SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo July 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300008 

     

    RASTROS DA REPRESSÃO

    Arqueologia investiga vestígios materiais da ditadura argentina

     

    É possível dizer que na Argentina praticamente toda família tem um familiar desparecido ou conhece alguma vítima do regime militar. A afirmação é do antropólogo Andrés Zarankin, professor do Departamento de Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal da Minas Gerais (UFMG) que trabalhou em parceria com Melisa Salerno, do Departamento de Investigações Prehistóricas e Arqueológicas, da Universidade de Buenos Aires. Uma comissão instituída pelo governo em 1983 contabilizou nove mil casos de pessoas desaparecidas. Órgãos ligados aos direitos humanos, no entanto, falam de mais de 30 mil pessoas sequestradas e que continuam desaparecidas no país. Por isso, a ditadura militar argentina, entre 1976 e 1983, é considerada uma das mais violentas da América Latina.

    Parte dessa história de repressão e abusos contra os direitos humanos tem sido trazida à tona por meio de estudos arqueológicos. Zarankin coordenou pesquisa, em um dos Centros Clandestinos de Detenção (CCDs), lugares para onde eram levados os opositores do regime. "Eram mais de 340 e estima-se que por eles passaram entre 1,5 e 20 mil pessoas, das quais 90% foram assassinadas", explica o pesquisador. Um diferencial dos CCDs é que eles não existiam institucionalmente. Funcionavam clandestinamente, não possuíam nenhum tipo de convenção, o que ampliava seu poder de repressão. "Como eram invisíveis, eles se convertiam em não-lugares, transformando os que eram levados para lá em desaparecidos", destaca Zarankin.

    BUSCANDO PROVAS De acordo com a Anistia Internacional, organização para defesa dos direitos humanos, o desaparecimento encobre a identidade do autor porque se não há preso, cadáver ou vítima, ninguém pode ser acusado. Na Argentina, pesquisas arqueológicas possibilitaram encontrar esses lugares, dando a eles uma identidade ao analisar a arquitetura, a organização e o funcionamento desses espaços e, ainda mais, por meio delas foi possível gerar provas em processos judiciais e punir militares envolvidos nos crimes da ditadura. De acordo com Melisa, os trabalhos conduzidos pelos arqueólogos argentinos constituem um antecedente importante para o estudo das ditaduras em toda a América Latina.

    Nos trabalhos de escavação do CCD, em Buenos Aires, conhecido como Club Atlético, foi utilizada uma planta gerada a partir da memória dos sobreviventes, que mostrou que o espaço era altamente compartimentalizado, com salas de tortura, de interrogatório e de isolamento. O Club Atlético era dividido em um setor superior, ocupado pela burocracia, e outro inferior, onde ficavam alojados os prisioneiros e as salas de tortura, estrategicamente posicionadas no espaço central. De acordo com Zarankin, isso permitia menor circulação dos presos e, ao mesmo tempo, que seus gritos fossem ouvidos pelos que estavam nas celas.

    A primeira coisa que se fazia quando uma pessoa chegava ao local era retirar sua roupa e lhe dar um número. "Para o torturador é muito mais fácil lidar com alguém sem nome", explica Zarankin. Os presos ficavam a maior parte do tempo vendados, algemados e isolados. Era como se os presos se tornassem parte daquele espaço, "tendo seus corpos transformados e consumidos pela arquitetura da repressão, como se as pessoas fossem desaparecendo simbolicamente".

    TROCA DE IDENTIDADE As roupas recuperadas durante a exumação de corpos de pessoas desaparecidas também constituíram um importante conjunto de vestígios materiais, tanto para entender as estratégias da repressão na desarticulação da identidade das vítimas, quanto para devolver-lhes a identidade. Melisa Salerno explica que o poder repressivo ao retirar as roupas dos prisioneiros, deixando-os nus, objetivava, entre outras razões, negar a condição cultural dos detentos, aproximando-os da animalidade e gerando um sentimento de humilhação. Ao mesmo tempo, a ausência de roupas facilitava alguns tipos de tortura. "Em última análise, o nu procurou garantir o controle sobre corpos das vítimas evitando que elas usassem suas próprias roupas para cometer suicídio", disse.

     

     

    Outra prática comum nos CCDs era trocar a roupas dos reféns. Isso dificultava o reconhecimento de si mesmo e dos outros, alterando identidades e filiações. Na maioria dos casos roupas e calçados eram diferentes dos mencionados pela família, em uma estratégia para perpetuar o status dos prisioneiros "desaparecidos". "Nosso trabalho permitiu inferir que corpos enterrados com pouca ou nenhuma roupa são um indício de passagem das vítimas pelos centros clandestinos", explica a pesquisadora. Do mesmo modo, muitas vezes os presos recebiam roupas limpas, com a promessa de ser liberados. Porém, um destino comum nesses casos era sua execução em enfrentamentos forjados com a polícia.

    O levantamento arqueológico no Club Atlético (cujo prédio foi demolido para construção de uma estrada) permitiu transformar um espaço clandestino, e que poderia ter sido engolido pelas mudanças da cidade, em algo físico. A arqueologia histórica pôde devolver àquele espaço sua condição de lugar de memória, uma memória que pode ser tocada, cheirada e experimentada. Uma memória para não ser esquecida.

     

    Patrícia Mariuzzo