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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo jul. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300003 

     

    EDUCAÇÃO

    Cotas de acesso ao ensino superior ajudam a transformar a universidade pública

     

    Alguma coisa acontece nas universidades brasileiras. Há quem chame de mau gosto o que vê, porque "narciso acha feio o que não é espelho", diria Caetano Veloso em Sampa. São estudantes oriundos de famílias com renda inferior a um salário mínimo e meio, além de indígenas de diferentes etnias, que estão se fazendo presentes em salas de aula de cursos concorridos como medicina e engenharias, entre outras. São os cotistas que, desde agosto de 2012, passaram a ser regulamentados pela Lei das Cotas (Lei nº 12.711). Esta lei, que reserva 50% das vagas de cursos superiores para alunos vindos de escolas públicas e autodeclarados negros também oriundos de escola pública, é tema de vários estudos acadêmicos e movimenta a pauta da grande mídia.

    Prós e contras se multiplicam, com argumentos que vão desde o fatalista "será o fim da universidade pública de qualidade" até o apologista "trata-se de uma nova abolição dos escravos". Há, ainda, os que veem a Lei de Cotas como mais uma política afirmativa para tentar diminuir as desigualdades no país. Afinal, curso superior é um caminho indicado para empregos com melhores salários. Com efeito, dados da pesquisa Estatísticas do Cadastro Central de Empresas (Cempre) 2011, divulgada em 24 de maio de 2012 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que em 2011 quem tinha nível superior recebia, em média, salário de R$ 4.135,00 e quem não tinha, R$ 1.294,00. A diferença salarial entre os trabalhadores brasileiros com e sem nível superior pode chegar a 219%.

    Portanto, o diploma universitário pode ser, de fato, um passaporte para ascensão social. Não é de se estranhar que, alheios ao debate sobre a pertinência da Lei das Cotas, mais de 7,8 milhões candidatos estão inscritos para as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2013. O Enem é utilizado como critério de seleção para os estudantes que pretendem concorrer a uma bolsa no Programa Universidade para Todos (ProUni) ou para uma das 500 universidades brasileiras, segundo dados do Ministério da Educação (MEC), que já usam o resultado do exame como critério de seleção para o ingresso no ensino superior, seja complementando ou seja substituindo o vestibular. E a Lei de Cotas já está valendo para as instituições federais de ensino superior.

    Em contrapartida, mesmo com pouco tempo ainda da adoção de algum tipo de cota de acesso, o que já se observa é que tal política nas universidades públicas contribui gradualmente, num processo lento, para uma transformação da universidade. E, nessa transformação, o lado mais resistente não é o aluno cotista que precisará fazer um grande esforço para acompanhar os cursos, se não tiver a necessária base que o ensino médio deveria oferecer. Os docentes também precisarão aprender a conviver com essas diferenças, que poderão contribuir, positivamente, para uma composição mais diversificada do alunado, capaz, assim, de melhor refletir, na universidade, a diversidade social e étnica de que se faz a nossa população.

    PRIVILÉGIOS ANTIGOS Um trabalho de Silvia Maria Leite de Almeida, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), publicado na revista HISTEDBR On-line, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aponta que muitos dos privilégios concedidos em relação ao acesso à educação superior vêm sendo regulamentados desde o Império, pelo poder legislativo. Segundo Silvia, ao longo de nossa história muitas são as normas que concederam para poucos a possibilidade de se matricularem em cursos superiores sem terem todos os exames exigidos.

    Um dos exemplos mais flagrantes é a Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, conhecida como Lei do Boi. Assinada pelo então presidente da República, Marechal Costa e Silva, essa lei fixava em seu artigo 1º que os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura e veterinária mantidos pela União, reservariam preferencialmente, cada ano, para matrícula na primeira série, 50% de suas vagas a candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residissem com suas famílias na zona rural. E, mais, nos estabelecimentos de ensino médio mantidos pela União, 30% das vagas restantes seriam reservadas, preferencialmente, para os agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residissem em cidades ou vilas que não possuíam estabelecimentos de ensino médio. Para sua aplicação, bastaria ao candidato apresentar um certificado fornecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), atestando que residia em área rural.

