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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.65 no.3 São Paulo July 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000300021 

    PAULO VANZOLINI

    PAIXÃO PELA CIÊNCIA E PELA MÚSICA DEIXOU MARCAS POR ONDE PASSOU

     

    O seu olhar perspicaz ao identificar padrões históricos numa diversidade antes confusa contribuiu para que a zoologia brasileira deixasse de ser uma mera busca pela descrição de novas espécies e para que se começasse a pensar em hipóteses evolutivas. Ao mesmo tempo, foi o observador do cotidiano com uma sensibilidade humanística que compôs clássicos do samba como Ronda, Volta por cima e Na boca da noite, entre tantos outros. Este foi Paulo Emílio Vanzolini, cuja voz calou-se no último dia 28 de abril em São Paulo.

    Zoólogo e compositor, Paulo Vanzolini conciliou suas paixões pela música e pela pesquisa científica, deixando marcas profundas nas duas áreas e tendo influenciado músicos e pesquisadores. Sua carreira começou cedo. Com apenas 14 anos iniciou um estágio no Instituto Biológico de São Paulo, onde descobriu a vocação para a zoologia. No entanto, ingressou na Faculdade de Medicina da USP, seguindo um conselho de um amigo de seu pai. O que pode parecer um desvio em sua carreira foi na verdade um aprofundamento em sua área: foi na USP que iniciou seus estudos sobre anatomia, histologia, embriologia e fisiologia que o ajudaram muito em suas pesquisas sobre vertebrados.

     

     

    Apesar de ser aluno de medicina, Vanzolini passava grande parte de seu tempo no Laboratório de Zoologia da universidade. Tanto que, no quinto ano de medicina, foi nomeado para o Museu de Zoologia. Em 1949, foi para os Estados Unidos, onde obteve o doutorado em zoologia pela Universidade de Harvard e especializou-se em herpetologia (estudo de répteis e anfíbios). Ao voltar para o Brasil, retomou seu trabalho no Museu de Zoologia.

    Os trabalhos de Vanzolini foram um divisor de águas nas pesquisas em zoologia no Brasil e tiveram ampla repercussão internacional. O principal fator inovador é que tinha como premissa o neodarwinismo que, ao fazer a síntese entre o conhecimento da genética mendeliana com a teoria evolutiva de Darwin, passou a considerar a população genética como a unidade do processo evolutivo.

    "Partindo dessa premissa, suas pesquisas se concentraram no estudo da variabilidade intrapopulacional e interpopulacional das espécies, levando em consideração a distribuição geográfica, a variação ambiental, enfim, a ecologia dos organismos", explica Fábio de Melo Sene, professor da USP de Ribeirão Preto.

    VIDA DE CIENTISTA Outro destaque em suas pesquisas foi o estudo de caracteres de variação contínua, o que exigia grandes amostras de cada população e complexas análises estatísticas dos dados. Para obter as amostras foram necessárias extensas excursões de campo pela América do Sul, com grande esforço de coleta na Amazônia. Suas pesquisas de campo fizeram com que a coleção herpetológica do Museu de Zoologia passasse de 1.200 para 230 mil espécimes.

    "Vanzolini tinha fama de pesquisador exigente, cuidadoso, devotado à ciência. Formou uma das coleções mais organizadas do mundo e a maior da América Latina, além de uma biblioteca associada a ela que possuía literalmente todas as obras referentes à herpetologia neotropical, desde as primeiras, publicadas nos séculos XVII e XVIII, até as mais modernas e recém-publicadas", conta Ulisses Caramaschi, professor do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    Vanzolini foi premiado pela Ordem Nacional do Mérito Científico com a classe Grã-Cruz por sua contribuição na área das ciências biológicas, e também recebeu um prêmio da Fundação Guggenheim, de Nova York. Sua trajetória científica está resumida no livro Evolução ao nível de espécie - Répteis da América do Sul, lançado em 2010 pela editora Beca.

