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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100017 

     

    ENTREVISTA

    Para paciente de câncer o que muda é ser tratada como pessoa única

     

    O câncer ainda é uma doença que assusta pacientes e mantém um batalhão de profissionais pelo mundo afora dedicados a estudos focados na cura definitiva. Muitas perguntas continuam sem respostas, mas, em se tratando de câncer de mama, os avanços no tratamento são significativos. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), se diagnosticado e tratado oportunamente, o prognóstico é relativamente bom."No Brasil, as taxas de mortalidade por câncer de mama, o segundo tipo mais frequente no mundo, continuam elevadas, muito provavelmente porque a doença ainda é diagnosticada em estágios avançados. Na população mundial, a sobrevida média após cinco anos é de 61%", informa o Inca.

    A farmacêutica e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Andrea Siqueira Haibara, 45 anos, engrossou as estatísticas a partir de 2012. Desde o início ela viveu os medos e os efeitos de um tratamento agressivo. Hoje não há detecção da doença e ela realiza exames de controle. Nesta entrevista, a especialista em fisiologia cardiovascular conta a experiência que a levou para o lado positivo das estatísticas brasileiras.

    Você se considera uma mulher cuidadosa com a sua saúde?

    Atualmente, tenho todos os exames agendados. Mas não foi sempre assim. Eu era extremamente relapsa com os exames periódicos e só procurava um médico quando sentia alguma coisa. Era a procura pelo serviço médico para tratar uma doença e não como método preventivo. Ou seja, fazia exatamente o contrário do que é preconizado.

     

     

    Como descobriu que estava com câncer?

    Eu mesma detectei o nódulo, durante um autoexame. Fazia a mamografia com alguma frequência, mas os resultados nunca mostraram problema algum.

    Qual foi a sua primeira reação ao perceber o nódulo?

    Foi um "sustinho" e pensei: amanhã eu vejo isso melhor. Mas passou uma, duas semanas e ele continuou do mesmo jeito... Comecei a ficar mais preocupada, e então marquei uma consulta com um mastologista, mas sempre com aquela esperança enorme de que não seria nada grave. Mas a expressão no rosto da médica, durante a consulta clínica, me deixou assustada, principalmente, quando ela pediu uma série de exames – mamografia, ultrassom, ressonância magnética, biópsia... Ainda assim eu tinha a dúvida: pode ser ou não.

    Foram muitos exames antes da confirmação. Uma "longa" espera?

    Entre a primeira consulta no mastologista e o resultado da biópsia se passaram apenas um mês e meio, o que, infelizmente, não é a realidade para a maioria das mulheres que dependem do sistema público de saúde. Entretanto, a espera pela confirmação do diagnóstico foi muito aflitiva. A mamografia apresentou um resultado inconclusivo, o que era pior, porque eu queria uma definição. Depois vieram o ultrassom e a ressonância, que não determinavam claramente se era ou não um câncer. Apenas indicavam algum problema. Eu ainda me agarrava na esperança. Por fim, a biópsia confirmou tudo, inclusive, o tipo do câncer – carcinoma ductal invasivo. A partir daquele momento, não tinha mais o "pode ser". Era um fato.

    Em algum momento você se sentiu sem chão?

    Logo que tive o diagnóstico sim, fiquei totalmente perdida. Não lembro direito de nada dessa época, porque estava focada apenas na doença. Em vários momentos, ao longo desse período, senti muito medo... "mas, e se..." Entretanto, depois que iniciei a conversa com o oncologista, mudou-se o foco da preocupação: não falamos mais do câncer em si, mas sim do seu tratamento.

    Você é professora e pesquisadora, com acesso a informações que a maioria das pessoas não tem. Isso contou ponto a seu favor?

