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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.4 São Paulo  2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000400016 

     

    A emergência, uma solução ao problema mente-cérebro?

    Rémy Lestienne

     

    AS RELAÇÕES MENTE-CÉREBRO, UM PROBLEMA CENTRAL DA FILOSOFIA O problema das relações entre a mente e o cérebro ou, em termos um pouco mais recentes, entre o pensamento e os processos nervosos, é um dos problemas centrais da filosofia. Pois atrás dele se perfila o problema do livre-arbítrio: realidade ou ilusão?

    Ao risco de simplificar demais o problema, deixe-me dizer que, até a época moderna, as várias respostas que essa questão recebeu podem ser avizinhadas com uma ou outra das duas alternativas seguintes: a solução dualista de Descartes, e a outra monista de Spinoza.

    A solução dualista tem um problema: se o pensamento é, em substância, completamente diferente da matéria, como se pode entender que o pensamento possa interferir na matéria, e como a menor ação consciente é possível? Sabemos hoje que a solução proposta por Descartes, a intervenção de um órgão de conexão entres as duas realidades (a glândula pineal), é ingênua e errada.

    A solução spinozista é hoje considerada bem mais atraente: o pensamento e os processos nervosos jorram em paralelo de uma substância única, que só é a realidade, mas com vários atributos. Processos nervosos e pensamento são dois atributos dessa substância, que não são redutíveis um ao outro. Sempre se desenrolam em paralelo, de modo que sempre há uma correspondência perfeita do segundo com o primeiro. A solução proposta por Spinoza é mais econômica que a solução dualista. Porém permanece um problema difícil, aquele das interações entre o pensamento e os processos neuronais e da possibilidade de uma causalidade de tipo top-down do primeiro sobre os segundos, que parecem necessários para admitir um verdadeiro livre-arbítrio, que não seja, como o próprio Spinoza sugeriu, uma simples ilusão, o resultado do consentimento dado pela nossa consciência às nossas determinações interiores.

    É por isso que a solução monista proposta por Roger Sperry (1913-1994, ganhador do Prêmio Nobel de 1981), embora diferente daquela de Spinoza, parece tão interessante. Sperry, ele mesmo, salientou a importância do assunto: "De todas as questões que podemos perguntar a propósito da experiência consciente, não existe qualquer uma na qual a resposta tem as mais profundas e mais abrangentes implicações que a questão de saber se, sim ou não, a consciência tem um poder causal. As várias respostas a essa questão levam a paradigmas basicamente diferentes para a ciência, a filosofia, e a cultura em geral" (Sperry, 1980, p. 205).

     

    ROGER SPERRY, UM NEUROFISIOLOGISTA TREINADO NO BEHAVIORISMO MAS INSATISFEITO Na sua juventude, Roger Sperry foi treinado como neurofisiologista no espírito do behaviorismo, a ideologia científica dominante nos laboratórios de fisiologia nervosa na metade do século XX. De forma breve, o behaviorismo é a ideia que o cérebro é um sistema tão complicado que não é possível tratar cientificamente de "funções" tal como a consciência. O cérebro era então considerado como uma "caixa negra" cujos observadores só puderam observar entradas e saídas. A única coisa que os cientistas puderam fazer, segundo o behaviorismo, era constatar correlações entre certos estímulos do sistema nervoso central e os resultados motores que esses estímulos podiam produzir.

     

     

    De 1934 até 1937, Sperry foi treinado no laboratório de Raymond Staton, que era um especialista da fonética motora, ou seja do estudo da linguagem do ponto de vista dos movimentos musculares pelos quais ela é produzida, um programa de pesquisa bastante alinhado ao behaviorismo. De 1937 até 1941, Sperry continuou sua formação em Chicago, onde estudou neuroanatomia e neurofisiologia de ratos, até produzir sua tese de doutorado sobre "O resultado funcional de cruzar nervos nas pernas de ratos" (2). Ele era muito hábil para realizar delicados transplantes de nervos nas pernas traseiras de ratos recém-nascidos. Especificamente, ele cortava o nervo sensitivo das duas pernas traseiras e logo suturava o nervo da perna direita sobre o nervo ascendente da perna esquerda. Essa operação anula o cruzamento usual das vias nervosas ascendentes dos membros até o cérebro. Quando Sperry dava um pequeno choque sobre a perna traseira direita do rato já crescido, o animal sempre levantava a outra perna. Para Sperry, isso era uma clara indicação de que a associação das sensações com um membro, uma vez adquirida, é adquirida para sempre e fixada pelo sistema nervoso central.

