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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo  2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000100023 

    MUNDO KUBRICK

    GENIALIDADE DO CINEASTA CRIADOR DE PERSONAGENS ÚNICOS E INESQUECÍVEIS

     

    Quando escreveu O mito do cinema total (1946), o crítico francês André Bazin expunha uma concepção teleo­lógica de cinema que anunciava o apogeu de um meio de expressão, a emergência de um realismo integral capaz da recriação do mundo à sua própria imagem e semelhança. A meio caminho desse momento em que o cinema pudesse se confundir com a própria vida, falta ainda investigar, talvez, o "mito do cineasta total", criador de um universo tão rigorosamente complexo e fascinante que sua obra assume os contornos de uma realidade alternativa autônoma, enquanto sua própria vida se confunde com uma lenda. Stanley Kubrick talvez seja o exemplo mais próximo desse mito de um "cineasta total".

    Uma pequena (mas extasiante) incursão pelo "Mondo Kubrick" foi oferecida pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, de outubro de 2013 a janeiro último. A exposição fez parte de um giro, que começou em Frankfurt, em 2004, com o nome "Stanley Kubrick", já passou por cidades como Berlim, Melbourne, Roma, Paris e Amsterdã. Antes de chegar a São Paulo, a exposição atraiu 242 mil visitantes no Los Angeles County Museum of Art (Lacma), nos EUA. Terminada a temporada em São Paulo, segue seu roteiro internacional, agora para o Museu Nacional em Cracóvia, na Polônia.

     

     

    Embora menor que a exposição do Lacma, a edição do MIS-SP se destacou em termos de design e interface – mérito do projeto e montagem de cenografia. Foi uma exposição muito mais lúdica e acolhedora, organizada em espaços menores e mais intimistas, minuciosamente decorados em homenagem a cada filme – como se cada obra de Kubrick "transbordasse" para nossa experiência cotidiana por alguns momentos de auspiciosa deambulação. Assim, o visitante pôde conhecer a história, documentos e objetos de cena de O iluminado (The shinning, 1980) abrindo portas, como se perambulasse pelos corredores sinistramente prosaicos do hotel Overlook. A coleção sobre 2001: Uma odisseia no espaço (2001: A space odissey, 1968), por sua vez, era percorrida num espaço circular como a "centrífuga" da espaçonave Discovery. Já o acervo sobre Barry Lyndon estava em ambiente que emula a "luz de velas" característica do filme, apresentando a câmera especialmente desenvolvida para a obtenção de fotografia inédita para uma produção de 1975. No espaço dedicado a Nascido para matar (Full metal jacket, 1987), o visitante podia se deitar num beliche de caserna para assistir a documentários de produção do filme, enquanto a coleção sobre Lolita (1962) aconchegava o público num pequeno lounge sugestivo da atmosfera do filme, inspirado na iconografia relacionada à personagem interpretada por Sue Lyon. A trilha sonora de cada ambiente foi muito bem pensada para a imersão no universo ficcional de cada "filme-mundo".

    Projetos jamais concluídos pelo diretor, como Inteligência artificial (A.I., retomado e concluído por Steven Spielberg em 2001), Aryan papers e Napoleon também estiveram representados. Seu percurso profissional desde repórter fotográfico da revista Look, os primeiros curtas-metragens, e o período de formação do cineasta (entre 1945 e 1953) compunham o mesmo ambiente onde era exibida uma amostra de lentes especialíssimas e demais equipamentos utilizados pelo diretor ao longo de sua carreira.

    CINEASTA TOTAL Stanley Kubrick nasceu em 26 de julho de 1928 no Bronx, Nova York. Filho de pais judeus americanos originários da Europa central, ele desperta para a fotografia aos 13 – quando ganha de seu pai, por ocasião de seu aniversário, uma câmera Graflex. O jovem começa a se destacar como fotógrafo e, em 1945, vende por US$ 25 uma fotografia para a revista Look. Pouco depois conquista uma vaga na equipe da revista, consolidando seu nome como autor de elogiadas reportagens fotográficas. Seu primeiro filme é o documentário Dia da luta (Day of the fight, 1951), no qual retoma a série de fotografias do campeão Walter Cartier que havia feito para a Look. No mesmo ano, Kubrick realiza O padre voador (Flying padre, 1951), documentário sobre dois dias na vida do padre/piloto Fred Stadtmueller, o qual visita paróquias no Novo México a bordo de seu avião. Aos 25 anos, ele estreia como diretor de longa-metragem com Medo e desejo (Fear and desire). O biógrafo Michel Ciment observa no Kubrick de A morte passou perto (Killer's kiss, 1954,) um precursor da Nouvelle Vague francesa (Conversas com Kubrick. Cosac Naify, 2013).

    Conforme apontado por José Geraldo Couto, "cineasta culto e exigente, senhor absoluto de seu meio de expressão, Stanley Kubrick produziu relativamente pouco: apenas 13 longas metragens em quase meio século de atividade. Foi o bastante para dar ao cinema meia dúzia de obras-primas em diferentes gêneros, transgredindo sempre os limites destes últimos com seus filmes radicalmente originais, que desconcertam até hoje a crítica e o público". Michel Ciment compara Kubrick a Orson Welles e destaca a habilidade do cineasta enquanto mestre das finanças, talento que teria garantido sua máxima autonomia artística.

    A carreira de Kubrick começa e termina com a independência do cineasta em total domínio de sua arte, do roteiro à montagem – à exceção de Spartacus (1960), superprodução em que sua atividade teria sido mais restrita ao cargo de "mero" diretor. De Lolita (1962) em diante, ele recuperava sua vocação totipotente isolando-se na Inglaterra, como que para reafirmar sua independência em relação a Hollywood.

     

     

    LEGADO Em sua filmografia, Kubrick construiu uma das mais densas, detidas e complexas investigações da natureza e do drama humanos jamais expressa em qualquer forma de arte. Diretor cioso de cada etapa da realização, Kubrick também deu ao mundo uma filmografia total em termos de investigação filosófica, com um punhado de obras-primas que rearranjaram decisivamente o horizonte cinematográfico que as sucedeu.

    Stanley Kubrick faleceu em sua casa em 7 de março de 1999, vítima de um ataque cardíaco quatro meses antes da estreia de De olhos bem fechados. Não participou, portanto, das últimas etapas de finalização dessa obra-prima derradeira, filme mal recebido pela crítica. Mas isso não surpreende. Martin Scorsese relembra que "quando olhamos para o passado e nos interessamos pelas reações, na época, aos filmes de Kubrick (com exceção dos mais recentes), percebemos que, a princípio, todos foram mal compreendidos. Somente depois de cinco ou dez anos, acabávamos nos dando conta de que 2001 ou Barry Lyndon ou O iluminado não eram parecidos com nada do que os havia precedido ou seguido".Total em sua arte, Kubrick deixou um legado cinematográfico tão enigmático e fascinante como seu monolito negro, uma obra coesa, completa, substancial – e absolutamente necessária.

     

    Alfredo Suppia