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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.4 São Paulo  2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000400020 

     

    Artesanato pan-étnico atende demanda por produtos exóticos

     

    Dream catchers ou apanhadores de sonhos são amuletos colocados no quarto de dormir para afastar os pesadelos das crianças. Embora sejam parte da tradição dos índios Ojibwe, que vivem nos Estados Unidos e no Canadá, eles são produzidos em larga escala na pequena Vila de Tegallalang, que fica na ilha de Bali, Indonésia. Lá também são fabricados o Didjeridu, um instrumento musical aborígine australiano e máscaras étnicas que, dependendo do lugar, são vendidas como sendo da tradição Asmat, grupo da Nova Guiné, dos Sasak, que vivem na Ilha Lombok, Indonésia, ou ainda como africanas. Todos esses objetos, caracterizados como sendo artesanato étnico, são produzidos para serem vendidos no comércio local e também são exportados para todo mundo.

    Usualmente o termo étnico é associado a um grupo cultural ou região específica. "O turismo contemporâneo, no entanto, estabelece um vínculo fictício com esses grupos étnicos, gerando uma proliferação de símbolos e práticas estéticas: arte, estilos musicais e práticas espirituais são replicáveis e tornam-se disponíveis para o consumo", explica Jeniffer Esperanza, antropóloga do Beloit College, Wisconsin (EUA). Desde 1999, ela investiga esse artesanato popular, tribal ou étnico. "Enquanto alguns desses objetos claramente fazem referência a uma tradição étnica local, outros são o que eu chamo de pan-étnicos porque são baseados em imagens estereotipadas, produzidas por artesãos locais a partir de fotografias, desenhos e instruções dadas a eles por estrangeiros ou comerciantes intermediários, sem nenhuma conexão cultural com esse artesanato", afirma a antropóloga. Disso resulta uma coleção de símbolos, objetos e práticas de um grupo cultural que são descontextualizados, reapropriados e realocados, fazendo com que sua origem torne-se irrelevante ou mesmo desconhecida para quem os consome.

    Essa coleção de símbolos e práticas, entretanto, não é aleatória. O encantamento dos ocidentais por práticas espirituais como o budismo, reiki, yoga, entre outras, é reproduzido em camisetas, spas, retiros onde essas pessoas buscam modos de ser e de viver que sejam opostos à sua própria experiência de vida, sempre esperando encontrar algo exótico e diferente. "Pergunto a eles: por que não estátuas da Virgem Maria ou São Francisco de Assis, e a resposta é que esses símbolos são muito familiares e, por isso, não atendem as necessidades desse consumidor moderno", conta a pesquisadora.

    É bastante provável que o turista em Bali não saiba que os apanhadores de sonhos não pertençam à cultura da ilha e menos ainda que seu objetivo é proteger as crianças já que, segundo a tradição indígena, os adultos já sabem interpretar seus sonhos, sejam eles bons ou ruins. A proliferação desses símbolos e produtos pode gerar associações equivocadas, portanto. Isso aconteceu, por exemplo, em 2002, quando a revista norte- -americana Time, ao noticiar atentados terroristas em Bali, estampou em sua capa uma mulher de cabelos claros que tinha as mãos adornadas com tatuagens menhdi. Feitas com corantes à base de henna, elas são comuns entre as mulheres do sul da Ásia e do Oriente Médio, mas não fazem parte da herança cultural de Bali. De acordo com a pesquisadora, essa prática chegou à Indonésia na última década como um serviço cosmético para turistas. "O que representou Bali naquele momento trágico foram um indivíduo e uma prática simbólica que não fazem referência direta ao povo balinês ou à sua cultura", afirma Jeniffer.

     

     

    VÁ, ANTES QUE ACABE O uso indevido de símbolos não é um fenômeno novo, especialmente no turismo, esfera privilegiada no sentido de criar imaginários, símbolos e imagens para serem consumidos em um mercado que é um dos que mais cresce no mundo. Bali é frequentemente descrita como uma ilha paradisíaca e exótica. Seu diferencial é aliar as belezas naturais com costumes ancestrais que não foram contaminados pelo modo de vida ocidental. O Lonely Planet, um dos guias turísticos mais famosos do mundo, afirma que a ilha na Indonésia é mais do que um lugar, é um modo modo de vida ocidental. O Lonely Planet, um dos guias turísticos mais famosos do mundo, afirma que a ilha na Indonésia é mais do que um lugar, é um modo de vida. Como essas imagens e interpretações são incorporadas pela população local? Quais as implicações dessa estética pan-étnica no modo de vida dos balineses? Para Jeniffer Esperanza, ao longo do século XX atores estrangeiros (colonizadores, turistas etc), introduziram em Bali diversas produções culturais que diziam mais sobre eles mesmos, do que sobre os balineses. Interessada em manter e ampliar o mercado turístico, a população local incorporou essas práticas, reforçando uma falsa noção de "nós" versus "os outros" ou "moderno" versus "primitivo", que tanto agrada aos turistas. Bali é mostrada como um modelo cultural oposto ao das sociedades modernas, especialmente em relação à Europa, América do Norte, Austrália e Japão.