    Tinha um tumor raro e agressivo, chamado de triplo-negativo, que não tem um tratamento específico, além do convencional (cirúrgico, radioterápico e quimioterapia). Quando fiquei sabendo que era triplo-negativo, busquei mais informações na internet e recorri a revistas especializadas, mas para mim isso foi ruim. Naquele momento, eu não era pesquisadora e sim paciente. O meu olho de paciente fez leituras erradas em busca de palavras e expressões como "curva de sobrevida", "metástase", "não tem tratamento"... Ou seja, fixava nas coisas negativas e que, na maioria das vezes, nem se aplicavam ao meu quadro. Uma avaliação incorreta me fez pensar que teria apenas poucos meses de vida. Fiquei totalmente desestabilizada e isso custou a passar, por mais que o meu médico tentasse me orientar.

    Você então não recomendaria a outros pacientes buscarem informações na internet?

    Podemos usar a internet para obtermos mais informação sobre a doença, mas não podemos achar que vamos nos tornar especialistas a ponto de ter competência para questionar se o tratamento prescrito é o melhor ou não. As minhas pesquisas geraram essa dúvida, até que chegou a um ponto em que dei um basta. É extremamente importante a relação de confiança com os médicos. Procurei vários mastologistas, até achar aquela com a qual me sentisse confortável e confiante. O mesmo vale para a relação com o oncologista, o cirurgião-plástico, o radioterapeuta etc.

    À medida que fui convivendo com outras pessoas com problemas semelhantes, comecei a perceber que a maioria não tinha a mínima ideia do subtipo de câncer de mama que as acometia. Pensei então: eu não vou mudar a minha história se souber as características moleculares do câncer triplo-negativo e as implicações disso. Ler demais, às vezes, não é bom.

    Existem alguns sites que são muito informativos, contendo reportagens e vídeos de entrevistas com pacientes e médicos, bem acessíveis ao público leigo. Mas é melhor parar por aí. Resultados de estudos clínicos são para pesquisadores dessa área.

    As estatísticas oficiais ajudam ou atrapalham?

    Estatísticas valem para pesquisas e não para o paciente. Estatísticas nessa hora não resolvem nada. O que a gente quer é alguém que cuide do nosso caso como uma pessoa única e não um número. Outro problema da estatística é que a gente sempre se coloca no lado ruim. Se os números mostram que 60% das pessoas que têm câncer conseguem a cura, você se enxerga apenas entre os 40% que não chegaram lá.

    Você encontrou conforto na internet, não em revistas especializadas, mas nos blogs...

    É verdade. O apoio da família e dos amigos ajuda e muito. Mas só quem está passando pelo mesmo problema consegue entender os nossos medos e angústias. Por que o medo? Onde dói? Por que cansa doer? A gente não quer ficar o tempo todo reclamando, então, com quem está vivenciando situação semelhante, conseguimos até fazer piada de tudo isso, rir um pouco. A gente lava a alma. Nesse aspecto, os blogs foram interessantes e bons, até mesmo porque a maioria dos relatos ali é positiva.

    Por que você optou pela mastectomia logo no início do tratamento?

    Existiam duas possibilidades: fazer a cirurgia e depois a quimioterapia ou o esquema inverso. Nas duas opções, existem prós e contras, claramente pontuados pela mastologista e oncologista. Mas a decisão foi minha. Optei por iniciar com a cirurgia por considerar que a quimioterapia debilitaria meu organismo, o que poderia complicar depois o processo cirúrgico. Não tinha metástase e, na cirurgia, os médicos removeram o tumor completamente. Então a sensação de "aquilo que não me pertencia" foi logo retirado, também foi muito boa.

    Você foi informada corretamente sobre o tratamento?

    Sim. Desde o início o oncologista deixou claro que o tratamento curativo seria a cirurgia. A quimioterapia atuaria apenas como um recurso preventivo, para acabar de vez com alguma célula cancerígena que porventura tivesse sobrado. Isso me deu uma segurança enorme.

    A mastectomia e os efeitos da quimioterapia podem afetar a autoestima e a sexualidade da mulher. Como você encarou essa situação?

