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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo jun. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200002 

    TENDÊNCIAS

     

    50 anos do golpe militar a SBPC nalutapela democratização do país

     

     

    Helena B. Nader

     

     

    Cerca de 30 mil sócios. Foi essa a marca surpreendente de associados que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC, atraiu durante o período da ditadura militar no Brasil. Um reflexo transparente do que a entidade significou para estudantes, professores, pesquisadores e para a sociedade brasileira naquele período de ausência de liberdade de manifestação e expressão.

    De fato, desde sua fundação, em 8 de julho de 1948, a SBPC tem desenvolvido sua história em profunda sintonia com os processos de evolução social, política e econômica no país. Ao longo dos seus quase 66 anos, deixou de ser uma entidade voltada apenas para as discussões dos temas relativos ao desenvolvimento científico e tecnológico nacional, para se transformar também num fórum privilegiado e propício aos debates sobre as questões de interesse mais amplo da sociedade. Logo nos anos 1950 a SBPC passou a ampliar sua inserção política, processo intensificado a partir do golpe militar de 1964, quando se viu como uma das poucas entidades representativas da sociedade brasileira com possibilidade de permitir a manifestação pública frente ao autoritarismo vigente.

    Durante os 20 anos do regime militar (1964-1984) a instituição representou um fórum democrático de crítica ao regime. Nesse período, a SBPC cumpriu um papel fundamental de resistência ao governo militar, sobretudo manifestando-se contra perseguições a professores, pesquisadores e estudantes, e contra a interferência nos sistemas educacional e científico, que pudessem ferir a autonomia das universidades.

    Na década de 1970 a SBPC internalizou temas que evidenciavam a responsabilidade social do cientista, como o impacto da energia nuclear, o apoio à luta dos povos indígenas, o combate à fome e à desnutrição, e muitos outros que refletiam a importância das humanidades como componente do crescimento do país. Nessa época, quando o poder militar enfatizava o desenvolvimento tecnológico em detrimento da busca do conhecimento científico, ocorreram fortes confrontos entre o governo e os cientistas, face às restrições à liberdade e à redução de recursos para as universidades.

    Pessoalmente, como estudante universitária na época, acompanhei de perto a retirada de colegas das salas de aulas, professores sendo arrancados de suas casas, as torturas e os desaparecimentos.

    Nossa professora de genética, Heleneide Nazaré, foi torturada na Operação Bandeirantes (Obam), e sua irmã, Helenira, que estava no congresso da UNE em Ibiúna, foi presa, entrou na guerrilha do Araguaia e, como muitos, nunca mais foi encontrada. As escolas e universidades, pelo caráter formativo, de construção do pensamento, da pesquisa e da reflexão, foram algumas das instituições mais atacadas e prejudicadas durante o regime militar.

    Não podemos esquecer que professores do ensino básico também foram perseguidos pela ditadura, muitos torturados e desaparecidos. Aos estudantes foram impingidas no currículo as disciplinas obrigatórias Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica, para promover a doutrina do governo militar.

    Foi nesse cenário, de absoluta ausência de espaços para o exercício da liberdade de expressão, que as reuniões anuais da SBPC se fortaleceram e se transformaram em palco de debates, permitindo questionamentos de fundo ao modelo econômico social imposto pela coalizão de classes que sustentou a ditadura. Por isso, a instituição se consolidou no regime, quando os eventos eram abertos às manifestações políticas. Com outros canais fechados pelo governo, a SBPC passou a ser o único espaço onde as vozes discordantes podiam se manifestar.

