SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.66 issue1 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100019 

     

    Sobre O TDAH: Transtorno ou invenção?

    Joseph Knobel Freud
    Traduzido por Milagros Varguez Ramírez

     

    O transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) tem sido um diagnóstico muito frequente hoje nos consultórios. Se considerarmos as estatísticas, estaríamos diante de uma verdadeira epidemia. Mas, na minha opinião, esse transtorno não existe. O que existem são crianças muito agitadas. E é verdade que há mais crianças agitadas do que antes, mas a primeira coisa que se faz, hoje, é diagnosticá-las de um jeito não válido, com um "déficit de vida", pelo qual são medicadas, na tentativa de modificar a sua conduta.

    Assim, se marca, se estigmatiza, reduzindo a complexidade da vida psíquica infantil a um paradigma simplificador. Em vez de um psiquismo em estruturação, em crescimento contínuo, no qual o conflito é fundamental e no qual todo efeito é complexo, presume-se, exclusivamente, um "déficit" neurológico.

    Mas essas crianças não sofrem de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade tal como é definido. Elas estão sendo tratadas como se fossem portadoras de um transtorno de origem neurológica que deve ser enfrentado com medicação.

    Os sintomas centrais desse suposto transtorno são, segundo aqueles que defendem a sua existência, a falta de atenção, a incapacidade para terminar tarefas, o nervosismo.

    Existe um teste conhecido como "Questionário de conduta de Conners para pais", que consiste em uma série de itens que os pais devem avaliar, sobre o comportamento de seus filhos, marcando nas opções: «nada», «pouco», «bastante» ou «muito». E, com as respostas, é calculado um índice de hiperatividade. Estes são os itens: 1. Ele é impulsivo, irritável; 2. Chora muito 3. É mais agitado do que o normal; 4. Não pode ficar quieto/a; 5. É destruidor (roupas, brinquedos, outros objetos); 6. Não acaba as coisas que começa; 7. Se distrai facilmente, tem pouca atenção; 8. Muda, bruscamente seu estado de ânimo; 9. Seus esforços são facilmente frustrados; e 10. Frequentemente costuma perturbar outras crianças.

    Responder «bastante» ou «muito» a várias dessas perguntas (que uma criança seja agitada, que uma criança seja dispersa, que para uma criança seja difícil prestar atenção...) não é um critério para diagnosticar esse suposto transtorno... praticamente é a definição da infância! Sobretudo no caso das crianças mais novas. E há condutas que são características da infância: que uma criança não termine o que começa, que se distrai facilmente... Por sinal, há um questionário muito semelhante para os professores. Mas nem os pais nem os professores podem fazer tais diagnósticos pois não estão treinados para isso, e nem podem fazê-lo porque são observadores implicados com essas crianças. Além disso temos que considerar a afirmação que todo observador está comprometido com o que observa e que isso acaba interferindo na própria observação, e os pais e professores estão particularmente envolvidos na problemática da criança, pelo que não podem ser "objetivos"(1). Ao mesmo tempo o questionário utilizado, geralmente, está cheio de termos vagos e imprecisos (por exemplo, o que é "inquieto" para alguém pode não ser para o outro). Isso indica que é impossível realizar um diagnóstico de um jeito rápido e sem levar em conta a produção da criança nas entrevistas.

    Realmente nos surpreende que as crianças de três ou quatro anos sejam agitadas ou que não queiram terminar muitas tarefas? Como elas deveriam ser? É bom que uma criança nessa idade seja inquieta, que fique absorto nas suas coisas, que proteste se não quiser fazer algo, que esteja experimentando, que esteja procurando seus limites... Desde quando uma criança que não presta atenção tem uma doença neurológica?

    DOENÇA FICTÍCIA? Como eu disse, acredito que o TDAH não existe como tal. E não só eu, mas muitos profissionais da saúde mental também pensam assim. Agora se sabe que o psiquiatra Leon Eisenberg, que descobriu o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, confessou, sete meses antes de sua morte em 2009, que trata-se de "uma doença fictícia".

    A grande maioria das crianças, por definição, é agitada, luta para terminar uma tarefa porque elas se distraem com outras, querem fazer o que lhes apetecer ... Mas se diz que não, que essas crianças sofrem de TDAH, sendo tratadas como se tivessem um transtorno neurológico de origem genética. É dito que a causa fundamental do transtorno está na biologia (embora também se fale de fatores ambientais), em alterações cerebrais e, consequentemente, são vendidos comprimidos para combatê-lo.

    Esses comprimidos contêm, como ingredientes ativos, metilfenidato ou atomoxetina. Ambos são tipos de anfetaminas, porque estas, apesar de serem psicoestimulantes, têm o efeito paradoxal de acalmar as crianças. Como eu vejo nas minhas consultas, as crianças diagnosticadas com TDAH que tomam medicamentos, muitas vezes estão sonolentas e têm problemas em mostrar interesse pelas coisas.

