SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200015 

     

    Arqueologia e comunidades tradicionais na Amazônia

    Helena Pinto Lima
    Bruno Moraes

     

    Tende‑se a pensar que a arqueologia é uma ciência restrita ao estudo do passado. Em seus primórdios, até o início do século XX, ela foi um campo do saber voltado ao estudo dos objetos, principalmente em seus aspectos físicos e até mesmo estéticos, ligados às sociedades pretéritas. Ao longo das transformações das ciências humanas, de um modo geral, levadas a cabo ao longo do século passado, a arqueologia então passou a focar seus estudos na materialidade da cultura – em seus mais diversos aspectos – com vistas a entender relações sociais e culturais a partir de uma perspectiva diacrônica. Desta forma, encarada enquanto estudo de processos de continuidade e transformação cultural, a disciplina incorpora o estudo da contemporaneidade como parte integrante de seu objeto.

    Diferentes correntes atuais da arqueologia têm pensado em sociedades contemporâneas para entender não somente aspectos ligados às sociedades do passado, mas também para pensar sobre interações sociais do presente. Vista deste modo, a arqueologia é não apenas uma forma de entender o passado, mas também uma prática social experienciada no presente, que carrega consigo um diálogo entre a subjetividade do arqueólogo e o próprio objeto, entendido como um modo de produção material da cultura (1; 2).

    Na Amazônia, a arqueologia tradicionalmente tem sido encarada enquanto história indígena (3; 4; 5). Hoje, mais do que isso, ela pode – e deve – ser considerada como uma disciplina válida para o entendimento dos processos culturais relativos às populações atuais: indígenas, grupos sociais urbanos, comunidades rurais ou as sociedades ribeirinhas – estas últimas alvo do presente artigo. Sua potencialidade se dá também na forma de embasamento de teorias e práticas, inclusive aquelas que concernem à construção de políticas públicas, com a clara intenção de se pensar no futuro.

    As sociedades ribeirinhas atuais constituem um objeto de estudo privilegiado para a atuação da arqueologia, ao integrarem ao seu modus vivendi elementos do passado e do presente, em uma interlocução fascinante com a paisagem, a começar pelos locais onde habitam, que recorrentemente estão sobre assentamentos de grupos pretéritos – os sítios arqueológicos. Suas (re)significações sobre o lugar onde vivem e seus componentes espaciais e materiais são peças‑chave para uma compreensão mais holística das interações entre os comunitários e os vestígios, em um processo de formação e transformação contínua do sítio arqueológico.

    Entender como se processa a interação entre esses elementos promove a compreensão da maneira como o presente está relacionado ao passado, seja através de rupturas ou de continuidades. Na Amazônia, os locais onde se encontram os sítios arqueológicos, em geral compostos por terras pretas e com a presença de cerâmicas, são locais recorrentemente habitados por comunidades no presente. Tal escolha não é dada ao acaso, mas pontuada por uma série de elementos de escolhas culturais em diferentes ordens, que se assemelham ou se repetem no decorrer do tempo. Desta forma, é possível dizer que os vestígios arqueológicos fazem parte, de diferentes maneiras, do cotidiano do ribeirinho. Seja em sua relação com as terras pretas – solo antropogênico muito fértil, de coloração escura – seja pelos inúmeros fragmentos e vasilhas cerâmicas que afloram no entorno de suas casas e comunidades.

    Este artigo visa, portanto, apresentar alguns aspectos e reflexões oriundas das pesquisas arqueológicas empreendidas desde os anos de 2009 e 2012 na região do médio Amazonas, particularmente nos municípios de Itacoatiara e Silves (AM), sob a égide do projeto "Arqueologia regional e história local no baixo rio Urubu", vinculado ao Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).

    ARQUEOLOGIA DO BAIXO RIO URUBU: UMA INTERLOCUÇÃO ENTRE O PASSADO E O PRESENTE Dentre as ações desenvolvidas pelo projeto, foram realizadas prospecções arqueológicas, além do mapeamento, delimitação e escavações em alguns sítios. Os trabalhos levaram à formulação de uma hipótese preliminar sobre a cronologia de ocupação da área, bem como a interpretações sobre a organização social no passado (6). Junto às comunidades, foram desenvolvidas ações envolvendo socialização da pesquisa e educação patrimonial, etnografias e análises de percepção, especialmente naquelas situadas nas proximidades dos sítios pesquisados.