    Essas experiências eram claramente do tipo permitido pelo behaviorismo, um exemplo de "correlação entre um estímulo e a resposta motriz". Porém, Sperry começava a questionar se seria possível ir além e, a partir de observações deste tipo, obter indicações sobre as funções superiores do sistema nervoso central, tais como sensações superiores (o que os neuropsicólogos chamam de "qualia") e, finalmente, sobre a função que chamamos a "consciência".

    O exemplo comum de "qualia" segundo os psicólogos é da cor, o vermelho, por exemplo. Pois a cor de um objeto não é uma qualidade do objeto em si mesmo, mas o resultado de um tratamento sutil, nas áreas superiores do cérebro, entre os dados físicos da luz que entra na retina, as condições de luz ambiente, e as lembranças pessoais a respeito desse objeto. O exemplo preferido de Roger Sperry, porém, não era da cor mas aquele da dor, bem de acordo com as suas primeiras experiências sobre o transplante de nervos nos ratos. Pense no exemplo da dor que, frequentemente, os pacientes que foram amputados de um braço ou uma perna continuam a sentir no membro amputado. Sperry pensava que este tipo de dor não podia ser explicado por causas biofísicas ou fisiológicas, pois os receptores correspondentes da dor num membro amputado obviamente não existem. A excitação das redes nervosas correspondentes no sistema nervoso central deve, ao menos em parte, ser construída, ou melhor, organizada como um qualia no cérebro mesmo, acreditava Sperry.

    SEPARANDO OS DOIS HEMISFÉRIOS CEREBRAIS Mas a consideração de transplantes de nervos periféricos ou de amputação de membros não era totalmente convincente, e Roger Sperry, que entretanto havia mudado para o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), começou a pensar na possibilidade de intervir no próprio cérebro. A partir daí, ele praticou experiências de corte do corpo caloso em gatos e macacos. O corpo caloso é o feixe de nervos que unem o hemisfério cerebral direito ao hemisfério cerebral esquerdo, e que é constituído, nos humanos, por mais de 200 milhões de fibras.

    Em 1962, Sperry encontrou o cirurgião Philip Vogel, que já havia praticado a secção do corpo caloso em um paciente, a fim de impedir que crises de epilepsia se propagassem de um hemisfério cerebral ao outro. Vogel e o paciente concordaram que Roger Sperry e sua equipe examinassem e organizassem uma série de testes psicofísicos sobre ele, assim como ocorreu, mais tarde, com outros cerca de vinte casos similares (Figura 3).

     

     

     

     

    Para entender melhor o conteúdo e os resultados desses testes, é preciso lembrar de alguns dados anatômicos sobre o processamento da visão no cérebro (Figura 4).

     

     

    Focalizemos agora a atenção sobre os testes sobre as capacidades cognitivas do hemisfério direito do cérebro. Os testes demonstraram que o cérebro direito percebe, memoriza e reconhece objetos tão bem quanto o cérebro esquerdo. A única diferença é que o paciente que, como a grande maioria das pessoas, tem os centros da palavra no lado esquerdo do cérebro, não pode falar desses objetos, pois o seu cérebro direito, em função da operação de comissurotomia, perdeu toda conexão nervosa com o cérebro esquerdo.