    Às vezes, não me reconhecia no espelho. Fiquei inchada por causa dos medicamentos e perdi o cabelo, sobrancelhas e cílios. Não me sentia feia, mas me via meio esquisita. Então, a mastectomia e a quimioterapia afetam sim. Mas uma coisa é certa: entre ter a mama e os cabelos e ter a minha vida de volta, não tive dúvida. Escolhi viver.

    Como sua filha, de apenas 10 anos de idade, enfrentou essa situação?

    Contei para minha filha Lívia, que eu tinha câncer de mama e que o tratamento seria tomar um remédio que faria meu cabelo cair. Ela achou engraçada a ideia da mãe careca. Abordamos o assunto de forma positiva e como as crianças não têm preconceito em relação à doença isso ajudou. Na época em que meus cabelos começaram a cair, eu estava internada. Para diminuir o impacto, pedi que ela mesma raspasse o meu cabelo no hospital. Para Lívia, isso foi muito divertido.

    Na época da quimioterapia, eu passava muito mal. O cheiro de tudo me incomodava e não tinha a mesma disposição. Eu não conseguia fazer tudo como antes, como passear, brincar, cuidar e dar atenção, além dos altos e baixos do humor. Sei que, nesses momentos, a minha filha sentiu a minha ausência. E eu tive muito medo de faltar para ela.

    Você recorreu a algum outro artifício para se manter firme durante o tratamento?

    O tratamento não é só a quimioterapia, radioterapia e a cirurgia. É extremamente importante o tratamento do corpo e do lado espiritual e mental. E, nesse caso, não dependemos somente dos médicos e pesquisadores. Está em nossas mãos também. Depende de acreditar, de ter fé. Fé em Deus, em outras energias, nos profissionais, nos remédios – no exato momento em que ele está entrando em nossas veias... É o acreditar com todas as forças e formas para encarar o medo e um tratamento longo e agressivo. Às vezes, precisamos de mais uma ajudinha extra também. Durante um tempo, logo no início, fiz tratamento com antidepressivo. Relutei um pouco. Mas foi necessário e importante. Eu também tinha à minha disposição, na clínica de oncologia em que me tratava, outros profissionais, além do oncologista, que cuidam do paciente oncológico de forma integral, entre eles, psicólogos, nutricionistas e enfermeiros.

     

     

    Qual a importância da família durante o tratamento?

    Nossos companheiros são os que mais sofrem com tudo isso. Eu podia externar meus medos, minhas fraquezas, porque as pessoas entenderiam. Mas o meu marido não. Ubirajara se manteve forte, segurando a barra o tempo todo, inclusive, com a nossa filha. É sem dúvida uma carga enorme e, por isso, o mérito dessa vitória é dele também.

    Você está curada?

    O oncologista disse que sim, mas ainda tenho que fazer exames a cada três meses. Cada exame dá um medo enorme, porque uma simples manchinha, que em outras pessoas seria algo não muito preocupante, no meu caso é motivo para se vasculhar mais. E isso gera estresse. Porém, quando recebo o laudo negativo, é uma alegria.

    Depois de tudo o que passou, você se considera vitoriosa?

    As pessoas dizem que sou uma vencedora... Mas eu acredito que todos vencemos. Meu marido, minha filha, minha mãe que sofreu calada com o meu drama. Os parabéns não são para mim, mas para as outras pessoas. Meus médicos (Dra. Juliana Joukhadar, Dr. Leandro Ramos, Dr. Marcelo Versiani), explicando-me e orientando-me, as pessoas que estão ao meu lado, segurando a bola. Passar por todo esse caminho sem o apoio da família, amigos e médicos seria muito mais difícil. Então, esses são também vencedores. Ao final das contas, pondo tudo na balança, saí ganhando. Porque o câncer foi embora, mas o carinho que recebi dessas pessoas ficou marcado para sempre.

     

    Tereza Leite
    Carlos Parolini