SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.65 issue4 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.4 São Paulo  2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000400022 

    A São Paulo do cinema: moderna e pós

     

    "São Paulo não pode parar". A 24 fotogramas ou 30 frames por segundo, a maior cidade brasileira emergiu e se consolidou, ao longo do século XX, como a face mais genuína da modernidade nacional. Diferente do Rio de Janeiro - destacado por suas belezas naturais, sua Belle Époque e sua associação ao Ancién Regime - e embora destituída do modernismo "nato" de Brasília - a capital nacional projetada -, São Paulo é, até hoje, identificada como expressão máxima da modernidade do país. Modernidade, porém, conservadora e ambígua em diversos aspectos.

    Arte urbana por excelência, o cinema ganha seus primeiros impulsos no Rio e em São Paulo. Particularmente em São Paulo, a prosperidade econômica - baseada na exportação do café, expansão das ferrovias e industrialização da cidade - demanda registros cinematográficos cada vez mais frequentes, conforme se verifica na afluência do "cinema de cavação" (cineastas pagos para realizar filmes sob encomenda) a partir de 1916, dos primeiros cinejornais regulares e das primeiras companhias produtoras do país. Segundo Ismail Xavier em História e Documentário, (livro organizado por Eduardo Morettin, Marcos Napolitano e Mônica Kornis. São Paulo: FGV, 2012), filmes como Eletrificação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (perdido, 1923), Ipiranga (título atribuído, 1922) e, principalmente, A Sociedade Anonyma Fabrica Votorantim (1922), abordavam motivos da modernidade paulista sob uma estética essencialmente descritiva. Nesse filme, Xavier destaca o uso da panorâmica como recurso de linguagem que "(...) descortina quantidades - de gente, de máquinas, mercadorias (...)", uma forma de acentuar que "(...) o moderno-industrial tem relação direta com a sociedade de massas e suas demandas".

    Com o cinema brasileiro povoado por profissionais europeus, não surpreende que algumas das mais notáveis imagens do país tenham sido organizadas por olhos estrangeiros. É assim que São Paulo sinfonia da metrópole (1929), de Alberto Kemeny e Rodolfo Lustig (originários da Hungria), surge, imbuído do espírito de filmes como Berlim: sinfonia da metrópole (Berlin: die sinfonie der großstadt, 1927), de Walter Ruttmann, ou ainda o pioneiro Somente as horas (Rien que les heures, 1926), de Alberto Cavalcanti.

    Nos anos 1950, São Paulo continua a atrair atenção nacional como expressão da modernidade com o surgimento da Vera Cruz, estúdio de pretensões internacionais financiado pela burguesia paulista. No entanto, as imagens mais marcantes da metrópole talvez não tenham sido obra do maior projeto cinematográfico industrial que o país já teve. Segundo Andréa Barbosa no livro São Paulo: cidade azul (Alameda, 2012, p.68), é o cinema independente de Roberto Santos, em O grande momento (1957), que vai registrar a face mais humana e familiar de "uma cidade que cresce diante dos olhos, mas é vista a partir do bairro, que ainda se permite acolhedor e otimista". Quase dez anos depois, uma inversão: São Paulo S.A. (1965), de Luiz Sérgio Person, retrata, por meio da magnífica fotografia de Ricardo Aronovich, uma utopia ruidosa (e ruinosa), o colapso existencial de um personagem da classe média brasileira no seio da metrópole solar, vertical e opressiva - mas ao mesmo tempo lucrativa. A cena em que Carlos (Walmor Chagas) perambula desorientado pelo centro de São Paulo, intercalada a imagens de máquinas em atividade sob voz off do mesmo personagem, é claramente evocativa de filmes de vanguarda e do montagismo soviético dos anos 1920.

    Nos anos 1960 e 70, São Paulo gesta parte significativa do Cinema Marginal, movimento de viva contestação e experimentalismo, na esteira do cinema moderno brasileiro (Cinema Novo). Em seguida, um cinema genuinamente popular emerge a partir dos filmes da chamada Boca do Lixo, região do centro paulistano onde pequenas produtoras realizavam uma variedade de filmes de baixo orçamento - e grande apelo popular.

    O motivo de São Paulo como uma harsh mistress, guardiã de tesouros e desgraças para aqueles que sonham com a utopia da metrópole, repete- -se numa série de filmes que giram em torno do tema da migração, do trabalhador interiorano que busca melhores condições de vida na cidade grande. É geralmente nesse contraste do homem arcaico com a modernidade urbana que a metrópole revela suas facetas mais fascinantes, assustadoras e controversas. O homem que virou suco (1981), de Joaquim Batista de Andrade, reconstrói a trajetória de inúmeros migrantes nordestinos anônimos, aos quais se atribui a construção da maior metrópole da América do Sul. Trabalho e migração sao temas de outros filmes como Lilian M: relatório confidencial (1975), de Carlos Reichenbach, e A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral.