    Além disso, como tenho assinalado, não é verdade que a razão pela qual as crianças são especialmente agitadas ou dispersas esteja em alterações cerebrais. Devemos estar cientes de que os medicamentos prescritos para o TDAH podem ter graves efeitos colaterais. Por exemplo, de acordo com a Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos de Sanitários, o uso de medicamentos cujo ingrediente ativo é o metilfenidato "pode estar associado a alterações cardiovasculares e psiquiátricas".

     

     

    MEDICAMENTOS DE ALTO RISCO Sobre as anfetaminas em geral, foram proibidas em alguns países (como no Canadá), além de serem conhecidas pelo seu potencial de dependência.

    Em diferentes trabalhos, com respeito ao metilfenidato, afirma-se que não pode ser dado a crianças com menos de seis anos; não é recomendado no caso de crianças com tiques (Síndrome de Tourette); é arriscado no caso de crianças psicóticas, porque aumentam os sintomas; deriva com o tempo em retardo do crescimento; pode causar insônia e anorexia; pode diminuir o umbral convulsivo em pacientes com história de convulsões ou com EEG anormal sem ataques.

    Com relação aos dados sobre atomoxetina, pode produzir mudanças clinicamente importantes na pressão arterial e na frequência cardíaca. Além disso, pode causar perda de peso e resultar em crescimento atrofiado, síndromes gripais, vômitos e perda de apetite.

    Também, é importante perguntar se a medicação administrada para produzir efeitos de modo imediato (de forma mágica, sem elaboração pelo sujeito), sendo necessária por um longo tempo, não provoca dependência psíquica. Uma pílula que modifica atitudes vitais gera apenas um "bom desempenho"?

    As empresas farmacêuticas realizam uma série de estratégias inteligentes para vender seus produtos. Uma delas é a diseasemongering (promoção de doenças), que cria condições adequadas para seus alvos comerciais. Há equipes das indústrias farmacêuticas que vão às escolas para falar sobre supostas doenças, como o TDAH, e há um empenho para que sejam publicados apenas os estudos clínicos que suportam os seus interesses. Outras vezes, os dados são distorcidos e médicos eminentes defendem os benefícios de determinados medicamentos... Tudo é feito com o objetivo de vender medicamentos que, muitas vezes, são, no mínimo, desnecessários.

     

     

    CRIANÇAS HIPERESTIMULADAS Claro que existem crianças que são mais agitadas, dispersas e impulsivas (os três principais sintomas do suposto TDAH) do que outras. Crianças que, para sua idade, já teriam que estar um pouco mais tranquilas e deveriam se concentrar melhor. Insisto, é normal que uma criança de três ou quatro anos seja agitada, impulsiva, dispersa. E, é verdade, que as crianças com mais de cinco ou seis anos já não teriam que ser tão impulsivas e deveriam se concentrar nas tarefas que realizam. Mas o problema não tem uma origem cerebral. São agitadas, dispersas e impulsivas porque vivemos numa sociedade agitada, dispersa e impulsiva. Uma sociedade de ritmo acelerado onde as crianças levam uma vida agitada e estão hiperestimuladas (televisão, internet, jogos eletrônicos) e onde muitos pais não colocam limites adequados para os seus filhos. Estes são os fatores que explicam porque, cada vez mais, existem crianças agitadas.

    Pais sem limites, pais deprimidos, professores sobrecarregados pelas demandas, um ambiente em que a palavra tem perdido o valor e no qual as regras, de modo geral, são confusas. Tudo isso não aumenta a dificuldade em prestar atenção na aula, por exemplo?

    Também é preciso que seja considerada a grande contradição que se origina entre uma realidade de estímulos, de tempos breves e rápidos da televisão e do computador, aos quais as crianças são acostumadas desde cedo, onde as mensagens geralmente duram poucos segundos e onde predomina o campo visual, e os tempos mais longos do ensino, centrados na leitura e na escrita, aos quais as crianças não estão acostumadas.

    Para mim (e para muitos profissionais da saúde mental) o TDAH não existe. Portanto, não recomendo, obviamente, medicar as crianças que são diagnosticadas com essa suposta doença. Assim, talvez o melhor que se possa fazer é ir a um psicólogo clínico ou psicanalista e aprender a estabelecer limites.

    As crianças agitadas podem ser assim por diferentes motivos. O principal, como eu disse, é a falta de limites. Mas pode haver outros motivos, como o enfrentamento de assédio escolar, e por isso elas ficam muito nervosas. Ou que a mãe (ou a pessoa que realiza a função materna) esteja deprimida e a criança precisa se movimentar para colocá-la em movimento.

    Um caso muito típico é o da criança que vive perturbada porque seus pais estão prestes a se separar. A criança está nervosa, teme o que poderá acontecer e tem dificuldade de se concentrar, está mais irritável, fica brava com outras crianças. E é fácil de ser diagnosticado como TDAH. Outro caso típico é o da criança muito agitada que está procurando chamar a atenção porque sente que seus pais não lhe dedicam atenção suficiente. Ou a criança que tem pânico de se separar de seus pais e, portanto, está frequentemente nervosa. Como se pode dar derivados de anfetaminas a essas crianças? Onde vamos parar? Uma criança muito agitada, dispersa e impulsiva é como um adulto que tem dor de cabeça com frequência. O que vai fazer esse adulto? Tomar um analgésico todos os dias?

