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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100022 

     

    RESENHA

    O FENÔMENO DA RIQUEZA EM SUAS DIMENSÕES SOCIAIS

     

    Que processos permitem que a riqueza fique concentrada nas mãos de poucos indivíduos? Qual a origem das grandes fortunas? Qual o seu papel na manutenção das desigualdades sociais? Essas são algumas perguntas que o sociólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), Antonio David Cattani tenta elucidar em seu mais recente livro, A riqueza desmistificada, publicado em edição bilíngue (inglês/português), no final de 2013, pela editora Marca Visual de Porto Alegre. Para isso o autor propõe uma análise da riqueza além da sua dimensão puramente econômica. A riqueza contemporânea é, ao mesmo tempo, totem – quando se mostra, por exemplo, por meio das listas dos mais ricos ou de um mercado de luxo em ascensão – e tabu, ao permanecer dissimulada e abstrata, como resultado das forças do mercado, operado por mãos que se esforçam por permanecerem invisíveis. Ao desconstruir o mito em torno das grandes fortunas e dos personagens por trás delas é possível, segundo o autor, entender a riqueza como um fenômeno social total, que comporta dimensões culturais, simbólicas, jurídicas e, sobretudo, políticas.

    Personagens como os ícones da inovação tecnológica da era da internet Mark Zuckerberg, Larry Page e Bill Gates ou o italiano Silvio Berlusconi e o mexicano Sebastián Piñera, empresários do setor de mídia e também importantes políticos em seus países, figuram nas listas, sempre curtas, dos detentores de fortunas estratosféricas. São também reverenciados como gurus empresariais e líderes intelectuais e políticos, com grande influência na vida política, cultural e econômica no planeta. Eles encarnam a face totêmica da riqueza. Esses totens se desdobram em outra face, da ordem do tabu. "Quando convém, os indivíduos concretos são substituídos por abstrações genéricas tais como 'corporações', os 'grandes bancos' e, especialmente, o 'mercado', todos regidos por forças gerais, mecanismos abstratos e impessoais que asseguram o funcionamento do sistema", escreve o autor. Um sistema que, quanto mais opulência gera, mais concentra esse patrimônio nas mãos de poucos, ao ponto de 10% dos adultos do mundo deter 85% da riqueza global, enquanto a metade mais desfavorável da população mundial fica com menos de 1% desse montante, segundo dados do World Institute for Development Economics Research (UNU Winder).

    BLINDAGEM Conforme explica Cattani, os multimilionários tentam preservar o controle absoluto dos dados e dos fatos concernentes à origem dos seus rendimentos e patrimônio, dando, eventualmente, visibilidade aos aspectos da vida social que ratificam seu prestígio e legitimam suas posições. Usam sua influência e poder político para exercer um tipo de ganância e ambição sem limites, que resulta em um extraordinário processo de transferência de renda. A redução de impostos sobre rendimentos pessoais e sobre heranças é um dos meios para viabilizar esse processo. Na mesma linha, mesmo enquanto suas empresas rumam à insolvência ou grandes bancos registram prejuízos significativos, os altos executivos por trás dessas organizações mantêm suas finanças pessoais intocadas, blindadas contra as crises econômicas que, porventura, afetem o setor onde eles estão atuando. A novidade aqui é que enquanto em uma equação normal do sistema capitalista os lucros seriam reinvestidos na empresa para gerar mais lucros, parte substantiva deles passa a ser transferida para fortunas pessoais de alguns poucos, à custa de trabalhadores, pequenos empresários, pequenos acionistas.

    Para o autor, a ausência ou o enfraquecimento dos controles sociais e, especialmente, estatais, permitiu a ampliação de práticas ilícitas. "A luta pela transparência esbarra nos privilégios e na impunidade que apenas alguns indivíduos poderosos conseguem assegurar, graças à escala do seu poder financeiro e político", afirma o autor. "Para os super-ricos não existe nação, natureza ou futuro", completa. Ele lembra de uma declaração do secretário da Receita Federal feita em 2002, último ano do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, afirmando que os grandes banqueiros brasileiros não pagavam imposto de renda.

