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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200014 

     

    O vaso grego hoje

    Gilberto da Silva Francisco

     

    Os estudos sobre a cerâmica grega, concentrados nos vasos figurados produzidos em Atenas entre os séculos VI e IV a.C., têm bastante influência em campos variados. Esses objetos são frequentemente apresentados em publicações de história, história da arte e arqueologia, e acabaram por compor algo do imaginário sobre a Grécia arcaica e clássica, a qual geralmente é situada como ponto original de elementos importantes que teriam sido mantidos e (ou) desenvolvidos no Ocidente. Dessa forma, desde o século XVIII, eles foram tratados como objetos de arte e fontes bastante aptas para a compreensão de estruturas do passado chamado de clássico. Entretanto, eles são mais que isso; e, compreender a situação do vaso grego atualmente leva‑nos a entender não apenas um passado distante, mas também como mobilizamos determinadas informações orientadas por seleções e como atribuímos significados e valores a esses objetos. Ou seja, o vaso grego explica algo sobre nós mesmos.

    VASO GREGO? Ao falar da situação atual dos vasos gregos em coleções e museus, deve‑se considerar os vários processos de dispersão que esses objetos sofreram ao longo do tempo e a sua própria caracterização. O vaso grego não existe! De fato, havia a produção de vasos de cerâmica por artesãos de cidades variadas que respondiam a determinados elementos de articulação aos quais chamamos de "Grécia", "mundo grego" ou "pan‑helenismo". Se a Grécia, na Antiguidade, nunca existiu como nação, o vaso grego, surge como discurso no contexto em que a própria ideia de uma Grécia‑nação se desenvolveu – nos séculos XVIII e XIX. Ou seja, o vaso grego é uma criação moderna.

    Na Antiguidade, pode‑se pensar na produção de vasos em centros variados, dos quais o mais forte parece ter sido Atenas (ou a Ática), entre os séculos VI e IV a.C. Esses vasos foram encontrados em vários pontos do Mediterrâneo e imediações (da região da Babilônia a Portugal, da região do Mar Negro até Luxor, no Egito), e muito da sua inserção atual em coleções de museus públicos responde a esse cenário bastante amplo de locais de achado. Entretanto, a situação é mais complicada. Esses objetos foram consistentemente inseridos no mercado de antiguidades e sua projeção tornou‑se bem mais ampla.

    O VASO GREGO EM MUSEUS E COLEÇÕES Esses objetos compõem coleções de países de todos os continentes. Atualmente, a legislação grega de proteção às antiguidades (sobretudo, as leis 5.351, de 1932, e 3.028, de 2002) impede a saída de qualquer objeto arqueológico do solo grego. Entretanto, a ação de alguns potências europeias e dos EUA, que ocupam vários sítios arqueológicos gregos desde o final do século XIX e o constante achado desses objetos em vários países do Mediterrâneo, coerente com as práticas comerciais antigas que permitiram uma dispersão grande desses vasos, proporcionaram a articulação de uma ampla circulação moderna desses objetos e sua aquisição por instituições e particulares no mundo todo. Claramente, sua concentração quantitativa é situada em museus europeus e nos EUA, mas eles também compõem coleções de países afastados desse eixo Europa‑EUA, como o Japão, a Austrália e mesmo países da América Latina: há, por exemplo, vasos gregos, e outros objetos relacionados à Antiguidade clássica, em Cuba, Uruguai, Argentina e no Brasil.

    A situação da coleção de antiguidades no Museu Nacional de Belas Artes de Havana, Cuba, indica um pouco da situação de aquisição e manutenção desses vasos em espaços tão distantes da sua região de produção antiga e da produção do discurso sobre sua contribuição para a narrativa do Ocidente. Essa coleção, atualmente sob a responsabilidade do Museu Nacional de Belas Artes de Havana, foi organizada por um nobre cubano, o Conde de Lagunillas, que teve sua coleção requisitada no contexto da revolução cubana, passando, a partir de então, para a custódia do governo revolucionário. Dessa forma, não se tratava de uma política pública de aquisição de antiguidades, como acontecia em alguns países europeus e nos EUA, mas da aquisição estatal a partir de uma iniciativa privada. Entretanto, a coleção foi protegida. Ao ser acusado de ter vendido parte dos vasos que a compunham, Fidel Castro teria dito, conforme publicação do jornal Vanguardia de 31 de maio de 2006, em um discurso: "apenas os acostumados a vender a sua alma acreditam que uma revolução, cujo maior princípio é a justiça, pode vender a alma da cultura da pátria".

