SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200024 

    ESCULTURA

    A cerâmica transformada em arte pelas mãos de Francisco Brennand

     

    Como um dos maiores escultores brasileiros, esse recifense de 85 anos segue ativo, trabalhando, interessado no mundo que o cerca e com sua maior obra em permanente construção. Trata‑se de um grande espaço nos arredores da capital pernambucana, na antiga Cerâmica São João da Várzea, de propriedade de sua família, que funciona como ateliê e museu para sua arte, que inclui também desenhos, pinturas e ilustrações. A antiga olaria é coberta por jardins de esculturas de animais, flores e seres mitológicos que comunicam o imaginário do artista para o resto do mundo. O fato de ter tanto espaço para criar e expor talvez seja uma das razões porque é raro ter uma exposição de Francisco Brennand fora de Recife. Esta lacuna foi preenchida este ano pela mostra Francisco Brennand – Milagre da terra, dos peixes e do fogo, no Sesc Interlagos, na capital paulista, que pode ser vista até 30 de junho.

     

     

    A exposição tem curadoria do artista plástico Emanoel Araujo, ex‑diretor da Pinacoteca de São Paulo onde, em 1998, organizou uma grande retrospectiva da obra de Brennand. "Mostrar a escultura de Brennand em outro local que não seja o seu próprio, de Pernambuco, será sempre um desafio, diante do complexo diálogo criado por ele entre a escultura e o espaço em que ela se desenvolve", aponta. "Ele planta esculturas nos mais diferentes espaços do magnífico cenário que espontaneamente se apresenta a quem chega ao lugar, prenhe de uma atmosfera profana e ao mesmo tempo quase sagrada", descreve o curador no texto que abre o catálogo da exposição.

    No Sesc Interlagos a exposição traz um número bem menor de obras, mas nem por isso o conjunto é menos impressionante. "A exposição foi armada pensando em algumas vertentes que de certa forma pudessem passar em revista as muitas metáforas criadas pelo artista para compor o seu imenso repertório de grande criador", explica Araujo. Por meio do fogo Brennand dá vida à terra e a transforma em frutos, pássaros, peixes, em deuses e deusas.

    Para Camila da Costa Lima, pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que estuda a obra de Brennand, "o artista ocupa um papel de destaque por usar a cerâmica não somente como suporte para suas criações, mas como elemento importante na construção do significado de sua obra – fosse feita de outro material, o resultado não seria o mesmo, nem teria o mesmo impacto".

    Um dos seres que povoa a imaginação do artista é o pássaro roca que paira como uma sentinela, tanto na entrada como na saída da exposição em São Paulo. Na obra da mitologia persa As mil e uma noites, os pássaros roca são aves gigantescas capazes de caçar grandes animais, como bois e elefantes. No livro, o pássaro destrói o navio do marinheiro Simbad, mas ele, com sua astúcia, se amarra nas patas da ave e é levado por ela para terra firme. A literatura é muito presente no universo desse artista. Segundo ele mesmo escreve no texto O oráculo contrariado (2005), as palavras seriam inócuas se não existisse a vontade de criar imagens concretas. Em sua obra Brennand traduz com argila, o mundo das palavras e da mitologia.

     

     

    Os pássaros roca são transformados por Brennand em esculturas altas, com corpo alongado e cabeça de pássaro, que parecem desafiar a gravidade para guardar a cúpula do céu, nos dizeres de Déborah Brennand, em poema dedicado ao marido.

    Esse cenário é trazido para a exposição do Sesc por meio de painéis gigantes, instalados com tecnologia 3D, procurando simular o espaço da exposição como parte do museu. "A produção de Francisco Brennand, permeada por elementos mitológicos e simbólicos, é realizada seguindo conceitos desenvolvidos durante anos de pesquisa e experimentações. A temática peculiar aliada a um grande domínio da técnica da cerâmica resultam em obras diferenciadas, com um estilo muito próprio", afirma Camila.

    INFLUÊNCIAS A técnica é a cerâmica vitrificada "Nas diversas viagens à Europa, Brennand conheceu a cerâmica de Miró e Picasso", conta Camila. "Esta descoberta o entusiasmou para iniciar trabalhos com o barro – matéria presente em sua vida desde sempre porque ele cresceu na indústria de cerâmica de sua família, a Cerâmica São João". No início de sua carreira podem‑se destacar dois artistas que exerceram influência decisiva sobre ele: os também pernambucanos Abelardo da Hora (escultor, pintor, desenhista, gravurista e ceramista radicado desde a década de 1930 em Recife) e o modernista Cícero Dias. "Abelardo, ainda que de modo informal, foi o primeiro professor, ensinando as técnicas iniciais da modelagem. Cícero Dias, já conceituado e reconhecido quando Brennand ainda estava se interessando pelas artes, o ajudou a definir a escolha pela profissão de artista e direcionou seu estudo na Europa", explica a pesquisadora. Ela chama a atenção para o fato de, independentemente do material utilizado, as formas, cores, traço e temática manterem a unidade e identidade do conjunto de sua obra, que foge de regionalismos. Para Camila, há ainda influência de Balthus (um dos grandes pintores do século XX) com seus retratos de jovens mulheres, também presentes na produção brennandiana, e do arquiteto catalão Antonio Gaudí, cuja liberdade criativa e a diversidade de técnicas e materiais causaram‑lhe profunda impressão.

    "O artista deve ser aquele que intui o mistério e logo coincide com o eixo do mundo, com o universo", escreveu Brennnand. A origem e os mistérios da vida e a reprodução são princípios básicos nos temas tratados pelo artista. "Daí as formas de ovos e casulos, constantes em suas obras, além de figuras humanas e de fragmentos do corpo, principalmente femininos, denotando forte relação da mulher com o início da vida", diz. "Milagre está relacionado com a origem da vida e seu sentido cíclico de nascimento, reprodução e morte, aos mistérios da transformação da matéria são temas recorrentes em suas obras", destaca Camila Lima.

    O olhar de Brennand busca o milagre da transformação. Por isso sua arte segue viva, porque dialoga com as metamorfoses do mundo, com a perene transformação da natureza.

     

    Patrícia Mariuzzo