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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo abr./jun. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200025 

    DOCUMENTÁRIO

    O Piauí existe e está presente no longa metragem Kátia

     

     

    O Piauí existe – apesar de ser um dos mais "esquecidos" estados dessa estranha federação chamada Brasil. Por duas vezes, pelo menos, o pobre Piauí foi formalmente relegado ao esquecimento. Em 2010, o site do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT) o excluiu de um mapa sobre novas estradas: por mais de 30 dias publicou na sua página na internet, um mapa onde o Piauí e o Maranhão faziam parte de um mesmo território. O rio Parnaíba, divisor natural dos dois estados, com cerca de 1,45 mil quilômetros de extensão, simplesmente inexistia. Antes disso, em 2009, uma editora do Paraná publicou milhões de livros didáticos para o governo federal com o mesmo erro.

    Mas o Piauí existe não só de facto e nas cartografias corretas, mas também no cinema. É o que se pode observar em fenômenos audiovisuais como o longa independente de ficção Ai que vida (2008), dirigido pelo jornalista e cineasta maranhense Cicero Filho, e ainda o trabalho de Douglas Machado, diretor de extensa e refinada filmografia. E, a despeito dos repetidos esquecimentos, da pobreza e do subdesenvolvimento, o Piauí inova em ser o primeiro estado da federação onde uma travesti conseguiu assumir um mandato eletivo. Esse é o ponto de partida do filme Kátia (2012), documentário em longa‑metragem.

    O filme de Karla Holanda. centra foco sobre Kátia Tapety, a primeira travesti eleita a um cargo político no Brasil – ela foi vereadora por dois mandatos e também vice‑prefeita de Colônia do Piauí. O documentário, que estreou no 45° Festival de Brasília, é resultado de 20 dias de convívio da equipe de filmagens com Kátia em sua cidade. Selecionado na 36ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, recebeu os prêmios de Melhor Filme, Fotografia e Edição no VI Festival For Rainbow.

    Karla trabalha com audiovisual desde 1992 quando abandonou a profissão de fonoaudióloga exercida em Fortaleza e foi morar no Rio de Janeiro. No mesmo ano realizou seu primeiro curta‑metragem, uma ficção sobre vampiros. A partir daí, iniciou uma série de seis documentários sobre escritores brasileiros (Lúcio Cardoso, Pedro Nava, Antônio Carlos Villaça, Aníbal Machado, Rachel de Queiroz e Antônio Salles) exibidos em canais de TV e em instituições, como universidades, escolas e centros culturais, alguns dos quais foram premiados em festivais.

    O documentário começa com Kátia em seu ambiente de origem. A câmera a acompanha em seus afazeres cotidianos: manejo da roça, alimentação dos seus animais, feitura do melado. Alguns planos ilustram o entorno pobre e o asfalto esburacado (quando há asfalto) o que é uma constante nesses trechos, mostrando o descaso público para com a região. O enfrentamento do clima sertanejo nordestino, rigorosamente quente e seco, também é um tema que emerge com frequência nas falas da protagonista e demais personagens. Mas é Kátia quem de fato monopoliza as atenções, falando ou em silêncio. A câmera a acompanha em direção à cidadezinha de Oeiras, primeira capital do Piauí. Ela quer registrar sua filha adotada – mas como mãe. Diante da impossibilidade legal, Kátia aceita assumir a paternidade da filha. O contato de Kátia com a autoridade judicial é uma cena‑chave, que revela uma surpresa sobre o conservadorismo da região e resume o temperamento incisivo da personagem. Segundo explica a diretora, "a resposta do juiz é tida como avançada, já que ele não vê problema na adoção. Talvez a cena quebre a expectativa que se cria sobre a região, de ser especialmente conservadora".

    ENTREVISTA KARLA HOLANDA

    Encontro com realidade inesperada

     

    De onde surgiu a inspiração para fazer o documentário?