    Nos anos 1980, São Paulo recobra o status de paisagem privilegiada num cinema notadamente urbano em seu estilo e temática. É nesse contexto que emerge o "Novo Cinema Paulista", bem ilustrado pela "trilogia paulistana da noite": os filmes Cidade oculta (1986), de Chico Botelho, Anjos da noite (1987), de Wilson Barros, e A dama do Cine Shangai (1988), de Guilherme de Almeida Prado. Para Andréa Barbosa, antropóloga do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do livro São Paulo: cidade azul, no cinema paulista dos anos 1980 "imagens de skylines dos altos dos prédios do centro e da Avenida Paulista são fartamente utilizadas e também nos remetem à questão da ambivalência e da ambiguidade da cidade". Trata-se do cinema pós-moderno brasileiro gestado em São Paulo - ainda que Andréa Barbosa discorde do rótulo pós-moderno atribuído a esses filmes -, com influências da obra de diretores estrangeiros como Ridley Scott, Alan Parker, Lawrence Kasdan ou Luc Besson, entre outros. Esse cinema pós-moderno brasileiro é marcado pela fotografia de artistas como Chico Botelho e José Roberto Eliezer - este último responsável, segundo Machado pela "paulistanização" de um filme rodado no Rio de Janeiro: A grande arte (1991), de Walter Salles Jr.

     

     

    Para Andréa Barbosa, o cinema paulista dos anos 1980 reinscreve São Paulo como "uma cidade noturna, azul, úmida, povoada de anjos e marginais (ou anjos marginais) que perambulam entre becos e muros intermináveis" (São Paulo: cidade azul, p. 102). Acentua- se, portanto, o caráter labiríntico da mais moderna metrópole brasileira.

    Com a extinção definitiva da Embrafilme, em 1990, o cinema nacional chegava ao estágio mais agudo de uma crise originária da década anterior, para dar seus primeiros sinais de retomada de produção por volta de 1993-4. No período que se convencionou chamar de Retomada (1994/5-2002), com a relativa descentralização da produção e o surgimento de novas gerações de cineastas, a maior metrópole brasileira ganhou retratos diferenciados.

    A modernidade arquitetural e a verticalidade da "selva de pedra" dá lugar a olhares mais "subterrâneos" e "fragmentados". As ruas de São Paulo reemergem como palco de investigações sobre as mais agudas contradições do país. Nesse contexto, O invasor (2001), de Beto Brant, se apresenta como filme acentuadamente crítico da corrupção transclassista e da violência social brasileira. Um dos filmes mais contundentes e engenhosos em sua problematização da metrópole no Brasil, pelo menos desde São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person.

    Cosmopolita e provinciana a um só tempo, a São Paulo dos anos 2000 continua atraindo o olhar de cineastas estrangeiros, como no filme Journey to the end of the night (2006), de Eric Eason, sobre pai e filho americanos proprietários de uma casa de prostituição, ou em Cidade de plástico (2008), de Nelson Yu Lik-wai, sobre a máfia chinesa. Incógnita, São Paulo também contribuiu com partes de sua "pele" de concreto para a criação da cidade imaginária de Ensaio sobre a cegueira (2008), de Fernando Meirelles. A Ponte Octávio Frias de Oliveira (a popular "Ponte Estaiada", na zona sul), monumento controverso, bastante criticado pela opinião pública, conferiu à fantasia de Meirelles um caráter futurista inconfundível, típico dos bem conhecidos disaster movies.

    Uma variedade de outros espaços característicos de São Paulo marcaram filmes com o "selo" da metrópole. A skyline da cidade, com a presença do edifício do Banespa, no centro de São Paulo, aparece por diversas vezes como espécie de "imagem-refrão" no filme Cidade oculta (1986), de Chico Botelho. A Avenida Paulista, coração financeiro e símbolo da modernidade do país, já hospedou uma variedade de sequências cinematográficas, dentre elas o delírio formal do curta Palíndromo (2001), de Phillipe Barcinski, metáfora da vertigem modernizadora que vitima o homem comum.

    Em todos esses filmes, pode-se observar a sobreposição caleidoscópica de tempos na metrópole, arcaísmo e modernidade amalgamados ou em conflito - assim como a contribuição dramática da cidade por meio de seu "organismo" multiforme de aço, asfalto, vidro, plástico e concreto. São Paulo como labirinto do país.

     

    Alfredo Suppia