    APROVAÇÃO PÚBLICA Outra questão levantada na obra é sobre a legitimidade social em torno dos multimilionários, a despeito da origem da riqueza, muitas vezes, não ser lícita. No senso comum, os mega-ricos são associados à ideia do esforço e talento, exercidos em uma economia de livre mercado. E os ricos se aproveitam e se esforçam para ampliar essa legitimidade. A filantropia é uma das estratégias adotadas para que pareçam cidadãos bem intencionados. Nesse sentido, Cattani acredita ser um desafio para as ciências sociais entender que por trás de grandes corporações (e grandes fortunas) existem personagens responsáveis por decisões que afetam a vida de milhões de pessoas, sendo eles mesmos os grandes beneficiados, em detrimento de uma justa repartição, que traria o bem comum.

    O livro também se dedica a uma análise do contexto brasileiro, um dos cinco países mais desiguais do planeta. Segundo dados apresentados pela revista Exame (2012) existiriam no Brasil 130 mil multimilionários, 65% residiriam em São Paulo e no Rio de Janeiro, números que revelam "que alguns poucos indivíduos controlam as decisões cruciais tomadas nos setores estratégicos de comunicação, telefonia, mineração e do agronegócio e, especialmente, dominam o core do setor bancário e financeiro", afirma Cattani. E essa concentração de renda tem múltiplas dimensões: no exercício direto ou indireto do poder, no financiamento de partidos e de políticos e, sobretudo, na tomada de decisões estratégicas no campo econômico. A partir de uma breve análise da história econômica brasileira o autor mostra que "a distribuição de renda manteve-se praticamente nas mesmas proporções durante o regime militar e durante governos corruptos, populistas e neoliberais". No entanto, ele acredita ter havido uma evolução a partir de 2004, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva que iniciou uma política social distinta dos seus antecessores, com resultados importantes na redução da miséria.

    O LADO ESCURO DOS RICOS As diversas listas sobre milionários publicadas ao redor do mundo têm em comum o fato de admitir que os valores contabilizados por elas são subestimados, ou seja, o valor real das fortunas é maior do que registram as estatísticas disponíveis. O que a subestimação revela "é a incapacidade do fisco em identificar fontes de renda e de tributá-las com o mesmo rigor aplicado aos demais contribuintes", aponta Cattani. Essa seria apenas uma das dificuldades para se localizar e nomear os ricos. No Brasil, o quadro é ainda mais complexo. O sistema judiciário, analisa o autor, protege as grandes fortunas e as desregulamentações promovidas pela onda neoliberal dos anos 1990 facilitam a evasão fiscal.

    Não se produzem listas de multimilionários no Brasil e existem pouquíssimos estudos acadêmicos sobre o tema. "Os ricos são uma categoria flexível, permeável, composta, em parte, pela 'velha classe', aquela que esteve associada ao controle dos ciclos econômicos brasileiros mais importantes e ao poder público nas diferentes esferas". Eles seguem exercendo forte influência política quando é necessário, por exemplo, para manter as taxações sobre heranças e sucessões como uma das menores do mundo. Ao mesmo tempo, esforçam-se para ficar longe dos holofotes. Um exemplo disso é a lista produzida em 2011 pelo jornal inglês The Sunday Times na qual constavam três milionários brasileiros que fixaram residência em Londres para obter vantagens fiscais. Outros cinco multimilionários do setor financeiro, segundo o autor, impediram a publicação de seus nomes.

    A DESIGUALDADE SOCIAL As classes ricas têm sido muito bem sucedidas em fomentar uma ideia específica de meritocracia para justificar sua posição no topo da pirâmide. Heranças, privilégios indevidos e fraudes, vantagens obtidas graças às grandes fortunas, enfim, o lado escuro da riqueza, jamais aparece como elemento que explica as posições no topo da escala social. O livro de Antonio David Cattani é uma importante contribuição para desmistificar a riqueza, fenômeno ainda interpretado apenas por seu brilho.

     

    Patrícia Mariuzzo