    Soube de Kátia Tapety através de notícias na internet, em 2007, quando morava em São Paulo. O que me chamou a atenção foi ela ter se tornado a primeira travesti eleita a um cargo político no Brasil e vir de um lugar inesperado: o sertão do Piauí, região tão imediatamente associada a machismos e "cabras da peste". Além disso, sou também do Piauí e logo me senti familiarizada com a paisagem, o sotaque e o humor que saltavam das matérias. No entanto, ao visitar pessoalmente Kátia em sua cidade, o que fiz três meses depois (janeiro de 2008), o fato de ela ser a travesti que rompia expectativas se tornou secundário. A realidade que a circundava era tão mais abrangente, prolixa, polifacetada e dinâmica que, logo no primeiro dia, eu não tive dúvida: tinha que fazer aquele filme!

    Como foi o contato com Kátia e como avalia a participação dela no filme?

    Ela não tinha ideia exata do que era um filme – só tinha visto filmes na TV, nunca teve a experiência da sala de cinema. Mas, inteligente, ela logo entendeu que era algo que poderia destacá‑la. Sempre foi solícita, mesmo com breves momentos de desconfiança, porém mais por influência de terceiros, que lhe inculcavam medos a respeito da intenção do filme. Aprendi muito com ela sobre respeitar, de verdade, as diferenças. Quando a conheci, esperava encontrar uma política engajada, com princípios e ideais definidos. O que vi, no entanto, não era nada diferente do modelo de se fazer política na maioria das cidades brasileiras: assistencialismo e paternalismo – favores em troca de votos. Quando deixei de julgar e querer encaixar aquela realidade nos meus códigos, minha relação com ela cresceu muito e isso ajudou no filme. As necessidades daquele lugar são de natureza tão elementar que o assistencialismo que Kátia pratica – e ela faz isso durante todo o ano, mesmo quando está sem cargo e não é candidata – faz uma diferença enorme na vida de muitos ali. Kátia é acostumada a mandar e a dar ordens porque muitos esperam isso dela.

    Durante a execução do projeto, existiu algum tipo de preconceito?

    É claro que o preconceito sobre a temática existe e é forte. Mas, diante da Kátia, ele se dissipa. Até os mais homofóbicos, que costumam se divertir com piadinhas banais, se sentem intimidados e até ridículos – porque Kátia vai muito além.

     

     

     

    Em seguida, de volta à sua comunidade, a câmera mostra o convívio com seus vizinhos e em suas "ações assistenciais". Nesse segundo "bloco" do documentário, fica sugerido que Kátia doa remédios, providencia documentos e assistência médica para moradores da comunidade. O sincretismo religioso orienta uma Kátia diplomática, que mantém bom relacionamento com a igreja católica da região, ao mesmo tempo em que participa de rituais de umbanda.

    Nas palavras de uma senhora entrevistada, prima de Kátia (porém da ala mais aristocrática e conservadora dos Tapety, uma das famílias mais influentes na política do Piauí), em Oeiras não se alimenta preconceito de gênero, contra homossexuais. Segundo ela, como o povo é muito cristão e católico, a tolerância seria uma constante. O rosto de Kátia ao fundo, em segundo plano, mão sob o queixo, sublinha a fala da senhora religiosa em eventual contraponto: focando Karla e Jane, a câmera adota a velha técnica de "um olho no padre e outro na missa". A vida afetiva de Kátia é sugerida, porém não explicitada: sabe‑se que ela tem um ex‑companheiro e que está prestes a assumir uma nova união.

    Kátia demonstra um passo de maturidade na carreira de Karla Holanda. A abordagem documentarista de personalidades tipicamente brasileiras parece uma constante na obra da artista, que apresenta influências depuradas do cinemanovismo. O método de Karla, sua técnica de aproximação de pessoas comuns e suas singelas histórias privadas, foi sendo gradativamente delineado em curtas anteriores como Vestígio (2002) e Riso das flores (2004), e não esconde a influência de uma certa antropologia visual, notadamente de obras como Moi, un noir (1958), e Jaguar (1967), de Jean Rouch, ou ainda Crônica de um verão (Chronique d'un éte, 1961), de Rouch e Edgar Morin.

    Kátia representa um avanço na carreira de Karla, seu projeto mais ambicioso e complexo. Ao mesmo tempo em que se preocupa com a integridade de seu personagem, a emergência de temas, entornos e atmosferas tipicamente brasileiras, Karla não dá as costas à comunicação mais ampla com seu público.

     

     

    Alfredo Suppia