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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.4 São Paulo  2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000400010 

    APRESENTAÇÃO

     

    Emergência, um novo paradigma indispensável para as ciências e a filosofia?

    Rémy Lestienne

     

     

    É bem conhecida a afirmação do físico Marquês de Laplace (1749-1827):

    Para um ser suficientemente inteligente conhecer, num determinado momento, todas as forças que se exercem na natureza e todas as posições e velocidades relativas das partículas que compõem o Universo, [...] nada seria incerto e o futuro, bem como o passado, estaria presente a seus olhos (1).

    Na ciência de Laplace não há lugar para novidades. Tudo está escrito, e o futuro se desenvolve de uma maneira implacável, mesmo se não soubermos, na prática, como predizer o que vai acontecer!

    Porém, em todas as épocas houve filósofos e cientistas descontentes com essa concepção. Eles acreditavam na possibilidade de reais novidades acontecerem. Mas como caracterizar os surgimentos dessas novidades, aparecendo ex abrupto de um modo totalmente natural, ou pela criação humana?

    No artigo que abre este Núcleo Temático da revista Ciência e Cultura, a história do conceito de emergência nas ciências é contada de maneira rigorosa por Osvaldo Pessoa, juntamente com a apresentação das variantes da teoria. Ele conclui dizendo que a variante "emergência fraca" ainda é compatível com o ideal do reducionismo, em contraposição às variantes "fortes", para as quais as propriedades novas são responsáveis por ações descendentes da totalidade sobre os elementos de nível inferior, de modo que os domínios de aplicações do reducionismo e da emergência devem ser claramente delimitados.

    Já a afirmação de Laplace confronta a antiga máxima de Aristóteles, segundo a qual "a totalidade é mais do que a soma das suas partes", que hoje ainda faz parte da bandeira dos cientistas e filósofos emergentistas. Mas a intuição antiga necessitava de uma reflexão metódica e racional. Esse quadro foi estabelecido por George Henry Lewes e Conwy Lloyd Morgan, na filosofia e nas ciências da vida respectivamente, entre outros pensadores. Eles salientaram dois pontos relacionados à emergência: 1) a natureza se caracteriza por construções em níveis sucessivos diferenciados, de complexidade crescente; 2) em muitos desses níveis aparecem estruturas e propriedades novas, chamadas de propriedades emergentes, que não podem ser antecipadas pela consideração dos elementos presentes no nível inferior e suas interações.

    Na primeira metade do século XX, eram os biólogos quem mais defendiam a possibilidade de novidades genuínas, levando em consideração a estrutura em patamares da biologia, da célula até o ser vivo, e a aparição de novidades em todos os patamares sucessivos. No final do seu livro Evolução emergente, Morgan enunciou a sua crença:

    Eu acredito em um mundo físico que está na base da pirâmide da evolução e que está envolvido em todos os níveis superiores; eu acredito que em todos os níveis da pirâmide há atributos correlacionados a estes níveis e que existe um processo de evolução psicofísico emergente; e eu acredito que este processo é a manifestação de uma atividade espaço-temporal imanente que é a fonte última desses fenômenos que são interpretados pelo naturalismo evolucionário (2, p. 309).

    Entretanto, a física, do seu lado, continuava a procurar completar o programa reducionista elaborado por Descartes, Newton e Laplace. Físicos tendiam a se manter afastados da corrente emergentista, tanto mais que, a partir da metade do século XX, o desenvolvimento da biologia molecular bem como a influência do behaviorismo levaram os próprios biólogos a se influenciarem pelo ideal reducionista. Mas, por uma ironia cuja história é costumeira, na mesma época, a ideia de emergência começou a tomar vigor num ramo da física: a física da matéria condensada, como mostra Eduardo Miranda neste Núcleo Temático, que explica o desenvolvimento de uma física da emergência sob a questão das simetrias quebradas na física.

    Rapidamente, esses físicos se espantaram pelo fato de que as constantes físicas fundamentais, tal como a carga do elétron ou a constante de Planck, eram medidas com uma precisão muito maior considerando um pedaço bastante grande de matéria, do que considerando partículas elementares isoladas. Com o uso de efeitos a temperaturas baixíssimas, tais como o efeito Josephson sobre as ondas emitidas por um sanduíche de supercondutores num campo magnético, descoberto em 1962, ou o efeito Hall quântico (a diferença de potencial que aparece num fio supercondutor quando a corrente atravessa um campo magnético), descoberto e estudado por Klaus von Klitzing nos anos 1980, a precisão relativa sobre a carga do elétron subiu até 10-9, muito melhor que a medida clássica de Millikan sobre o equilíbrio de uma gotinha de óleo entre as bandejas de um condensador elétrico. Para o ganhador do Prêmio Nobel Robert Laughlin (1998), o paradigma da emergência abre um reverso da nossa visão do mundo: as propriedades mais fundamentais (a carga do elétron por exemplo, ou as leis da natureza em geral) doravante não seriam preexistentes em relação ao mundo, mas, ao contrário, dependeriam da organização da totalidade, ou, para dizer as coisas de outro modo, elas emergem do mundo, e não o inverso. E, num livro seu, ele conta, a esse propósito, uma conversa que teve com o seu sogro. "Eu disse a ele que as leis da natureza que são importantes para nós emergem por um processo de auto-organização, de modo que para as entender e explorar não é, na verdade, necessário considerar os constituintes elementares". O sogro não estava convencido. Por fim, Laughlin lhe perguntou: "Será que os parlamentos fazem as leis, ou as leis que fazem os parlamentos?" (3).

