arqueologia histórica também recebeu fortes influências das transformações teóricas que esta ciência antropológica e histórica sofreu ao longo de seus anos de formação. Para tanto, estabeleceremos uma rápida síntese das principais correntes teóricas na arqueologia e sua relação para com a arqueologia histórica, conforme alguns autores (1‑6).

    Começando com o pensamento histórico‑culturalista, para o qual a cronologia e a espacialidade eram as principais inquietações desde o século XIX quanto ao estudo da cultura material. Depois, passando pela incessante procura pelas regularidades do comportamento humano, ou seja, suas leis tão em voga pelos praticantes do processualismo ou nova arqueologia desde a década de 1960. E por fim, com o advento do pós‑processualismo na década de 1980, onde as temáticas vão se tornar tão múltiplas quanto as suas arqueologias na procura do contexto, da interpretação, ou mesmo na postura crítica do cientista.

    O histórico‑culturalismo alemão e depois inglês, como linha teórica na arqueologia em geral vai procurar responder, desde o final do século XIX, aos problemas de ordenação da cultura material, principalmente nos seus aspectos evolucionistas e difusionistas. Centrado em trabalhos referências como de Gordon Childe e Gustaf Kossina, as principais perguntas impostas pelos histórico‑culturalistas no estudo dos vestígios arqueológicos vão se concentrar em quando e onde o fato ocorreu. Na arqueologia histórica esta linha de pensamento está representada nos trabalhos descritivos de análise material de Ivor Hüme (7), nas sínteses temporais ou regionais do início do século XX, e na arqueologia da restauração com a sua subordinação quase "arqueográfica" à arquitetura e à história.

    O processualismo inglês e a nova arqueologia norte‑americana, vão surgir na década de 1960, e ter como base a procura por leis gerais ou regularidades no comportamento humano, e em sua adaptação ao meio, em qualquer época ou lugar. Nasce, principalmente, nos trabalhos de David Clarke (8) e Lewis Binford (9) com a preocupação de uma arqueologia científica e a mais positivista possível, que quer saber como a materialidade se comporta sistemicamente de cultura em cultura, não sendo muito diferente de seus predecessores histórico‑culturalistas. Na arqueologia histórica seus impactos vão ser sentidos em conceitos e definições como a cidade‑sítio ou o padrão deposicional, na aplicação de fórmulas para datação de cachimbos ou da louça como a de Stanley South (10), ou na utilização de escalas de valor como a de George Miller (11) para o estabelecimento de certos padrões de consumo.

    O pós‑processualismo, por sua vez, surge na década de 1980 na Inglaterra e vai encontrar no estudo do pensamento, e não só da cultura material, sua principal motivação para a investigação arqueológica. Alicerçado nos trabalhos de Ian Hodder (12), Michael Schanks e Christopher Tilley (13) o pós‑processualismo vai ser uma corrente de diversos segmentos contrários ao processualismo, servindo‑se de pensadores sociais como Karl Marx, Antoni Giddens, Michael Foucault, Pierre Bourdieu e de instrumentais teóricos como a hermenêutica ou a fenomenologia. Para tanto, a principal pergunta feita pelos pós‑processualistas é por que, ou, mais especificamente, para quem ou para que, a cultura material age sobre as pessoas. Na arqueologia histórica os trabalhos envolvendo categorias mentais como os de James Deetz (14) sobre o nascente pensamento georgiano, ou as abordagens sobre outras categorias intangíveis como ideologia, gênero, identidade e poder vão ser os expoentes dessa corrente.

    ALGUNS PRECEITOS TEÓRICOS PRÓPRIOS A teoria na arqueologia histórica também passou por diversas modificações, a começar pelas próprias transformações que esta subdisciplina sofreu ao longo do tempo, e sobre as quais já discorremos anteriormente (15). Primeiramente, com a procura por definições ou mesmo conceitos de sua prática no mundo da ciência. Por que estudar o passado material de sociedades às quais se tem acesso às fontes documentais escritas, orais e iconográficas? Este sempre foi o questionamento que gerou diversos rótulos nos anos de formação da arqueologia histórica, desde uma ciência auxiliar, até uma prima pobre, ou mesmo uma serva para a história e a arqueologia. A arqueologia histórica, por sua vez, procurou na definição de seu objeto de estudo a formulação de seus conceitos teóricos e metodológicos, porém essa construção não foi feita de forma isolada ou abrupta, mas historicamente constituída.