    Os trabalhos primaram pelo desenvolvimento dos programas de arqueologia pública concomitantes às pesquisas de campo (em especial as escavações) de modo a proporcionar uma articulação entre os saberes locais e as hipóteses propostas pela ciência arqueológica, colocando o patrimônio arqueológico em discussão para os moradores desses locais e dando voz aos saberes tradicionais, comumente apagados no decorrer da construção do discurso científico.

    Este é o aspecto a ser abordado neste artigo: ao passo em que trata do entendimento dos processos de ocupação pré‑colonial na região, sua cronologia, questões relativas aos usos do espaço e territorialidade, o foco investigativo procurou se voltar também a essas populações ribeirinhas e em como elas revestem os vestígios com vieses interpretativos próprios. Através de métodos de observação etnográfica, a pesquisa tem buscado compreender os complexos processos de apropriação e ressignificação dos vestígios por essa população.

    Dentro desse contexto, destacam‑se os trabalhos realizados em um sítio arqueológico em comunidade específico, o Pontão, cadastrado sob a sigla AM‑SL‑06. O material arqueológico, mormente as vasilhas e fragmentos de vasilhas cerâmicas e a terra preta, apresentam‑se numa grande área de dispersão que cobre quase toda a área da comunidade, que se localiza no entorno imediato da ilha de Silves. A comunidade Nossa Senhora do Bom Parto, localmente conhecida como Pontão, é composta por 22 famílias, com, em geral, 4 a 6 membros adultos. Grande parte dos comunitários nasceu na própria comunidade (60%) e outra parte é proveniente de outras localidades, tais como São João do Pontão, Manaus, Itapiranga (sede e comunidades) e Urucará. Existe, de fato, uma grande movimentação de pessoas intercomunidades, seja por casamentos, festas religiosas e, principalmente, jogos de futebol. Aliás, os jogos de futebol representam um importante momento de socialização entre as comunidades (7).

    Em certa medida, aspectos da vida social e econômica das comunidades da região perfilam aspectos comuns. As comunidades amazônicas têm por base de sua organização social as famílias que as compõem. Estas unidades familiares, de um modo geral, têm suas atividades econômicas baseadas na combinação de algumas atividades principais: pesca, agricultura, criação de gado, trabalho assalariado/aposentadoria, e produção artesanal. A economia local é baseada em estratégias que combinam o uso de diferentes recursos (além do trabalho assalariado), o que possibilita uma grande flexibilidade, apesar da pouca acumulação de capital em si. Além disso, cada atividade possui um padrão distinto ao longo do ano, e envolve diferentes membros da família, preenchendo funções diferenciadas na economia familiar (8).

    Esses repertórios de atividades econômicas são combinados em padrões distintos pelas unidades familiares, criando um padrão heterogêneo dentro e entre as comunidades (9). Como já mencionado, essa variabilidade tem origem não somente na diferenciação econômica e ecológica das comunidades, mas também em seus aspectos sociais e na própria história de formação das mesmas. Tais aspectos nos oferecem oportunidades consideráveis para pensar questões relativas ao patrimônio cultural, preservação arqueológica e, principalmente, à intersecção entre o conhecimento científico e o tradicional.

    Desde o início, através das visitas de diagnóstico e planejamento, a comunidade Pontão foi identificada como local prioritário para as ações do projeto. Isto se deu em função da própria desconfiança percebida a partir dos primeiros contatos entre os pesquisadores e comunitários. Tal fato resulta de reflexos negativos de pesquisas anteriores, realizadas nas décadas de 1970 e 1980, em que a relação estabelecida entre os moradores, os pesquisadores e os objetos de lá retirados não havia ficado clara para os primeiros. A partir dos primeiros contatos da equipe do projeto com os moradores, Pontão passou a ser regularmente visitado, estabelecendo‑se certa relação com esses novos pesquisadores (nós).