    "Vanzolini sempre declarou que sua profissão e ganha-pão estavam na zoologia. Gostava de dizer que, com um vidro de formol e um microscópio ele ganhou a vida e criou os filhos", conta Caramaschi.

    A TEORIA DOS REFÚGIOS Uma das mais importantes contribuições científicas de Vanzolini surgiu como decorrência do estudo de suas numerosas coletas. Os chamados refúgios decorrem de flutuações climáticas ocorridas no período quaternário. Quando as geleiras avançavam sobre o Hemisfério Norte, num período glacial, o Hemisfério Sul ficava frio e seco. Quando elas recuavam, num período interglacial, o Sul ficava quente e úmido, propiciando a expansão das matas e da fauna desse ambiente. Já no período glacial, as matas se retraíam, criando verdadeiras ilhas de vegetação, onde também sobreviviam espécies animais – só que em populações menores e isoladas das demais. Essas ilhas foram chamadas de refúgios. "Neste período de isolamento, a tendência é a ocorrência de diferenciação entre as populações e, no período de fusão, poderia ocorrer dessa diferenciação ser tão grande que os indivíduos das diferentes populações não se cruzavam mais (tornando-se espécies diferentes); ou então dessa diferenciação não ter sido suficiente para criar um isolamento reprodutivo e os indivíduos das diferentes populações, ao se intercruzarem, davam origem a uma nova população com variabilidade muito maior", explica Sene.

    VIDA DUPLA Vanzolini dividia seu tempo entre a pesquisa científica e a música. Sua vida dupla começou já na faculdade quando passou a frequentar as rodas boêmias e a compor seus primeiros sambas. Em 1944, começou a trabalhar no programa de Cacilda Becker, intitulado Consultório Sentimental, na Rádio América. Teve suas canções interpretadas por grandes artistas brasileiros, como João Gilberto, Chico Buarque e Maria Bethânia. Sua vida de compositor e cientista foi tema do documentário Um homem de moral, de 2009, do cineasta Ricardo Dias.

    "Vanzolini foi um exemplo curioso de sambista, uma vez que não tocava qualquer instrumento e, como cantor, era sofrível, e mesmo desafinado, em certos momentos", conta Francisco Inácio Bastos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. "Mas ele tinha uma enorme capacidade de transformar observações cotidianas e mesmo temas abstrusos (como no seu famoso samba sobre temas eruditos) em músicas de alta qualidade. Creio não haver qualquer outro músico no Brasil com as características dele e, até onde sei, nenhum outro zoólogo sambista, em todo o mundo", diz Bastos.

    Apesar de sua paixão pela música, Vanzolini sempre a considerou uma atividade a ser desenvolvida nas horas vagas. No ambiente de trabalho raramente falava em música. Porém, a música teve indiretamente grande influência na formação e crescimento do acervo das coleções e de sua biblioteca. "Era dinheiro extra que entrava de vez em quando. E tudo o que ele chamava de dinheiro de música era aplicado na compra de exemplares zoológicos para as coleções e, principalmente, para adquirir livros", diz Caramaschi.

    Unir música e ciência não foi uma tarefa difícil para o zoólogo. Afinal, ele usava todo seu talento e curiosidade como pesquisador para compor suas canções, do mesmo modo que utilizava sua criatividade e sensibilidade musicais em suas pesquisas científicas. "Minha impressão é de que ambas faziam parte de um contínuo, fruto da sensibilidade e percepção de um cientista com uma imensa capacidade de observação empírica, como todo bom zoólogo, talento que estendeu à vida social e cultural, ou seja, foi um observador atento e inteligente não apenas do mundo natural, como do cotidiano de São Paulo. Vanzolini foi um homem de ação na área de ciência, e isso me parece refletido igualmente na sua música, que é frequentemente narrativa e dinâmica", conclui Bastos.

     

    Chris Bueno