    No Brasil, com a vinda da família real portuguesa na primeira metade do século XIX, vários elementos relacionados à antiguidade clássica começavam a se instalar. É importante lembrar, nesse sentido, da Missão Francesa que foi composta por alguns arquitetos, como Grandjean de Montigny, responsáveis por projetos de edifícios com clara influência da arquitetura clássica. É nesse contexto que a coleção de antiguidades da família real chega ao Brasil, composta por vários objetos relacionados à Grécia continental e colonial, Egito, Etrúria, entre outros locais, que compõem atualmente o acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Entretanto, essa coleção que inseria o Brasil na lógica do colecionismo de antiguidades não é a única. Há outras, mais variadas, também compostas por vasos gregos, como algumas coleções particulares e outras públicas, como a do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) e do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

    Essas coleções vêm sendo exploradas do ponto de vista científico. Basta lembrar da publicação do catálogo crítico da exposição "Cerâmicas antigas da Quinta da Boa Vista", no Museu de Belas Artes (1); e do projeto "Corpus Vasorum Antiquorum", que visa a publicação de vasos gregos de algumas coleções particulares, do Masp e do MAE/USP, totalizando cerca de 200 objetos, projeto dirigido pela arqueóloga Haiganuch Sarian (MAE/USP), que publicou uma série de estudos sobre objetos do acervo do MAE, principalmente a cerâmica grega e de tradição grega, agrupados na sua tese de livre docência (2).

    Além disso, é importante lembrar que a situação desses objetos compondo a coleção de museus expressivos no quadro artístico‑cultural brasileiro, proporcionou a sua caracterização como patrimônio nacional a partir de processos de tombamento. Por exemplo, a coleção do Masp é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a coleção do MAE foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Não se trata, evidentemente, do vaso grego isoladamente caracterizado como patrimônio nacional brasileiro, mas é a sua inserção nessas coleções que o situa em um grupo que, por sua delimitação a partir de elementos de interesse artístico e cultural variados, foi considerado digno de tombamento. Tem‑se, assim, o vaso grego situado em um processo de dispersão que o encaminhou para o Brasil, onde lhe foi atribuído certos valores, inclusive o patrimonial.

    O VASO GREGO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A circulação acima indicada deve ser também pensada no contexto da atual proteção das antiguidades. Como visto, na Grécia, há uma legislação bastante restritiva. Já na Itália, o país com o maior número de vasos gregos encontrados fora da Grécia, a legislação é mais flexível, mas mesmo assim há uma série de ações legais contra países que, segundo algumas acusações recentes, adquiriram antiguidades ilegalmente. Por exemplo, há uma série de representações em tribunais internacionais tratando do pedido de devolução de objetos arqueológicos que foram deslocados durante o século XIX e início do século XX para alguns países europeus como a França, Inglaterra, Alemanha e também os Estados Unidos. A campanha mais sistematicamente apresentada é a da devolução dos mármores do Partenon, que se tornou uma causa importante nacionalmente articulada na Grécia atualmente.

    Entretanto, mesmo fora da monumentalidade arquitetural, esse tipo de interesse é manifestado. Por exemplo, em 18 de janeiro de 2008, o jornal O Estado de S.Paulo dava a seguinte notícia: "MET devolve vaso roubado de 2.500 anos ao governo da Itália". Tratava‑se, efetivamente, do desfecho de um processo internacional iniciado pelo ministro da cultura italiano em 2005, visando reaver objetos retirados da Itália ilegalmente e recebidos pelo curador do Metropolitan Museum (MET) de Nova Iorque. A notícia continua:

    A cratera de Eufrônio – um grande vaso pintado com cenas de poemas homéricos – é tido como um dos mais belos exemplos do tipo. O vaso era usado para a diluição de vinho com água. "É considerado, universalmente, o melhor trabalho do artista", disse o ministro italiano da Cultura, Francesco Rutelli.

    No centro da discussão estão importantes instituições como o Ministério da Cultura italiano contra o Metropolitan Museum em Nova Iorque, em uma campanha da Itália contra o tráfico ilegal de antiguidades. Entretanto, mais que isso, é possível notar, pela caracterização que o ministro italiano apresenta, que há uma clara re‑significação do objeto: o artesão virou um artista e o vaso sua obra de arte aproximada de uma importante referência cultural para o Ocidente – a poesia homérica. Assim, no seio do debate legalista que promoveu a devolução desse objeto, aparece uma argumentação focada nesses aspectos culturais que responde à formulação moderna do objeto (o vaso‑objeto de arte).

    O VASO GREGO E O MERCADO DE ANTIGUIDADES Em uma narrativa sobre a contemporaneidade, no filme O meu melhor amigo (Mon meilleur ami, 2006), dirigido por Patrice Leconte, o valor para se aferir o preço de uma amizade em uma aposta é o de um vaso grego avaliado em €20.000. A amizade, o vaso grego e os vinte mil euros revelam um tipo de valor alto atribuído a esse objeto como mediador nas relações de um meio elitista, destoando, em certa medida, do valor atribuído a esse tipo de objeto na antiguidade, contexto em que, pode‑se dizer, não passaria de um objeto banal – não era tão caro e se caracterizava como um tipo de artesanato de interesse menor, considerando‑se a criação escultural e arquitetônica. Entretanto, a re‑significação atual o situa no plano de objeto/documento e objeto de arte.