    A UNIDADE DA CONSCIÊNCIA PRESERVADA Os testes demonstravam que tanto o cérebro direito quanto o cérebro esquerdo não somente tinham capacidades cognitivas similares, mas também capacidades intelectuais superiores similares, tais como a capacidade de memorizar e de expressar emoções. Contudo, apesar do fato de haver dois hemisférios cerebrais separados e desconectados, mas cada um capaz de processos cognitivos, esses pacientes não demonstravam ter uma dupla consciência. Sperry ficou espantado de ver até que ponto a unicidade da consciência está preservada neles. Qualquer dissonância entre o que o paciente podia ver no seu campo visual direito e a emoção claramente disparada pelo que ele estava vendo no seu campo de visão esquerdo estava imediatamente justificada, eventualmente por uma clara fabulação, e evidentemente sem usar nenhuma informação relativa ao que estava projetado no seu campo de visão esquerdo, ao qual o seu cérebro esquerdo não tinha acesso.

    Por exemplo, se a fotografia de um rosto expressando muita raiva é apresentada no lado esquerdo da tela, o paciente contrai o seu rosto em sinal de descontentamento. Se, fora da sua visão, alguém belisca o paciente na mão esquerda (cujos sentidos são processados pelo hemisfério direito do cérebro), o seu rosto exprime a dor, tanto quando o beliscão é impingido na mão direita. Mas, com certeza, no primeiro caso ele não pode falar a causa real da sua dor. Como o cérebro é, talvez, antes de mais nada, uma máquina extraordinária para fabricar uma visão coerente do mundo (e isso é, acredito, a marca mais distintiva da consciência), ele vai fabular. Por exemplo, nesse caso o paciente pode dizer que ele fazia careta porque ele sofre de dor de barriga.

    Considere a maravilha da visão. Veja como nossa visão é perfeitamente contínua através da linha vertical que separa o campo de visão esquerdo do campo de visão direito. Como não se espantar com essa perfeição, sabendo que os dois campos são processados, ao menos nos primeiros passos de integração no cérebro, por centros nervosos tão distante um do outro, nos polos occipitais de cada hemisfério cerebral? Essa perfeita continuidade fica preservada, mesmo quando fechamos um olho, e fixamos um ponto bem longe à frente, para evitar sacudidelas oculares.

    Considere também a fusão de diferentes modalidades de percepção, tal como a fusão do som e da visão quando assistimos, num concerto, a uma batida dos címbalos. Não se nota a diferença de tempo entre o som e a visão do ato, embora saibamos que, num teatro bastante largo, o som chega com um certo atraso nos ouvidos. É um atraso pequeno, tipicamente alguns décimos de segundo, mas normalmente perfeitamente perceptível. É a sua percepção consciente que reorganiza e ressincroniza os dois tipos de estímulos!

    Todas essas observações levaram Sperry a considerar a consciência como algo único, além de simples excitações neuronais. O todo mostrava uma propriedade nova, irredutível, característica do mecanismo de emergência. Mais especificamente, Sperry admitiu que a consciência exerce um poder organizador, uma causalidade de tipo top-down, sobre os processos neurofisiológicos, as descargas neuronais. Ele não se considerava, porém, um dualista, pois insistia, ao mesmo tempo, sobre a unicidade dos processos nervosos. Ele desenvolveu e defendeu uma visão tipicamente emergentista, mais precisamente da variedade "forte" do emergentismo, das relações mente-cérebro. Ele se distanciou, em cada ocasião, tanto do materialismo reducionista como do dualismo espiritualista (5).

    CONCLUSÃO A posição de Sperry no que diz respeito à consciência abre a possibilidade paradoxal de uma consciência com poderes específicos sobre os processos neuronais, mas que permanece no domínio puramente biológico. Portanto, é um exemplo, talvez o mais paradigmático, de emergência forte, que se opõe ao dualismo cartesiano tanto como ao reducionismo materialístico. Ele se diferencia também da emergência fraca advogada por muitos filósofos e cientistas que queriam limitar o emergentismo ao domínio epistemológico e negar qualquer poder causal específico do tipo top-down às propriedades emergentes.

    "Eu estou convencido que as totalidades e as suas propriedades são fenômenos reais", disse Roger Sperry, ganhador do Prêmio Nobel de 1981 "por suas descobertas acerca da especialização funcional dos hemisférios corticais". Ele afirmou também que revisões básicas sobre os conceitos de causalidade eram necessárias, nas quais a totalidade, além de ser "diferente e maior do que a soma das partes" também causalmente determinam o destino das partes, sem interferir com as leis da física ou da química que regem as subpartes nos seus níveis próprios. Segue, segundo ele, que a ciência física não mais percebe o mundo como redutível à mecânica quântica nem à qualquer outro elemento ou campo de força unificador" (6).