    Hoje, os cientistas biólogos estão liberados da visão mecanicista e reducionista dos primeiros passos da biologia molecular, e estão curados do aforismo "um gene, uma função", após a investigação da complexidade das redes de regulação da transcrição e da tradução dos genes. Eles hoje veem a biologia da filogênese, assim como da ontogênese, como um problema de alta complexidade, melhor estudado pelo paradigma da emergência do que pelo reducionismo molecular. Isso é, de fato, o assunto do artigo de Michael Crawford, que segue compondo este Núcleo Temático.

    Existe uma outra abordagem dos problemas complexos. Para entender, ao menos em parte, como propriedades novas aparecem nos sistemas complexos, é possível utilizar as ferramentas da simulação computacional. Elas permitem investigar, à vontade, as condições mínimas de aparecimento de estruturas e propriedades emergentes. De fato, a simulação computacional é um ramo muito importante dessa nova ciência. Mas há uma pergunta fundamental: os processadores dos computadores são inteiramente deterministas. Como eles podem produzir propriedades novas, insuspeitas, em sistemas complexos?

    Tem-se duas respostas parciais a esta questão: a primeira, que Nuno David e Jaime Sichman detalham no artigo seguinte, afirma que devemos reconhecer que na pesquisa computacional há um intercâmbio contínuo entre a máquina e o pesquisador: o modelo que este aplica se modifica à medida que a simulação se desenvolve. Ao final, uma simulação computacional nunca é completamente mecânica.

    A segunda reposta é proposta por Mark Bedau que, na sua entrevista, aborda também o problema da simulação computacional, a qual é muito utilizada por ele em suas pesquisas. Bedau afirma que a simulação computacional sempre leva a propriedades emergentes do tipo fraco, compatível com o reducionismo, e que ele suspeita que todas as propriedades emergentes manifestadas pela vida são desse tipo (o que, afirma, não quer dizer que essas propriedades não sejam novidades ontológicas).

    Um primeiro exemplo típico de aplicação da ideia de emergência é a passagem da matéria inerte para a vida. Essa passagem necessitou muito tempo e a interação dos sistemas em questão com o meio ambiente, duas características usuais da emergência.

    Hoje, cientistas tentam reproduzir células vivas, objetivo deste novo ramo da biologia chamado "biologia de síntese". O mais conhecido deles é talvez Craig Venter, já famoso pelo papel que desempenhou, nos Estados Unidos, no sequenciamento do genoma humano. Sintetizando o DNA completo de uma bactéria a partir da sequência registrada em um computador (com a ajuda de uma levedura), ele conseguiu reimplantar esse DNA de síntese em outra bactéria, deslocando o genoma, e fazendo viver e se reproduzir a célula com o genoma sintético. Em sua entrevista, Mark Bedau salienta que esse passo ainda não equivale à criação, a partir de todas as peças, de uma vida artificial, mas acredita que esta meta poderá ser atingida em um futuro relativamente próximo.

    Um segundo exemplo importante de emergência nas ciências da vida se refere ao surgimento de consciência nos humanos e, provavelmente, nos primatas superiores (dependendo da definição precisa desse conceito). Isso é particularmente importante do ponto de visto filosófico, porque a relação mente-cérebro é claramente ligada ao livre-arbítrio. Tentei tratar desta questão no último artigo deste Núcleo Temático, seguindo o percurso do ganhador do Prêmio Nobel Roger Sperry (1981). Este percurso é particularmente interessante porque Roger Sperry foi treinado como neurofisiologista no espírito do behaviorismo, isto é, na ideia que o cérebro seria um sistema tão complicado que não seria possível tratar cientificamente "funções" como a consciência. Porém, após alguns anos de pesquisa, Sperry passou a admitir que a consciência exerce um poder organizador, uma causalidade do tipo "top-down", sobre os processos neurofisiológicos, as descargas neuronais, propondo, assim, esse exemplo como um caso paradigmático de emergência forte.

    Esse ponto foi seriamente criticado por alguns cientistas e filósofos, destacando-se o filósofo Jaegwon Kim. Porém, acredito que a crítica pode ser contornada. Primeiro, tem-se a possibilidade de alargar a noção de causa, para que ela inclua não apenas a causa eficiente, mas também outras formas de causa, como o faz o cientista brasileiro Charbel El-Hani (4; 5).

    Minha proposta, porém, é diferente. No meu livro Dialogues sur l'émergence (6), proponho refletir sobre o estatuto da noção de tempo à luz da nova ciência do emergentismo (uma proposta já considerada por Ilya Prigogine). Considerando a complexidade e a estrutura em patamares do tempo, que não afeta da mesma maneira todos os sistemas, da partícula elementar até o Universo e da bactéria até a mente humana, parece possível, talvez, reinterpretar, e melhor compreender, a máxima de Bergson, "O tempo é invenção ou é nada".

     

    Rémy Lestienne é diretor honorário de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ele é autor de vários artigos e livros sobre o tema da emergência, sendo o mais recente, Dialogues sur l'émergence. Editora Le Pommier, 2012. Email: remy.lestienne@bbox.fr

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Laplace, P.S.(1814) Essai philosophique sur les probabilités, Paris.

    2. Morgan, C.L. (1923) Emergent evolution, Londres: Williams & Norgate.

    3. Laughlin, R. Um Universo diferente, Lisboa: Ed. Gradiva.

    4. El-Hani, C. N. & Vieira, F. S. (2008). Emergence and downward determination in the natural sciences, cybernetics and human knowing, 15(3-4),101-13.

    5. Cahoone, L. (2012) The orders of nature, New York: Suny Press.

    6. Lestienne, R. (2012). Dialogues sur l'émergence. Paris: Ed. Le Pommier. Diálogos sobre a emergência, em preparação, São Paulo: Ed. Unesp.