    No entanto, houve momentos dramáticos na história. Em 1977, por exemplo, essa "liberdade" foi ameaçada e quase que a 29ª Reunião Anual não aconteceu. O governo exigiu da SBPC o adiamento do evento programado para Fortaleza, sob a alegação de que a União Nacional dos Estudantes (UNE) organizava um movimento simultâneo. O adiamento foi recusado pelo presidente da SBPC na época, o físico nuclear Oscar Sala, e a reunião transferida para São Paulo, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a convite de Dom Paulo Evaristo Arns. Primeiro houve a tentativa de realizar a reunião na USP, mas a reitoria não autorizou. Apesar de todos os empecilhos, e embora mais de 800 trabalhos inscritos não tenham sido apresentados, por estarem os seus autores proibidos de participar, a reunião teve grande sucesso e repercussão. Foi a nossa primeira reunião no exterior, pois sendo a PUC território do Vaticano, os militares não puderam coibir a realização do evento.

    Não podemos esquecer ainda de eventos lamentáveis para a ciência brasileira, como o Massacre de Manguinhos, termo cunhado por Herman Lent, um dos dez pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que tiveram seus direitos políticos cassados pela ditadura. Lent, que foi um dos fundadores da SBPC, publicou um livro sobre o episódio, e os cassados da Fiocruz foram reintegrados à instituição em agosto de 1986, com o retorno da democracia.

    Os diretores e presidentes da SBPC durante o regime militar foram exemplos de determinação, coragem e dignidade em defesa das liberdades democráticas, por entenderem que somente em um ambiente livre pode a ciência evoluir. Carolina Bori, que foi a primeira mulher a presidir a SBPC, de 1985 a 1989, depois de ocupar outros cargos na diretoria, teve um papel fundamental para o desempenho da entidade, principalmente nos anos de resistência das sociedades científicas à ditadura militar entre 1973 e 1977. Mesmo sob as tensões do período, ela foi uma das responsáveis por organizar e dar condições que transformaram as reuniões anuais da SBPC em um espaço de resistência ao sistema, com participação de intelectuais e cientistas, a favor da redemocratização do país e na defesa dos direitos humanos.

    Oscar Sala, que presidiu a SBPC por três mandatos durante a ditadura militar, desempenhou um papel fundamental na defesa dos interesses da comunidade científica e dos princípios da democracia. Seu lema de atuação sempre foi o desenvolvimento da ciência em São Paulo e no Brasil. Dizia que nunca se ligara a partidos políticos, nem pertenceu à esquerda ou à direita, o que facilitou a mediação com os governos militares em defesa da produção científica. Sua postura era moderada, porém sempre firme em defesa dos princípios da democracia.

    Além do trabalho na defesa e na divulgação da ciência, a instituição contribuiu fortemente para sua institucionalização e para a formulação de uma política científica nacional. Na Constituinte de 1986, por exemplo, ela teve atuação destacada na defesa dos três espaços nacionais - terrestre, aéreo e subsolo; na proteção ao meio ambiente; na defesa do direito de todos à saúde e à educação; nos direitos das populações indígenas; e na responsabilidade do Estado em promover o desenvolvimento científico e tecnológico.

    Sempre presente em momentos históricos, a participação política da SBPC se manteve nos anos 1980 e 1990, induzindo a realização de vários estudos sobre a anistia e manifestando-se pela renúncia do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Com a ampliação dos espaços de manifestação democrática, a SBPC continua a participar das lutas sociais sobre temas como a criação do Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, Plano Nacional de Educação (PNE), além de denunciar junto à sociedade e ao governo a precariedade do sistema educacional e os empecilhos que ainda emperram a atividade científica no Brasil.

    Desde o fim da ditadura, em 1985, o Brasil ganhou outros ares, mas muitas entidades ainda lutam para construir, ampliar e consolidar a democracia, e não permitir que, nunca mais, um regime de exceção, censura e cerceamento às liberdades se instale no país. A SBPC certamente sempre estará nesta luta, pois entende que o exercício do desenvolvimento da educação e da ciência só pode progredir em um ambiente social e político de plenas liberdades democráticas.

     

     

    Helena B. Nader é biomédica, professora titular da Escola Paulista de Medicina - Universidade Federal do Estado de São Paulo (EPM-Unifesp), e presidente da SBPC.