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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo jul. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300002 

     

    A fronteira da indústria farmacêutica no Brasil: enantiômeros

    Marco Aurélio Cremasco

     

     

    A indústria química é um dos setores mais dinâmicos e vitais de qualquer economia industrializada. Isto é consequência da geração de produtos finais amplamente demandados por consumidores, assim como uma vasta lista de intermediários utilizados por outras indústrias em seus processos produtivos. A capacidade de inovar mais rapidamente do que os demais setores, oferecendo sempre novos produtos e modificando processos, permitiu notável crescimento para este tipo de indústria. Atualmente, o Brasil é a sexta potência mundial no setor químico. Por outro lado, o país vem apresentando um histórico preocupante em sua balança comercial, verificando-se o crescimento explosivo no déficit de US$ 1,5 bilhão em 1991 para pouco mais de US$ 28 bilhões em 2012. Urge o investimento na agregação de conhecimento, de tecnologia e de inovação para aumentar a competitividade das empresas nacionais (1). Segundo dados apresentados por Vieira (2), o valor agregado das exportações brasileiras concentraram-se, majoritariamente, em produtos de baixa intensidade tecnológica.

    Verifica-se que a produção de fármacos é um fator de desempenho econômico a ser considerado. O caráter das intervenções no funcionamento dos mercados farmacêuticos, principalmente nos países desenvolvidos, objetiva reduzir os gastos com saúde, inclusive com medicamentos, e assegurar o acesso geral da população aos tratamentos de forma racional (3). Todavia, a contribuição da indústria farmacêutica ocorrerá caso se invista na inovação tecnológica de seus produtos e/ou processos por meio de melhoria de processos que conduzam à produção de fármacos de alto valor agregado, como é o caso dos fármacos enantioméricos ou quirais.

    Enantiômeros são compostos que apresentam a mesma fórmula molecular, mas que não se sobrepõem, sendo imagem especular do seu par complementar. A diferença entre as moléculas está na maneira como os átomos estão dispostos no espaço e na ordenação nas respectivas moléculas, as quais apresentam as mesmas propriedades físicas e químicas tais como: ponto de fusão, ponto de ebulição e solubilidade, entre outras propriedades. A mistura equimolecular de dois enantiômeros é denominada forma racêmica (ou mistura racêmica). A mistura racêmica é oticamente inativa, enquanto os pares de enantiômeros apresentam diferenças nas propriedades fisiológicas.

    Observa-se que, em certos casos, um dos enantiômeros é o isômero mais ativo. Todavia, o menos ativo, para determinada ação fisiológica, pode acarretar efeitos colaterais, como é o caso da talidomida, comercializada como mistura racêmica entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, como sedativo e analgésico. Depois da tragédia causada por esse fármaco, em razão do (-)-(S)-enantiômero apresentar efeitos teratogênicos levando, por falta de conhecimento das diferenças toxicológicas entre os enantiômeros, à má formação de milhares de fetos humanos, novos estudos para fármacos quirais foram desenvolvidos (5).

    INDIVIDUALIZAÇÃO DOS ELEMENTOS A necessidade, portanto, de se obter enantiômeros individualmente separados para testes clínicos tem se tornado de extrema prioridade na pesquisa farmacêutica e no desenvolvimento de novos fármacos (6). Dentro desse contexto, existe uma série de vantagens da comercialização de enantiômeros puros sobre a comercialização da mistura racêmica, dentre elas: redução da dose e da carga no metabolismo; restrições menos rígidas na dosagem, ampliação do uso do fármaco; melhor controle da cinética da dosagem; redução da variabilidade da resposta dos pacientes; maior confiança na padronização da dosagem; redução nas interações com outros fármacos de uso comum; aumento da atividade e redução na dosagem; aumento de especificidade e redução de efeitos colaterais.