    A Lei do Boi vigorou durante 17 anos e só foi revogada em 1985, graças ao movimento de estudantes gaúchos que questionaram sua legalidade. E motivos não faltavam. Os beneficiários da Lei do Boi foram de fato os filhos da elite rural. Havia também muitas distorções, não foram poucos os que, residindo em cidades de médio e grande porte, ingressaram em cursos de agronomia e veterinária, fazendo uso de certificados de residência em latifúndios ou casas de campo. Enquanto a Lei do Boi vigorou não se argumentou que a qualidade dos cursos de ciências agrárias poderia ficar comprometida, nem houve quem defendesse que a desigualdade social no campo seria enfim eliminada. Mesmo porque os pequenos agricultores e seus filhos, naquela época – e a rigor ainda hoje em muitas regiões – dedicavam grande parte de seu tempo ao trabalho, para garantir a sobrevivência da família. Mal frequentavam escolas para alfabetização. Ensino superior? Nem em sonhos.

     

     

    UNIVERSIDADE HETEROGÊNEA Em 2004 ocorreram os primeiros vestibulares em universidades públicas por meio de um sistema de cotas, que variava de uma instituição a outra. As precursoras foram a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), seguidas pela Universidade de Brasília (UnB), pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

    Mas antes mesmo de se formarem as primeiras turmas, muitas análises foram e continuam sendo feitas, ora questionando os efeitos da política de cotas ora apontando suas grandes possibilidades de inclusão social. Em geral esses argumentos, sejam favoráveis ou não, tendem a discutir universidade como se esta fosse única, uniforme e uníssona. Existem grandes diferenças regionais, e dentro de uma mesma instituição as diferenças entre cursos podem ser enormes.

    Análises que dividem todos os alunos de uma mesma universidade em cotistas e não cotistas, não consideram a diversidade que os números não revelam.

    Um interessante exemplo é o estudo feito por Fábio Waltenberg e Márcia Marques de Carvalho, pesquisadores do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede-UFF). A partir do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2008, os autores traçam um perfil dos concluintes dos cursos avaliados naquele ano, comparando alunos beneficiados por ações afirmativas com os demais alunos. Os dados referem-se a 167.704 concluintes. Estes, em algumas análises, foram agrupados de acordo com o cruzamento de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes cursos, em cursos de baixo (pedagogia), alto (engenharias e ciência da computação) e médio prestígio social (os demais). Essas categorias foram definidas de acordo com o cruzamento de informações acerca das proporções de não brancos, egressos de ensino médio público e baixa escolaridade dos pais nos diferentes cursos. Entendendo-se como diversidade uma maior representação de grupos desfavorecidos, os autores concluem que as diversas políticas de ações afirmativas foram de fato bem sucedidas no objetivo de proporcionar maior diversidade nas universidades, embora tal tendência seja menos clara em cursos mais prestigiosos. Com relação ao desempenho dos alunos, a nota média dos concluintes das estaduais e federais que ingressaram por meio de ações afirmativas é cerca de 0,4 pontos em 10 menor com relação aos concluintes que ingressaram pelo método tradicional, ou seja, pouco significativa.

    O DIREITO DOS DIFERENTES As políticas de ação afirmativa surgiram a partir da década de 1960, no auge da luta dos negros norte-americanos pelo fim da segregação racial legal, até então em vigor em várias esferas da vida social nos Estados Unidos. A expressão ação afirmativa tem sido atribuída a John Kennedy que, em decreto presidencial de 1961,determinou que órgãos do governo dos Estados Unidos deveriam adotar medidas afirmativas no sentido de assegurar o acesso e a permanência como empregados de indivíduos das diversas raças, credos e nacionalidades. Depois disso, a expressão ganhou conteúdo mais preciso e passou a definir as medidas especiais e temporárias que buscam acelerar o processo de igualdade substantiva por parte de grupos considerados vulneráveis.

    Assim, enquanto ação afirmativa, a atual Lei de Cotas, busca reduzir as fortes distorções que são observadas na sociedade brasileira. E, ao contrário da Lei do Boi, que não tinha prazo para sua vigência e cuja revogação exigiu a Lei nº 7.423, de 17 de dezembro de 1985, a Lei das Cotas tem prazo de validade. O artigo 7º prevê que "o poder executivo promoverá, no prazo de dez anos, a contar da publicação da Lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior".

    Em trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino (XVI Endipe), realizado na Unicamp em 2012, Daniela Frida Drelich Valentim, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), considera que as ações afirmativas para os negros nas universidades fazem parte das chamadas políticas de reconhecimento da diferença, cujas demandas estão ligadas à representação, à cultura e à identidade dos grupos étnicos, raciais, sexuais, dentre outros. Segundo ela, as demandas por reconhecimento vêm adquirindo maior relevância na arena política desde o fim do século XX.

    Mas Daniela pondera que essas demandas estão ocorrendo em um mundo de desigualdade material acentuada, onde ainda faz muito sentido lutar por uma repartição menos desigual das riquezas sociais.

     

    Leonor Assad