    A posição de Roger Sperry naturalmente suscitou e continua a suscitar objeções, não somente da parte daqueles que, por razões próprias, continuam a considerar que, tendo em vista o êxito do reducionismo, não se deve abandonar a esperança de reduzir todos os fenômenos físicos, biológicos e psicológicos ao resultado de causas físicas no nível fundamental (uma atitude ainda dominante na maioria dos especialistas em física quântica), mas também da parte de certos sábios que, apesar de aceitar a ideia de propriedades especiais da consciência, recusam a solução monística e materialística de Sperry.

    Devemos admitir que a solução proposta por Roger Sperry não está perfeitamente clara sobre um ponto de coerência lógica. Um filósofo contemporâneo, Jaegwon Kim, em particular, salientou recentemente (7; 8) que é logicamente impossível admitir a emergência de novas causas irredutíveis num nível alto e, ao mesmo tempo, aceitar o monismo das causas e efeitos, isto é, neste caso, acreditar que o conteúdo da nossa consciência é, e somente é, o resultado dos processos neuronais no cérebro.

    Para contornar essa dificuldade, parece necessário aceitar uma solução de continuidade temporal nos processos em questão (9). Nessa visão, a consciência como propriedade emergente global poderia mudar, de maneira abrupta, o desdobramento contínuo dos processos neuronais ao nível cerebral, ou, mais precisamente, provocar nesses processos certas bifurcações que não seriam previsíveis com antecedência. Essa visão parece concordar bem com a impressão subjetiva dada pela introspecção da maneira na qual tomamos uma decisão. Uma solução de continuidade no curso determinístico dos eventos não é, contudo, totalmente desconhecida nas ciências. Penso, em particular, na teoria da medida em mecânica quântica, como também nas mais recentes tentativas de reconciliar a teoria quântica com a relatividade geral, propondo uma granulação do tempo para descrever os fenômenos na pequeníssima escala espacial. Naturalmente, as pesquisas neste campo estão apenas começando e não devemos prejulgar os seus desenvolvimentos futuros.

     

    Rémy Lestienne é diretor honorário de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS). Ele é autor de vários artigos e livros sobre o tema da emergência, sendo o mais recente, Dialogues sur l'émergence. Editora Le Pommier, 2012. Email:remy.lestienne@bbox.fr

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Sperry, R.W., 1981. "Some effects of disconnecting the cerebral hemispheres", Nobel Lecture of 12/8/1981, The Nobel Foundation.

    2. Sperry, R.W., 1941. "Functional results of crossing nerves and transposing muscles in the fore and hind limbs of the rat". PhD thesis, Chicago University.

    3. Sperry, R.W., 1959. "The growth of nerve circuits", Sci. Amer., 201: 68- 75.

    4. Sperry, R.W., 1970. "Perception in the absence of the neocortical commissures", Percept. Disor. (Assoc. for Research of Nervous and Mental Diseases), 48: 123-138.

    5. Veja a sua publicação: Sperry, R.W. "Mind-brain interaction: mentalism, yes; dualism, no". Neuroscience, Vol.5, pp.195-206., 1980.

    6. Op. cit. Sperry, 1981 (ref. 1).

    7. Kim, J., 2006. "Being realistic about emergence", in: The re-emergence of emergence, P. Clayton & P. Davies ed., Oxford: Oxford Univ. Press, p. 189-202.

    8. Kim, J., 2008. "The nonreductivist's troubles with mental causation", in: Emergence, contemporary readings in philosophy and science, M.A. Bedau & P. Humphreys ed., Cambridge: The MIT Press, p. 427- 445.

    9. Veja por exemplo: Lestienne, R., 2012. Dialogues sur l'emergence, Paris: Ed. Le Pommier. Diálogos sobre a emergência, em preparação, São Paulo : Ed. Unesp.