    A arqueologia histórica como praticada no Brasil surgiu nos Estados Unidos e Canadá por volta de 1850, primeiramente preocupada com a busca de pessoas e lugares famosos para a história nacional e oficial. Esta arqueologia vai ser praticada quase que exclusivamente por pré‑historiadores, arquitetos e historiadores. Porém, por volta de 1960, a arqueologia histórica vai sofrer uma das suas primeiras transformações, com as revoluções epistemológicas que tomam conta de todas as ciências sociais do período, e não só da arqueologia em particular. A luta pelos direitos civis e das minorias atinge a arqueologia histórica mudando seu foco para o passado dos "povos sem história", ou seja, dos escravos africanos, dos trabalhadores imigrantes ou das mulheres e crianças. Minorias até então marginalizadas ou esquecidas tomam o palco central das pesquisas, que agora também são conduzidas por profissionais formados em outras áreas como a antropologia.

    Entretanto, uma discussão teórica originária do século XIX ainda estava em voga na arqueologia histórica de 1960, a de que se a arqueologia histórica era mais uma forma de história contada como estudo material ou de antropologia das sociedades antigas. Os partidários da arqueologia histórica como forma de história material acreditavam que sua função era de apenas completar os documentos já existentes, sendo quase como uma ilustração dos eventos. De outro lado, os partidários da arqueologia histórica como forma de antropologia antiga acreditavam no caráter desta como ciência social, porém apenas como uma técnica a mais de coleta de dados. Essa dicotomia só vai se encerrar em meados do século XX, quando especialistas da área propõem que a arqueologia histórica seja algo no meio, entre ambas as perspectivas, porém com objeto, teoria e métodos próprios.

    Todavia, na década de 1980, outras mudanças vão ocorrer na arqueologia histórica, principalmente nos seus objetos de pesquisa quando o foco volta‑se para o entendimento do mundo moderno e do surgimento do capitalismo. Tendência esta que surge desde os trabalhos de James Deetz, mas que vai ter nos seus expoentes, como Charles Orser (16) e Matthew Johnson (17), suas principais referências. A arqueologia do mundo moderno ou do capitalismo vai ter como interesse de estudo a formação do nosso cotidiano contemporâneo e, para tanto, vai incitar também um atitude mais crítica do arqueólogo mais para com o presente do que somente com o passado. Este elemento atual na arqueologia histórica, por sua vez, vai ser responsável não só pelo surgimento de diversas temáticas e linhas de estudo, mas também por influenciar outras áreas na própria arqueologia como um todo.

    Porém, diferentemente da arqueologia histórica norte‑americana, a arqueologia histórica ou o que podemos chamar de estudo material do passado recente, é uma arte também praticada há muito pelo mundo. Na Europa, o estudo material de sociedades do período histórico vai abarcar uma continuidade temporal desde o período clássico e medieval até o pós‑industrial. Enquanto na Ásia e norte da África, vai possuir uma divisão mais temática como a egiptologia, assíriologia, ou bíblica, ou até mais regional como a arqueologia indiana, chinesa ou japonesa. Por outro lado, na América, na Oceania e África subsaariana, a arqueologia histórica vai estar mais relacionada com a expansão europeia a partir do século XV, mas com exceção do estudo de civilizações pré‑colombianas como os Incas, Maias e Astecas.