    Por fim, acertou‑se que a comunidade (e sítio arqueológico) Pontão seriam alvo de uma grande campanha arqueológica, o que se deu durante os meses de julho e agosto de 2010. Os trabalhos de campo tiveram como objetivo a coleta e análises de dados arqueológicos através do mapeamento, delimitação e escavação do sítio arqueológico, além de oferecer a estudantes, pesquisadores de outras áreas e leigos em geral a oportunidade de conhecer e vivenciar o cotidiano do trabalho do arqueólogo em campo, em uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Este sítio‑escola se configurou como uma disciplina regular do curso superior de tecnologia em arqueologia, oferecido pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Além dos alunos do curso, pesquisadores e estudantes de diferentes partes do Brasil participaram.

    Os chamados sítios‑escola representam uma oportunidade de aliar o ensino à pesquisa durante o trabalho de campo arqueológico. Nesse momento, os estudantes foram orientados e executaram todos os procedimentos de levantamento, delimitação, escavação, coleta e registro de dados do sítio arqueológico. Concomitantemente, foram ministradas também aulas expositivas, em campo, durante e após as atividades relacionadas à escavação. Além dos exercícios próprios de uma escavação arqueológica, o foco das atividades práticas e teóricas centrou‑se na experiência social da prática arqueológica, que culminou em uma imersão na comunidade estudada. Com esse tipo de prática, procurou‑se levar os alunos (de arqueologia) a questionarem seu papel enquanto agentes da produção de conhecimento, e os desdobramentos e consequências que a práxis arqueológica – e científica – implicam. O objetivo, neste caso, foi levar o aluno a desenvolver seu senso crítico ao perceber a relação assimétrica entre o pesquisador e o objeto de estudo, suscitando problemáticas que vão além dos vestígios arqueológicos propriamente ditos.

    Neste sentido, a investigação se focou nos processos de formação do registro arqueológico, pensando em como as relações sociais estabelecidas entre os moradores no presente definem usos diferenciados do espaço e construção da paisagem ribeirinha contemporânea, ao mesmo tempo em que reconfigura o próprio registro arqueológico. As análises espaciais se deram por meio da confecção de croquis das estruturas atuais da comunidade, sobrepostos ao mapeamento de suas feições arqueológicas. Além disso, foram feitas uma série de exercícios etnográficos e uma genealogia dos moradores da comunidade. Campo notável de construção do conhecimento antropológico, a etnografia se coloca enquanto arena privilegiada para o estudo da interação entre as comunidades contemporâneas que hoje ocupam grande parte dos sítios arqueológicos amazônicos, e as populações que no passado o fizeram.

    Para que se alcançassem os objetivos propostos para os trabalhos de campo, fez‑se importante a composição de uma equipe interdisciplinar, com profissionais de áreas distintas como as geotecnologias, antropologia, e linguística, além dos próprios moradores locais, que muitas vezes trazem vieses importantes não aventados pela visão estrita da ciência. As reflexões aqui apresentadas são, por certo, fruto de diálogos intensos estabelecidos ao longo dessa vivência no campo. Dentre os dados etnográficos recolhidos, inclui‑se a distribuição espacial das estruturas edificadas das comunidades, genealogia e relações de parentesco, relatos sobre a história oral local e as percepções/interpretações sobre os vestígios arqueológicos – e os próprios arqueólogos.

    Como maneira de mensurar essas interpretações e relações estabelecidas entre os diferentes atores – pesquisadores/arqueólogos, estudantes de arqueologia, professores e alunos locais, moradores da comunidade, foi feita uma pesquisa por uma bolsista vinculada ao projeto acerca das diferentes percepções sobre o tema. Essa pesquisa se deu um ano após os trabalhos de campo (no decorrer de 2011), e teve como objetivo contrastar as visões dos diferentes agentes envolvidos em todo o processo (7).

    No caso estudado, observou‑se que todos os moradores do Pontão disseram conviver cotidianamente com os "caquinhos" nas proximidades de suas casas e que, quando encontram, os compartilhavam com parentes para que fossem pintados como intuito de produzir enfeites de casa, sendo estes, por vezes, levados até os núcleos urbanos. Sobre a terra preta de índio, a maioria das pessoas menciona sua alta fertilidade, que possibilita o cultivo de uma grande variedade de gêneros. Uma parte menor associou a terra preta com cacos de cerâmica, identificando como local no qual os índios viviam e cultivavam as suas plantações.

