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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200016 

     

    Uma viagem pelo rio Tapajós: narrativas do presente sobre o passado na região de Santarém

    Louise Prado Alfonso
    Anne Rapp Py‑Daniel

     

    Um visitante que chega ao município de Santarém no estado do Pará evidencia, desde o primeiro contato, que elementos arqueológicos são reapropriados pela comunidade local, das mais diversas formas. O caso mais conhecido e emblemático é o do muiraquitã que – tanto o termo quanto o símbolo, associados a um "sapo de cor verde" –, faz parte do cotidiano da comunidade santarena, embora este objeto tenha sido produzido no passado e seja atualmente material de estudo dos arqueólogos. Quem frequenta a cidade encontra essas representações no artesanato, no nome de estabelecimentos comerciais (como lanchonetes, lojas, supermercado, universidade etc) e na decoração da orla e de diferentes praças e residências. Embora o uso do muiraquitã não seja uma característica restrita à Santarém, nesse local ela é onipresente. Além do muiraquitã, há vários outros objetos do passado que estão presentes no dia a dia da população, por exemplo os vasos de cariátides e de gargalo, amplamente reproduzidos no artesanato e ampliados em forma de monumentos, como os encontrados na Praça São Sebastião (1).

    Associado a esse fenômeno é comum encontrar em toda a Amazônia – e Santarém é um ótimo exemplo –, indivíduos e/ou famílias que "guardam" material arqueológico em suas próprias residências, expondo e valorizando essas coleções. As narrativas em torno desses bens variam de acordo com os colecionadores. Alguns veem nesses vestígios uma representação de seus antepassados, enquanto outros, mesmo não reconhecendo uma ligação direta de ancestralidade, identificam esses bens como patrimônio (2).

    A relação da população com os termos e objetos do passado vem favorecendo uma maior interação entre os turistas, que visitam o município, e os elementos da arqueologia amazônica. Cada vez mais, Santarém vem se configurando como um interessante destino turístico na Amazônia. Pode‑se notar, nos últimos anos, um aumento significativo de propagandas que divulgam a cidade. Vale destacar que grandes companhias aéreas do país apresentam a região em suas revistas de bordo, em artigos inteiros ou apenas menções. Inclusive a companhia TAM Linhas Aéreas começou a financiar projetos de "turismo comunitário" nas proximidades de Santarém. Embora os principais atrativos turísticos divulgados estejam relacionados ao patrimônio natural (praias, floresta nacional, reserva extrativista etc), os atrativos culturais vêm se fortalecendo. Os bens arqueológicos também ganham destaque, mais especificamente no Centro Cultural municipal, no artesanato e na decoração da cidade.

    Esse envolvimento do turista com as temáticas arqueológicas tem sido avaliado pelos pesquisadores de duas maneiras contraditórias. Uma abordagem mais otimista valoriza o fato de, cada vez mais, um maior número de pessoas se familiarizar à riqueza do patrimônio cultural e histórico da região, permitindo assim a socialização do conhecimento arqueológico, a divulgação do trabalho do arqueólogo e do processo de ocupação regional. Assim, nota‑se que alguns projetos desenvolvidos em Santarém têm se preocupado em elaborar material de divulgação de suas ações, como cartilhas e exposições, tendo como público alvo não apenas a comunidade, mas também os turistas.

    Todavia, essa interação do turismo com a arqueologia não tem somente lados positivos, um dos principais problemas é o crescimento considerável do comércio ilegal de material arqueológico, iniciado com a ação de grandes colecionadores especializados dentro e fora do país, e que vem se fortalecendo através dos visitantes, em especial os turistas estrangeiros, que compram fragmentos arqueológicos como "lembranças" da região (2). Dentre os compradores podemos encontrar dois perfis: aqueles que desconhecem a legislação patrimonial, que proíbe a compra e venda de bens da União, como o patrimônio arqueológico; e aqueles que, apesar de conhecerem a legislação, optam por ignorá‑la, pensando simplesmente no "prazer de possuir um belo objeto arqueológico".

    Vale ressaltar que o papel dos turistas estrangeiros é complexo e necessita atenção, pois os vestígios arqueológicos amazônicos, apesar de pouco conhecidos no Brasil, são relativamente bem conhecidos no exterior, o que pode ser constatado através dos numerosos catálogos de peças e exposições: Catálogo do Museu Barbier‑Mueller (Espanha e Suíça), Catálogo da Exposição "Brésil Indien" (França), Catálogo da Exposição "Unknown Amazon" (Inglaterra) etc. Além disso, temos que considerar que em outros países a aquisição de material arqueológico não é ilegal e que caberia ao Brasil informar os que visitam o território nacional sobre a legislação relacionada à proteção dos bens culturais, bem como sensibilizar os brasileiros quanto às diversas facetas do patrimônio e quanto ao papel de cada indivíduo na proteção dos bens patrimoniais do país.

