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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo jul. 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300020 

     

    MEIO AMBIENTE

    QUEBRANDO COCO, ROMPENDO PARADIGMAS

     

    Elas acordam cedo, caminham vários quilômetros para entrar na mata. Lá, saem em busca das palmeiras de babaçu para colher seu fruto. Quando se reúnem em pequenos grupos para quebrar os pequenos cocos e retirar sua preciosa amêndoa, cantam pela preservação dos babaçuais: "Não derrube esta palmeira. Não devore os palmeirais. Tu já sabes que não podes derrubar. Precisamos preservar as riquezas naturais". Elas são as mulheres quebradeiras de coco de babaçu do Médio-Mearim, região central do estado do Maranhão, um exemplo bem sucedido da convivência equilibrada entre humanos e o meio ambiente, cuja história está intimamente ligada à luta contra a privatização do uso da terra e dos babaçuais.

    As populações tradicionais, que vivem perto das florestas no Maranhão aproveitam tudo o que a palmeira de babaçu oferece (veja box). "Para alimentação usam as palmeiras menores, chamadas pindovas, retiram o palmito que serve tanto para alimento humano como para ração animal, fazem farinha e das amêndoas extraem o óleo, retiram o leite e o azeite, utilizados na cozinha e na fabricação de sabão e sabonetes", descreve Rosana Schuwartz, historiadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que coordenou entre 1989 e 2010, o projeto "Quebradeiras de coco de babaçu e o desenvolvimento sustentável: formas de educação ambiental e comunicação". Das folhas das palmeiras são feitos cestos, leques, cercados e a cobertura das casas, sendo ainda utilizadas como adubo orgânico. Da casca do coco tiram o carvão, usado na cozinha. Do gongo, larva que fica dentro da amêndoa, fazem frituras ou transformam em óleo para usar nos cabelos.

    Enquanto para as populações das cidades, muitas vezes, a preservação do meio ambiente é algo distante, para essas comunidades é na relação com os recursos naturais que se dá a formação de sua identidade. A preservação da floresta é uma tradição transmitida oralmente de geração para geração. "Preservar esses recursos significa assegurar a reprodução social dos povos envolvidos", afirma Rosana. Segundo ela, para as mulheres que vivem da quebra do coco, garantir o acesso e a preservação dos babaçuais vai muito além da renda. "Significa manter suas tradições e o equilíbrio com o meio ambiente, já é um modo natural de sustento e de impedir que as paisagens locais se transformem em capinzais para o gado", afirma. "Foi por isso que as mulheres quebradeiras de coco de babaçu, juntamente com outras comunidades tradicionais, se organizaram em associações, entrelaçando, em suas reivindicações, questões de gênero e meio ambiente".

    MULHERES MULTIFUNCIONAIS "Somos quebradeiras de coco de babaçu, extrativistas, donas de casa, mulheres, mães, avós, esposas, trabalhadoras rurais organizadas pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), que integra quatro estados brasileiros onde há ocorrência de palmeiras de babaçu: Maranhão, Tocantins, Pará e Piauí", informa o texto que abre a página do MIQBC na internet. O objetivo do Movimento, criado no final dos anos 1980, é conquistar melhores condições de vida e de trabalho para essas mulheres. A luta das quebradeiras se insere em um contexto de forte pressão tanto pelos altos índices de desmatamento como pela privatização das áreas ocupadas pelo babaçu. Segundo Rosana Schuwartz, diversas áreas são devastadas para dar lugar aos pastos, fato que provoca tensões, inclusive em unidades de conservação oficialmente reconhecidas, como no caso das reservas do Ciriaco e Mata Grande, além do Parque Estadual do Mirador, todos no Maranhão.

    Outra organização liderada por elas e por trabalhadores rurais é a Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (Assema). Fundada em 1989, ela apoia a agricultura familiar, prestando assessoria técnica e jurídica, e o extrativismo sustentável por meio da utilização e preservação dos babaçuais. O surgimento desses dois movimentos coincide com as primeiras incorporações de variáveis ambientais pelos movimentos sociais e suas lutas pelo reconhecimento do conhecimento tradicional que aconteceram no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, diz a historiadora.

    QUESTÕES DE GÊNERO Conhecimento tradicional que deve ser entendido como uma reapropriação e reinvenção de uma categoria vinculada ao passado, mas que se projeta para o presente e futuro. Isso significa que esse conhecimento acaba reinventando as questões de gênero presentes nas associações não governamentais, como a Assema e a MIQCB - "que entrecruzam a defesa ao meio ambiente, cultura tradicional e igualdade de direitos entre homens e mulheres", pontua Rosana.

    Dentre as conquistas da Assema está a aprovação, em 1997, da Lei do Babaçu Livre. "Essa lei garante às quebradeiras e às suas famílias, direito de livre acesso e de uso comunitário dos babaçus (mesmo quando dentro das propriedades privadas) e ainda impõe restrições significativas à derrubada das palmeiras, os cortes dos cachos e o uso de herbicidas na região dos babaçuais", explica a pesquisadora. Mesmo assim, muitos fazendeiros impedem a entrada das quebradeiras para coletarem o coco do babaçu em suas propriedades, instalando cercas elétricas e até disparando tiros para amedrontar as mulheres. Desde então outras leis foram aprovadas. No estado do Tocantins houve aprovação de lei estadual que, além de garantir o livre acesso, proíbe a queima e venda do coco inteiro, conta Ana Carolina Magalhães Mendes, da coordenação técnica do MIQCB.

    "O combate ao desmatamento das florestas de babaçu e o estabelecimento de preços justos para os produtos que fabricamos (veja box) demandam trabalho constante", afirma Silvianete Matos Carvalho, secretária executiva da Assema. "Em outra frente, buscamos novas tecnologias para o aproveitamento integral do babaçu, que facilitem a conversão das amêndoas em produtos de maior valor", completa.

    Um fator de disputa mais recente em torno do babaçu foi gerado pelo uso do coco para a produção de carvão vegetal. "Diversas fazendas foram arrendadas para essa atividade, cujo mercado consumidor é formado por empresas de óleos vegetais, cerâmicas e, principalmente, pelas siderúrgicas ligadas ao Projeto Carajás", conta Rosana. Ela ressalta que as organizações extrativistas não são contrárias ao uso do coco para produção de carvão, desde que seja somente a casca e não o coco inteiro, com a amêndoa, principal subproduto da economia familiar do babaçu.

    COMUNIDADES DE FIBRA A especificidade dessa economia é que ela se baseia em unidades familiares, onde o trabalho é dividido entre todos os membros da família e passado de uma geração para outra, construindo relações de gênero próprias dessas comunidades tradicionais, que tem o meio ambiente como palco principal. Por isso ele passa a ser um instrumento de luta política. Nas organizações que essas mulheres criam para lutar pela preservação do meio ambiente e por seus direitos como trabalhadoras, elas encontram uma possibilidade de voz e ação política, recusando a vitimização do papel feminino que, muitas vezes, a sociedade impõe. "A prática social cotidiana das mulheres quebradeiras de coco de babaçu cria atividades diferentes, complementares e não raramente conflituosas em meio às questões entre o masculino e o feminino. Cada gênero foi construído historicamente com uma função e uma missão: às mulheres o mundo do lar, do íntimo e aos homens as responsabilidades do mundo público. Essas mulheres, quebrando cocos, alteram a cada dia essa relação", finaliza a historiadora.

     

    Patrícia Mariuzzo