    Sua consolidação como um dos principais destinos turísticos na Indonésia está fortemente ligada à promoção da ideia de que a cultura balinesa está em perigo de extinção. "A criação e promoção de um paraíso que está quase extinto dá ao turista uma sensação de nostalgia. Quem visita a ilha tem o privilégio de ver um paraíso antes que ela se torne moderna", argumenta Jeniffer. "Muitos turistas com os quais eu conversei ficaram desapontados ao encontrar tanto tráfego, telefones celulares, antenas parabólicas, restaurantes de fast food. O motivo da frustração é Bali estar ficando muito parecida com o Ocidente", conta. Para ela, essa suposta fragilidade não é problemática para os balineses. Depois de séculos de contato com a Malásia, Índia, China e os Países Baixos, a cultura balinesa, dita tradicional é, na verdade, uma amálgama de várias estéticas incorporadas ao longo do tempo. "Em outras palavras, pertencer a muitas culturas não é um conceito novo para os balineses", diz ela.

    BALI MODERNA Intelectuais como Edward Said, autor do clássico Orientalismo (1978) e o norte-americano Dean MacCannell, que estuda o turismo contemporâneo, já discutiram amplamente essa ideia: de que para o Ocidente/moderno existir, deve haver um oposto: o Oriente/ pré-moderno. "A ironia desse fenômeno é que o turista é tratado com serviços de formas de entretenimento trazidos para a ilha exatamente para satisfazê-los", diz. É o caso das tatuagens mendhi, de retiros para prática da terapia japonesa reiki e dos dream catchers norte-americanos, já citados. "Tecnologia, economia global e a mídia internacional são parte do tecido social e econômico em Bali, mesmo que isso não seja (ou não queira ser) percebido pelo turista", acredita Jeniffer. O artesanato pan- -étnico, esteja ele ou não ligado à tradição cultural da ilha, se integra nessa busca pelo que é antigo e raro.

    A vila de Tegallalang, localizada no centro da ilha, produz e distribui objetos artísticos para o comércio local e para exportação. "Essa indústria permitiu aos artesãos locais desafiar os estereótipos como um lugar ou uma cultura congelados no tempo e intocados pela globalização", conta Jeniffer. Segundo ela, esses artesãos não têm uma visão romântica sobre eles mesmos. Para eles, a capacidade de fazer uma grande variedade de esculturas em madeira e outros produtos exigidos por consumidores em todo o mundo é motivo de orgulho. "A exportação das artes étnicas, ao contrário da indústria do turismo, permite ao balinês local, renegociar sua identidade para se tornar cidadão moderno e cosmopolita, ligado às redes sociais de todo o mundo e versado em tradições estéticas fora das fronteiras de seu Estado-Nação", acredita a antropóloga norte-americana.

    A ARTE DOS OUTROS É preciso observar, no entanto, que os objetos pan-étnicos produzidos em Bali estão repletos de problemas éticos de autenticidade e direitos de propriedade intelectual. No processo de reapropriação cultural, o aborígene australiano, o índio Ojibwe ou a tatuadora indiana não foram consultados, não ganharam nada. "Nesse sentido, esse mercado de produtos artesanais perpetua uma prática de impor violência simbólica sobre grupos étnicos minoritários que já detêm pouco poder econômico e político dentro de seus próprios Estados- Nação", aponta Jeniffer.

     

     

    Para ela, similarmente às tatuagens mendhi, deve-se perguntar como esses símbolos e imagens têm sido usados para representar pessoas ou lugares e, mais importante, deve-se fazer uma crítica a indústria do consumo que tenta afirmar nossa própria subjetividade por meio da mercantilização da estética étnica.

     

    Patrícia Mariuzzo