    As interpretações dadas pelas comunidades que convivem com os vestígios arqueológicos são efetuadas a partir de situações vividas, experiências e informações adquiridas. As evidências arqueológicas são únicas, mas a variedade de interpretações, significações e percepções são variadas, dependendo do olhar atribuído. O registro arqueológico possui relevância tanto para o conhecimento e entendimento do passado quanto do presente.

    Mais do que apenas um estudo exploratório que se propõe a elucidar uma cronologia dessas ocupações pretéritas, essa proposta investigativa se coloca enquanto uma tentativa de interlocução entre duas realidades territoriais distintas, ao promover uma reflexão entre discursos que, frequentemente, são percebidos como dissociados e até mesmo concorrentes: o da ciência arqueológica, por meio da construção do conhecimento por meio de surveys e escavações, e o tradicional, que representa a forma como os habitantes locais percebem seu território e o que o compõe. Não obstante, essa percepção altera os modos de usos do espaço e, portanto, constrói o registro arqueológico.

     

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS Desta forma, por meio de abordagens arqueológicas mais abrangentes que permitem um diálogo multivocal que inter‑relaciona diferentes esferas de conhecimento, entre elas a tradicional e a científica, prima‑se por colocar as próprias sociedades caboclas da Amazônia enquanto atores que contribuem para a construção do conhecimento arqueológico.

    Igualmente importante é constatar que a condução de pesquisas arqueológicas em comunidades rurais deve estabelecer formas de se medir seus impactos sociais, econômicos e políticos (10). Entende‑se que a participação na vida social das comunidades alvo das pesquisas arqueológicas seja uma importante maneira de socialização do conhecimento produzido no âmbito da academia e, mais do que isso, uma possibilidade de dar voz à percepção dos comunitários no que diz respeito ao seu ambiente e ao patrimônio arqueológico. Sua participação ativa nos processos de formação do registro arqueológico local significa também um importante papel ativo no processo de construção sobre a história e o passado do lugar. Desta maneira, pretende‑se dar conta das diferentes vozes e discursos sobre o passado arqueológico da região.

     

    Helena Pinto Lima é professora visitante no Programa de Pós‑Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pesquisadora associada ao Museu Amazônico da mesma universidade. Email: lenalima@hotmail.com

    Bruno Moraes é arqueólogo ligado ao Programa de Pós‑Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade da Amazônia/Ufam. Email: bmoraesarqueo@gmail.com

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Shanks, M. & Mackenzie, I. "Archaeology: theories, themes and experience". In: Archaeological theory: progress or posture? Mackenzie, I. (ed.) Aldershot‑Brookfield, Avebury. 1994.

    2. Tilley, C. "Archaeology as socio‑political action in the present". In: Critical traditions in contemporary archaeology. Pinsk, V. & Wylie, A. (eds.). University of New Mexico Press, Albuquerque. 1995.

    3. Neves, E. G. "Os índios antes de Cabral: arqueologia e história indígena no Brasil". In: A temática indígena na escola. Silva. A. (Org.) Brasília: Ministério da Educação e Cultura. 1995.

    4. Neves, E.G.; Barreto, C.; McEwan, C. "Introduction". In: McEwan, C.; Barreto, C.; Neves, E. (Eds.). Unknown Amazon: culture in nature in ancient Brazil. London: British Museum. 2001.

    5. Heckenberger, M.J.; J.B. Petersen; E.G. Neves. "Village size and permanence in Amazonia: two archaeological examples from Brazil". In: Latin American Antiquity. 10(4), 353‑376. 1999.

    6. Lima, H.P.; Moraes, B. "Redes e sistemas de interação regional no Médio Amazonas". Comunicação apresentada em conferência na Society for the Anthropology of Lowland South America (Salsa). Belém (PA). 2011.

    7. Cunha. G.F. "Análise da percepção comunitária do lago de Silves sobre o patrimônio arqueológico local". Relatório final de bolsa de apoio técnico. Não publicado. Manaus: Fapeam. 2010.

    8. Castro, F. "Economia familiar cabocla na várzea do Médio‑Baixo Amazonas". In: Adams, C.; Murrieta, R.; Neves, W. (Eds.) Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Annablume, 2006. pp.186‑176.

    9. Ibidem, p.181, grifo nosso.

    10. Howel, A. "Arqueologia pública". Comunicação no II Encontro de Arqueologia Amazônica. Manaus (AM). 2010.