    Sem contar que a mensagem que está sendo transmitida no ato de dar uma substância externa para produzir um efeito psíquico determinado pode levar as crianças a serem adolescentes que nos digam que vão tomar uma série de drogas ou álcool para "passar melhor a noite".

    Uma das queixas dos pais cujos filhos são diagnosticados com TDAH é que eles não prestam atenção neles. Mas conseguir a atenção das crianças está relacionado, muitas vezes, com a vontade para isso. Se os pais não podem ou não querem dar atenção suficiente a seus filhos, como esperar que a criança esteja atenta?

    Por outro lado, há crianças que se mexem muito quando estão com fome, frio ou sono, por exemplo. Eles se mexem porque eles estão nervosos. É uma reação normal. Mas não tem nenhum transtorno neurológico, simplesmente ainda não aprenderam a se controlar quando eles estão desconfortáveis por algum motivo. Os pais têm que ensinar seus filhos a esperar com calma quando estão com fome, em vez de lhes dar rapidamente a primeira coisa que pegam da geladeira; tem que relaxar o filho para que ele adormeça...

    Limites e calma são as duas das melhores estratégias para que as crianças muito agitadas não sejam desse jeito. Algo muito difícil em uma sociedade que é acelerada.

    Por que muitos professores tendem a suspeitar que uma criança tem TDAH? Porque cada vez mais as crianças são difíceis de controlar nas salas de aula, é verdade. Mas como podemos pedir às crianças, que não têm os limites apropriados em casa e que estão acostumados a se hiperestimular jogando duas horas por dia de um jogo de guerra com o computador, que passem oito horas sentados ouvindo um professor?

    Também acho que há um problema de autoridade. Muitos professores não conseguem ter a autoridade para controlar seus alunos. E é melhor pensar que o problema de a criança estar fora de controle está no cérebro deste, e não na sociedade que não está ajudando aos professores a exercer autoridade.

    É necessário que a educação e seus trabalhadores tenham mais prestígio. Até recentemente, estudar magistério era algo valorizado pela sociedade. Hoje, há pais que falam mal dos professores, mesmo na frente de seus filhos. Nas portas das escolas, muitos pais dizem "olhe este sujeito que tem três meses de férias". Como as crianças vão prestar atenção e respeitar os seus professores se os pais falam mal deles, se não os respeitam?

    Não se valoriza a profissão do professor como se deve. A sociedade deveria ser mais justa com os professores, porque as crianças passam grande parte de sua vida com eles. E o papel do professor vai muito além de ensinar a tabuada.

     

    Joseph Knobel Freud é psicólogo especialista em psicologia clínica. Membro fundador e docente da Escola de Clínica Psicoanalítica com Crianças e Adolescentes de Barcelona e vice-presidente da Seção de Crianças e Adolescentes da Federação Espanhola de Associações de Psicoterapeutas (Feap).

     

    NOTA E BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    1. No início do século XX, o físico Heisenberg propôs que o observador é parte do sistema.

    Flavigny, C. (2004) "Psychodynamique de l'instabilitéinfantile". In: Ménéchal, Jean y otros, L'hiperactivitéinfantile. Débats et enjeux, Dunod, Paris, cap 6, pág 81-104.

    Frizzera, O.; Heuser, C (2004) "El niño desatento e inquieto em la escuela". In: Janin, B.; Frizzera, O.; Heuser, C.; Rojas, M. C.; Tallis, J.; Untoiglich, G.: Niños desatentos e hiperactivos. Reflexiones críticas acerca del trastorno por déficit de atención con o sin hiperactividad, Novedades Educativas, Buenos Aires, cap 6.

    Harrison, C.; Sofronoff, K. "ADHD and parental psychological distress: role of demographics, child behavioral characteristics, and parental cognitions". Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry. 41(6):703-711, June 2002.

    Janin, B. (2000b) "Sindrome de ADD?". Cuestiones de Infancia Nº 5., Buenos Aires, FauEdit.

    Janin, B. (2002a) "Fracaso escolar por dificultades en la atención o la falta de memoria?". In: Ensayos y Experiencias nº 43, Buenos Aires, Novedades Educativas.

    Janin, B. (2002b) "Las marcas de la violencia. Los efectos del maltrato en la estructuración subjetiva". Cuadernos de Psiquiatría y Psicoterapia del Niño y del Adolescente nº33/34, Bilbao.

    Janin, B. (2004) "A qué atienden los niños desatentos?", "Un niño que se mueve demasiado". In: Janin B.; Frizzera O.; Heuser C.; Rojas M. C.; Tallis J.; Untoiglich G. Niños desatentos e hiperactivos. Reflexiones críticas acerca del trastorno por déficit de atención con o sin hiperactividad, Novedades Educativas, Buenos Aires, cap. 2 y 3.

    Lebovici, S.; Diatkine, R.; Soulé, M. (1989) Tratado de Psiquiatría del Niño y del Adolescente, Madrid, Biblioteca Nueva.

    Roudinesco, É. (2000) Por qué el psicoanálisis?, Buenos Aires, Paidós.