    Ao se falar de turismo na região amazônica deve ser considerado que essa região sofreu intensas intervenções do governo federal desde o início da ditadura militar, quando os órgãos oficiais de turismo se estruturam e as políticas nacionais de turismo passam a dialogar de forma mais intensa com as demais políticas do governo federal, como as de povoamento da região Norte do país (3; 4). Essas políticas de povoamento, que tentaram apagar a memória e a história dos habitantes da região, também incentivaram a criação de uma imagem a ser vendida como produto turístico. A imagem turística que foi construída para a Amazônia está pautada, desde as primeiras políticas, na valorização do patrimônio natural, como é o caso dos mais diversos folders e materiais de divulgação que enfatizam, para o público internacional, as imagens de vitórias‑régias, do encontro das águas, de animais selvagens etc. Também nesses materiais, por décadas, a população apareceu como parte dessa fauna e flora, carregada de exotismo e alheia à "civilização".

    Apenas na década de 1990 elementos da cultura nos estados da região Norte do país passaram a ser indicados como patrimônios de importância regional e nacional (3). Nesse momento os bens valorizados foram os bens edificados relacionados ao passado das elites. Ao pegar uma capital como Manaus como exemplo percebe‑se que muita ênfase foi dada aos períodos históricos, após o contato com o europeu e, principalmente, à Belle Époque (apogeu do comércio da borracha) quando foi construído o Teatro Amazonas, a Igreja São Sebastião, o Palácio do Rio Negro etc. Isso se reflete até os dias atuais. Voltando à cidade de Santarém, percebe‑se que os principais atrativos turísticos culturais indicados pelo site da prefeitura são o Solar do Barão de Santarém, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, além de monumentos, praças, entre outros. Contudo, em ambos os casos, praticamente nada foi mencionado sobre as populações indígenas que ali moravam antes do contato com colonizadores ou que ainda vivem por toda a região amazônica.

     

     

    PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO COMPOSTO POR MOSAICOS Todo esse processo de divulgação e de políticas públicas federais influenciou diretamente na maneira como o turismo se apresenta hoje. Assim, o turismo foi desenvolvido de forma a valorizar, sobretudo, os bens naturais, o "exótico" e o "selvagem", o que refletiu na construção de grandes hotéis de selva em algumas regiões, enquanto outras vêm recebendo dezenas de grandes navios de cruzeiro, que levam milhares de turistas a cidades que não possuem um planejamento estratégico para recebê‑los. Esse turismo voltado para grandes públicos, também denominado de turismo convencional, desenvolvido de forma não planejada, tem causado grandes problemas para as localidades envolvidas. Embora a arqueologia tenha sido pouco considerada pelas políticas de turismo como relevante para a mencionada região, por toda a Amazônia existem referências de sítios arqueológicos que vêm recebendo visitação espontânea desordenada, de pessoas provenientes de diversas partes do Brasil e do exterior (5). E as coleções e narrativas sobre os bens do passado, que têm atraído olhares de pesquisadores e colecionadores de diversas partes do mundo desde o século XIX, passam também a ser valorizadas por turistas (6).

    Todos os elementos apresentados demonstram a existência de um mosaico de narrativas e usos do passado da região de Santarém: narrativas individuais, pouco conhecidas e valorizadas; narrativas coletivas construídas a partir de uma reapropriação dos elementos do passado; narrativas oficiais divulgadas por diversos níveis do poder público; narrativas dos arqueólogos que raramente chegam até a população; e as narrativas dos próprios turistas e visitantes que interpretam de diferentes maneiras o patrimônio arqueológico, porém estas são ignoradas. Assim, identifica‑se a ausência de espaços, de oportunidades de diálogos e de reflexões entre esses diferentes grupos e suas mais diversas compreensões sobre o patrimônio arqueológico e os povos que o produziram.

    Um elemento estratégico para a comunicação entre os bens e a sociedade seria as instituições culturais, porém, por diferentes razões e dificuldades, elas não têm conseguido cumprir com esse papel. Essas instituições da região de Santarém procuram apresentar o acervo, mas não um processo reflexivo que favoreça debates e novas interpretações desses bens patrimoniais. As exposições temporárias, organizadas principalmente por arqueólogos, apresentam narrativas acadêmicas, mas não objetivam a multivocalidade que o patrimônio arqueológico pode suscitar.