     

     

    O valor do vaso no filme citado é bastante coerente, mas há valores bem maiores. Por exemplo, a casa de leilões Christie's anunciou o maior rendimento até então em seus leilões de antiguidades, a partir das vendas dos dias 12 e 13 de junho de 2000: algo em torno de US$15 milhões, dos quais, apenas dois objetos foram responsáveis por quase US$3 milhões. Trata‑se de dois vasos áticos de figuras vermelhas: uma taça assinada por Douris (por US$1.776.000) e a famosa cratera de Toronto (por US$1.051.000), valores próximos do estimado, que era a partir de US$1 milhão. Essa seção (9448 – 12 de junho de 2000) arrecadou US$ 7.053.906, a partir da venda de 151 peças, sendo duas delas os vasos acima citados: lotes 81 e 111. E, no topo da lista de vasos gregos adquiridos em leilões, localiza‑se uma hídria de Caere, vendida por US$ 3.302.250.

    Vale notar que esses valores, se comparados aos das obras de arte contemporânea, são bastante modestos. Por exemplo, o leilão intitulado "Impressionist and Modern Art", em 3 de novembro de 2004, na Christie's, registrou, para grande parte das obras, valores acima de um milhão de dólares, sendo a venda mais expressiva desse dia fixada em US$ 20.167.000 – trata‑se do lote 24, a tela Londres, le parlement, effet de soleil dans le brouillard, de Claude Monet. Essa seção (1429) arrecadou US$ 28.222.150, a partir da venda de 58 obras. Valores dessa grandeza, no que tange aos objetos no comércio de antiguidades, são episódicos; como a venda de uma escultura helenística de Ártemis e um cervo, estimada entre cinco e sete milhões de dólares, mas vendida por US$ 28.600.000, superando todas as expectativas da Sotheby's (leilão em 7 de junho de 2007, lote 41).

    O mercado parece distinguir o que é objeto de arte e o que é antiguidade, atribuindo a esta um valor menor. Entretanto, esse valor revela um interesse consistente que orienta a própria inserção sociocultural desses vasos atualmente. Não são as mesas, despensas e tumbas mais variadas que eles preenchem, mas as coleções particulares e de museus que são potencialmente espaços de diálogo com o público e também instituições de guarda de bens valiosos. Inserido nessa lógica, o vaso grego é também um bem de expressão financeira bastante relevante.

    CONCLUSÃO O potencial científico do vaso grego como fonte de informação de aspectos variados da experiência antiga não é algo que está em jogo. Nem mesmo a sua re‑significação que permitiu certa transição do campo do artesanato para o objeto de arte, que parece ser legítima, já que esses objetos são ativos na modernidade. É justamente sua inserção dinâmica que permite imputar ao vaso grego significados novos não necessariamente incompatíveis com os significados antigos. O que não é possível pensar é em uma linha que nos liga diretamente à sua experiência passada e que o que somos e como os inserimos na nossa experiência seja algo idêntico ao passado. O vaso grego hoje é objeto de coleção, objeto de arte, fonte de informação, alcança valores relativamente altos e é, inclusive, inserido no campo do patrimônio. É mais que o vaso dos gregos. Mas, para pensar nos gregos, a partir do vaso, é necessário despi‑lo do que lhe foi atribuído por nós e, assim, exercitar a alteridade

     

    Gilberto da Silva Francisco é doutor em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP)

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Cerâmicas antigas da Quinta da Boa Vista. Rio de Janeiro: Museu de Belas Artes. 1995.

    2. Sarian, H. "Arqueologia da imagem. Expressões do mito e da religião na antiguidade clássica". Tese de livre docência em arqueologia clássica – MAE/USP. 2005.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Chappell, D. & Manacorda, S. (Eds.) Crime in the art and antiquities world: ilegal trafficking in cultural property. New York, Dordrecht, Heidelberb, London: Springer. 2011.

    Francisco, G. da S. "Panatenaicas. Tradição, permanência e derivação". Tese de doutorado apresentada no MAE/USP. 2012.

    Merryman, J. H.; Elsen, A. E. & Urice, S. K. Law, ethics and visual arts. 5ª ed., Alphen aan der Rijn: Kluwer Law International. 2007.

    Nistri, G. "The experience of the Italian cultural heritage protection unit". In: Chappell, D. & Manacorda, S. (Eds.) Crime in the art and antiquities world: ilegal trafficking in cultural property. New York, Dordrecht, Heidelberb, London: Springer, pp.183‑92. 2011.

    Nörskov, V. Greek vases in new contexts. The collecting and trading of Greek vases – an aspect of the modern reception of Antiquity. Aarhus: Aarhus University Press. 2002.

    Núñez Gutiérres, M. L. (Org.). La Habana. Salas del Museo Nacional de Cuba, Palacio de Bellas Artes. La Habana: Editora Letras Cubanas. 1990.

    Olmos Romera, R. Catalogo de los vasos griegos del Museo Nacional de Bellas Artes de La Habana. Madrid: Ministerio de Cultura, Dirección General de Bellas Artes y Archivos, Instituto de Conservación y Restauración de Bienes Culturales. 1993.

    Valavanis, P. & Delevorrias, A. Great moments in greek archaeology. Athens: Kapon. 2007.