    No que se refere à comercialização de fármacos enantioméricos, nos EUA, por exemplo, a fabricação quiral domina o mercado no setor farmacêutico, passando de um faturamento de mais de US$ 1 bilhão em 2003 para mais de US$ 1,6 bilhão em 2008 (4). Os fármacos quirais representam mais da metade dos aprovados em todo o mundo, incluindo muitos daqueles mais vendidos no planeta. Por exemplo, entre as 10 prescrições de produtos farmacêuticos mais vendidos nos EUA em 2009, seis deles são enantiômeros puros, dois são aquirais e dois racematos. Todavia, o valor do fármaco enantiomérico é superior ao da mistura racêmica no qual está presente. O enantiômero (-)-(S)-verapamil, um importante antagonista de íons cálcio e indicado no tratamento de angina, hipertensão arterial, fibrilação ou flutter atrial e taquicardia supraventricular paroxística, apresenta o valor em cerca de 520 vezes o valor da mistura racêmica (indicada para as mesmas patologias, contudo menos efetiva), a qual é comercializada a R$ 366/grama. Nota-se, assim, a importância de desenvolver tecnologias inovativas que busquem, sim, o lucro, mas um lucro responsável, como também o aumento na escala de produção, de modo a atender a sociedade com preços acessíveis e um produto altamente específico e que reduza efeitos colaterais, decorrentes do emprego da mistura racêmica.

    Torna-se de extrema importância, para a indústria farmacêutica, a adoção efetiva da inovação de negócios, com o objetivo de alcançar vantagem competitiva; e a inovação em gestão, relacionada ao desenvolvimento de novas estruturas gerenciais. Neste caso, é importante refletir sobre a independência da gerência de P&D em relação à gerência industrial, de modo a propiciar a pesquisa aplicada e responder pelo desenvolvimento experimental que, por sua vez, objetiva a construção de protótipos de produção.

    Como se vê, a indústria farmacêutica, tendo como foco o fármaco quiral, envolve o conhecimento interdisciplinar e multidisciplinar, pois no seu desenvolvimento estão presentes diversos profissionais que interagem, podendo-se citar: químicos (na identificação de moléculas quirais e suas propriedades), engenheiros químicos (na ampliação de escala, definição de processos produtivos), médicos (na condução de testes pré-clínicos e clínicos), biólogos (no estudo de atividades biológicas ), farmacêuticos (na preparação do fármaco, em forma sólida ou líquida, para o seu emprego), administradores (na avaliação de novas estruturas organizacionais), economistas (na avaliação macroeconômica do impacto da produção desses fármacos), sociólogos (no estudo do impacto social com o emprego de um produto mais efetivo e menos agressivo); profissionais de marketing (no que se refere à mobilização da mídia quanto à diferenciação entre fármacos racêmicos e enantiôméricos).

    O bem-estar das pessoas deve ser procurado independentemente do que elas possam gerar em termos econômicos. Ser livres de doenças ou do analfabetismo é relevante não só pelo que representa como crescimento ao capital humano e ao crescimento econômico, mas também pela vida das pessoas, da sua dignidade, felicidade e autoestima. Esse olhar também deve ser considerado ao se avaliar critérios de custos e benefícios.

     

    Marco Aurélio Cremasco é professor titular em engenharia química e livre docente da Unicamp. Autor de Fundamentos de transferência de massa (Editora da Unicamp) e Vale a pena estudar engenharia química (Editora Edgard Blucher).

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Leite, L. F. "Metodologia de seleção, avaliação e priorização de projetos tecnológicos inovadores". Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

    2. Vieira, E. Tempo de criar. Indústria Brasileira, Sistema Indústria, Confederação Nacional da Indústria, ano 6, nº. 69, p. 17, 2006.

    3. Gadelha, C. A. G.; Quental, C.; Fialho, B. C. "Saúde e inovação: uma abordagem sistêmica das indústrias da saúde". Cad. Saúde Pública, v. 19, nº.1, p. 47, 2003.

    4. Nascimento, A. C. "Resolução enantiomérica do secnidazol". Campinas: Faculdade de Engenharia Química, Unicamp, 2012. 122 p. Dissertação (mestrado).

    5. Caldwell, J. "Stereochemical determinants of the nature and consequences of drugs metabolism". J. Chromatogr., v. 694, p. 39, 1995.

    6. Sartor, J. P. "Separação cromatográfica do fármaco rolipram utilizando fase estacionária O,O-bis[4-terc-butilbenzoil]-N,N-dialil-L-tartardiamida". Campinas: Faculdade de Engenharia Química, Unicamp, 2006. 113 p. Dissertação (mestrado).