    Dentro deste contexto, o turismo pode se apresentar como uma ferramenta, e não um fim em si, incentivando a compreensão dessa relação e favorecendo o debate com os mais diversos grupos, sensibilizando quanto ao uso qualificado e a gestão do patrimônio arqueológico. Essas discussões, possibilitadas pelo turismo, podem levar a ações preservacionistas e inclusivas (7).

    O turismo convencional, não é o caminho. Por todo o mundo, formas alternativas vêm sendo incentivadas como meios de alteração de quadros negativos como os apresentados acima. Na região em apreço, poucos são os exemplos que apresentam novas perspectivas para a atividade turística. O turismo sustentável e participativo, que é uma das "novas faces", atua de forma mais responsável e inclusiva, favorecendo o diálogo multicultural e incentivando o empoderamento das comunidades locais. Nesse processo, os anseios dos mais diversos grupos são identificados e considerados no desenvolvimento da atividade, dentre eles os atores locais e os turistas. O planejamento estratégico é o principal elemento para constituição de um turismo mais sustentável e ético (7).

    Esse debate do turismo sustentável participativo se aproxima de debates atuais sobre a contribuição ética dos arqueólogos que, ao trabalharem com o passado, não podem ignorar as vozes, no presente, dos diversos grupos interessados nos bens culturais (8).

    Tentativas de aproximação entre as duas áreas vêm acontecendo, na região amazônica, como foi o caso do II Fórum de Arqueologia e Turismo na Amazônia, porém essas ações ainda são incipientes. As instituições de ensino superior da região ainda não conseguiram estabelecer um diálogo entre as disciplinas e, contudo, deveriam ser o espaço privilegiado dessas reflexões, incentivando ambas as áreas a pensar sobre seu papel relacionado à gestão e à valorização dos bens patrimoniais. Para que, em seguida, esse diálogo possa ser fomentado junto à comunidade, através de ações extensionistas multidisciplinares, onde um maior número de atores possa ser envolvido. Assim, elementos da cultura material, como o muiraquitã, podem trazer as "vozes" do passado para essa discussão. Assim, os bens arqueológicos estariam proporcionando uma reflexão das comunidades do presente sobre o seu contexto atual.

     

    Louise Prado Alfonso é turismóloga e doutora em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). Coordenadora de projetos em educação patrimonial e turismo da Zanettini Arqueologia. Email: louiseturismo@yahoo.com.br

    Anne Rapp Py‑Daniel,é arqueóloga, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Email: annerpd@gmail.com

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Bandeira, K. "O patrimônio arqueológico e o impacto das ações patrimoniais (original)". Novo título: "O patrimônio arqueológico e o Centro Cultural João Fona". Relatório de Pibex apresentado à Pró‑Reitoria de Pós‑Graduação e Pesquisa da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). 2012.

    2. Trouffard, J. "O que nos dizem as coleções da relação entre moradores e vestígios arqueológicos na região de Santarém, Pará?" In: Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na beira da estrada. Pesquisando ao longo das rodovias Transamazônica e Santarém‑Cuiabá, Pará. Organizado por D. Schaan. Belém: GKNoronha. pp.57‑72. 2012.

    3. Alfonso, L. "Embratur: formadora de imagens da nação brasileira". Dissertação de mestrado em antropologia social, apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp). 2006.

    4. Torres, M. "Terra privada, vida devoluta: ordenamento fundiário e destinação de terras públicas no oeste do Pará". Tese de doutorado em arqueologia, apresentada na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). 2012.

    5. Figueiredo, S. & Pereira, E. "Turismo e arqueologia na Amazônia – Brasil: aspectos de preservação e planejamento". IV Seminário da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós‑Graduação em Turismo UAM – 27 a 28 de agosto de 2007.

    6. Pereira E. & Figueiredo, S. "Arqueologia e turismo na Amazônia: problemas e perspectivas". Cadernos do LEPAARQ. Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio. Vol.II, n-º 3, Pelotas, RS: Editoral UFPEL. Jan/Jul. 2005.

    7. Alfonso, L. "Arqueologia e turismo: sustentabilidade e inclusão social". Tese de doutorado em arqueologia, apresentada no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP). 2012.

    8. Funari, P. "Historical archaeology and global justice". Historical Archaeology, Vol.43, n-º 4, pp.120–121. 2009.