    A ARQUEOLOGIA HISTÓRICA NO BRASIL Os primeiros trabalhos em sítios históricos no Brasil remontam às décadas de 1930 até 1950, quando foram realizadas algumas investigações, mas sem caráter sistemático ou com corpus teórico e metodológico definido. Como primeiros exemplos dessas investigações temos, na década de 1930, os trabalhos de Hermann Kruse nas Casas Fortes na Bahia, e de Loureiro Fernandes nos túmulos de quilombolas no Paraná. Em 1940, Virginia Watson também realizou algumas investigações nas ruínas de uma vila espanhola no Paraná chamada de Ciudad Real do Gauirá. Já em 1950, Loureiro Fernandes estudou o Colégio dos Jesuítas no Paraná, assim como as Missões de São Nicolau, São Luiz Gonzaga e São Borja foram pesquisadas no Rio Grande do Sul pelo padre Luis G. Jaeger em 1959. Essas pesquisas vão ser marcadas por interesses particulares e específicos e sem uma produção acadêmica, o que as limita à um caráter quase amadorístico e ensaísta, do que propriamente científico (18).

    Na década de 1960 com o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa) houve o estudo de alguns sítios históricos, porém em sua maioria por pré‑historiadores, e sob a perspectiva somente da arqueologia de contato ou colonial. Apesar de usar uma abordagem mais antropológica, esses estudos corresponderam muito mais a uma continuação da pesquisa pré‑histórica sobre os povos indígenas na época do contato, do que a uma arqueologia histórica sobre a formação da sociedade brasileira do presente. Na década de 1970 esses estudos também vão adotar o ponto de vista do Estado, importando‑se, principalmente, com os monumentos de "pedra e cal" e assumindo uma posição subalterna frente aos interesses restauradores ou conservacionistas de arquitetos e historiadores. A arqueologia histórica desses períodos é fortemente voltada para os trabalhos em igrejas no Sul e Sudeste e fortes no Nordeste, preocupando‑se somente com o espaço edificado e com sua técnica construtiva. Outro elemento presente nessas investigações do período é também a manutenção da história oficial ou nacionalista, que vê nos trabalhos arqueológicos históricos somente a afirmação, sem incluir a complementação ou confrontação, do saber histórico (18; 19).

     

     

    A década de 1980 também traz mudanças para a arqueologia histórica brasileira com a incorporação de novas temáticas e atualização de preceitos teóricos e metodológicos. A emergência do capitalismo, assim como o estudo das minorias, subalternos e excluídos toma a cena. Dessa forma, espaços que antes não eram investigados – como senzalas e quilombos, ou espaços de conflito –, começam a se tornar foco das atenções. De outro lado, a arqueologia histórica amplia seus horizontes, agora apontando sobre o urbano e investigando, além do tempo, também o comportamento. A década de 1990, por sua vez, vai trazer outras mudanças para a arqueologia histórica brasileira, como sua consolidação na academia com dissertações e teses defendidas sobre o tema, e a realidade da arqueologia de contrato e suas diversas pesquisas em relatórios técnicos. Teoricamente, a arqueologia histórica também se solidifica com trabalhos, seguindo tanto linhas processualistas como pós‑processualistas, principalmente sobre ideologia e simbolismo. E, metodologicamente, com a inclusão na análise, além da cerâmica, de outras categorias materiais, como a louça, o vidro e o metal (19).

    Desde as primeiras décadas do século XXI, a arqueologia histórica no Brasil estuda temas tão diversos quanto as próprias arqueologias criadas mas, no caso deste artigo, a proposta é que tornem‑se parte de um fazer único. Portanto, é interesse aqui introduzir tantas abordagens temáticas quanto possíveis sobre seus objetos de investigação, tratando‑se a arqueologia histórica de um campo dinâmico e transdisciplinar de estudo. Para tanto, podemos listar hoje desde uma arqueologia da arquitetura (20; 21), arqueologia colonial e pós (22; 23), arqueologia da escravidão e da diáspora (24; 25), arqueologia do capitalismo (26; 27), arqueologia do conflito (28; 29), arqueologia industrial (30; 31), arqueologia urbana (32; 33), até uma arqueologia ambiental histórica (34‑36), entre muitas outras.

     

    Diogo Menezes Costa é arqueólogo historiador, e professor visitante no Programa de Pós‑Graduação em Antropologia na Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA). Email: dmcosta@ufpa.br

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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