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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100020 

    CINEMA

    NO IMAGINÁRIO CINEMATOGRÁFICO RECENTE, A CURA SUPERA O DRAMA

     

    Na encenação do premiado diretor francês Bertrand Blier (Linda demais para você), o câncer personifica-se num fantasma elegante e sedutor a "corromper" sua vítima e levá-la para o mau caminho, ou seja, para a morte. No filme O ruído do gelo (Le bruit des glaçons, França, 2010), o protagonista Charles Faulque (Jean Dujardin) é o escritor indisciplinado e beberrão assombrado pela surpreendente visita, portadora da má notícia. Mesmo assim, Blier a reveste de um certo humor, às vezes até negro, numa abordagem original da convivência com a doença que aponta para um final inesperado.

    O exemplo de Blier não é único. Nos últimos anos, há filmes que têm desafiado os fantasmas, as assombrações e a morte, com protagonistas diagnosticados com câncer que não sucumbem totalmente ao apelo trágico e dramático da doença adotado pelo cinema ao longo de décadas, sinalizando que a evolução dos diagnósticos e tratamentos começa a chegar também aos filmes, dando-lhes um frescor necessário e um olhar mais realista.

    Na comédia dramática 50% (50/50, EUA, 2011), por exemplo, Adam (Joseph Gordon-Levitt) é um jovem saudável, sem vícios, diagnosticado aos 27 anos com câncer na coluna. Ele se assusta, obviamente, mas dedica-se à quimioterapia, terapia, submete-se a uma cirurgia e vence a doença. Sensível e sério, o grande trunfo do filme é o roteiro autobiográfico de Will Reiser, que se curou da doença e deu ao personagem não apenas o mesmo destino, mas também o realismo do tratamento e de suas consequências para o paciente, sua família e amigos mais próximos.

    Já a proposta de Antes de partir (The bucket list, EUA, 2007), do veterano diretor Rob Reiner, concilia o passado com o presente da representação do câncer no cinema. Nele, Edward e Carter, interpretados respectivamente pelos grandes Jack Nicholson e Morgan Freeman, têm câncer cerebral. Os dois dividem o quarto do hospital e vivem os efeitos colaterais do tratamento – apresentados com acuidade. Nas semanas que se seguem, em meio a muitas aventuras, Edward reage bem e entra em remissão, Carter não.

    São mudanças como essas, da perspectiva da abordagem do câncer nos filmes, que o pesquisador italiano da Universidade Sapienza, de Roma, Luciano De Fiore, espera assistir com mais frequência. "Nos últimos anos, o cinema tem contemplado aspectos mais importantes das doenças oncológicas, como causas epidemiológicas e do meio ambiente em Erin Brockovich: uma mulher de talento (Erin Brockovich, EUA, 2000), Conduta de risco (Michael Clayton, EUA, 2007) e As últimas 56 horas (Le ultime 56 ore, Itália, 2010); as implicações econômicas das terapias em O homem que fazia chover (The rainmaker, EUA, 1997); o tratamento dos sintomas em Uma lição de vida (Wit, EUA, 2001) e Tudo por amor (Dying young, EUA, 1991); e o cuidado na fase terminal em As invasões bárbaras (Les invasions barbares, Canadá/França, 2003), A eternidade e um dia (Mia aioniotita kai mia mera, Alemanha/França/Grécia/Itália, 1998) e A primeira coisa bela (La prima cosa bella, Itália, 2010)", afirmou De Fiore.

    PESQUISA ITALIANA Entretanto, o imaginário cinematográfico relacionado à doença ainda é muito distante da realidade. Foi o que constatou a pesquisa "Oncomovies: cancer in cinema", da qual participou De Fiore, na companhia de cinco especialistas de universidades italianas, que analisaram 75 produções, de 13 países, realizadas entre os anos de 1939 e 2012. Os pesquisadores constataram que, frequentemente, a pessoa doente não se recupera da doença (63%), e a morte costuma estar mais à serviço da narrativa em detrimento do realismo nos filmes analisados. Esse padrão é tão fortemente enraizado que persiste, apesar do real progresso dos tratamentos. Mesmo assim, a conclusão da pesquisa é de que filmes sobre câncer podem ter um impacto positivo para pacientes, médicos e espectadores em geral. "Usar a tela grande para mostrar histórias sobre o câncer ajuda a aumentar o conhecimento sobre a complexidade do problema e quais as novas terapias disponíveis", diz De Fiore.

    Produções que privilegiam os "bastidores" do tratamento da doença, como Um golpe do destino (The doctor, EUA, 1991), que narra a transformação de um médico arrogante (William Hurt) ao descobrir-se com câncer de garganta, ou o telefilme Uma chance para viver (Living proof, EUA, 2008), sobre a cruzada do pesquisador e médico Dennis Slamon para finalizar as pesquisas da droga experimental Herceptin, que poderia revolucionar o tratamento do câncer de mama, podem provocar a mudança desejada pelo pesquisador italiano.

     

     

    O mesmo pode se esperar da, cada vez mais, volumosa produção de documentários sobre a doença, como o relato autobiográfico da difícil cura da jovem fotógrafa Kris Carr em Crazy, sexy cancer (2007) ou a denúncia do envolvimento da indústria química no fluxo da doença apontada na produção canadense O ciclo idiota (The idiot cycle, Canadá, 2009). Na televisão por assinatura, The big C, exibida no Brasil pelo canal HBO, surpreendeu ao ficar quatro temporadas no ar, de 2010 a 2013, com a proposta de encenar os cinco estágios da dor – negação, raiva, negociação, depressão e aceitação – vividos pela personagem Kathy (Laura Linney), diagnosticada com câncer de pele nível 4.

    DRAMAS EXISTENCIAIS EM FOCO A solidariedade com pacientes de câncer também está mais presente no cinema, ecoando a vida real. Se o simpático Garotas do calendário (Calendar girls, EUA/Inglaterra, 2003) transformou um grupo de coroas inglesas em modelos sensuais para arrecadar fundos para ampliar o tratamento da doença, em The hot flashes (EUA, 2013), um grupo de mulheres de meia-idade de uma cidadezinha texana decide voltar a jogar basquete contra o time de adolescentes da sua velha escola para arrecadar fundos para a prevenção do câncer de mama.

    A representação do câncer no cinema, à parte o caráter científico, filia-se a uma tradição de belos e poderosos dramas existenciais, resultantes do dilema que até há poucos anos atrás se instaurava com a manifestação da doença. Bette Davis interpretou uma socialite elegante e espirituosa, vítima de um tumor cerebral no clássico Vitória amarga (Dark victory, EUA, 1938), filmado ainda em preto e branco com sequências pungentes. Em Viver (Ikiru, Japão, 1952), o grande cineasta Akira Kurosawa fez arte com a redenção humana de um burocrata no pós-Segunda Guerra a partir do diagnóstico do câncer. A belga Agnès Varda cria toda espécie de distração nas duas horas que separam uma jovem de sua visita ao médico para receber os resultados dos exames de um possível câncer, em Cléo das 5 às 7 (Cleó de 5 à 7, França, 1962). O grego Theo Angelopoulos faz a combinação improvável de câncer terminal e poesia no filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes, A eternidade e um dia (1998).

    É a essa tradição que filiam-se produções recentes sobre o câncer, em que o cinema aproxima-se do lírico sem perder de vista a realidade. A guerra está declarada (La guerre est déclarée, França, 2011) coloca a estética a favor da árdua luta de um casal para salvar seu bebê da doença. Com direção da espanhola Isabel Coixet, Minha­ vida sem mim (My life without me, Canadá/Espanha, 2003) reveste o enfrentamento da morte de introspecção, ternura e paixão insuspeitas. E a dinamarquesa Susanne Bier professa uma sensível e comovente lição de vida ao contar história de superação de câncer de mama no obrigatório Amor é tudo que você precisa (Den skaldede frisør, Alemanha/Dinamarca/França/Itália/Suécia, 2012). Enfim, os filmes podem ser portadores, além de informação e conhecimento, também de beleza e conforto.

     

    Fátima Gigliotti