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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo June 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200011 

    ARTIGOS
    APRESENTAÇÃO

     

    Futebol, ciência e cultura

     

     

    Bernardo Buarque de Hollanda

     

     

    Não é casual que os dossiês dedicados a futebol em periódicos acadêmicos e em revistas de divulgação científica costumem aparecer de quatro em quatro anos. A motivação tem por epicentro, é claro, a realização da Copa do Mundo, torneio quadrienal organizado pela Fifa desde 1930 e competição futebolística que se consagrou como megaevento de escala planetária nas últimas décadas.

    De modo regular, a cada quadriênio, a universidade é provocada, é instada a pensar sobre esse fenômeno global que catalisa corações e mentes, durante trinta dias corridos, entre os meses de junho e julho do ano. Espectadores e telespectadores dos diversos quadrantes do mundo voltam-se então para o acompanhamento dos jogos do torneio.

    Sondagens midiáticas afirmam que cerca de um terço do globo assiste a partida final de um Mundial, em frente a um aparelho de televisão, em casas, em bares ou em espaços públicos. Esse é apenas um indicador, entre tantos, que permitem comprovar a sua magnitude contemporânea.

    Um levantamento da produção bibliográfica sobre futebol, no Brasil e fora dele, corrobora o interesse de revistas acadêmicas em tratar do tema durante a voga desses anos especiais. Trata-se de compreender e explicar, para não dizer de decifrar, o que torna tão atraente tal modalidade esportiva. O desafio compreensivo e explicativo mobiliza os mais diferentes ângulos de análise - culturais, políticos, sociais, econômicos e até psicológicos - a fim de dar conta da latitude e da longitude do fenômeno.

    No caso brasileiro, o fato torna-se ainda mais acentuado em 2014, porque o Brasil protagonizará uma dupla encenação, dentro e fora de campo. Eleito em 2007 pela Fifa à condição de país-sede pela segunda vez na sua história, fato sucedido a poucos países no mundo - a exemplo de França, Itália, Alemanha e México - o Brasil terá a obrigação moral de encenar, nos gramados, o chamado beautiful game. E também de vencer, digase de passagem...

    Conforme se sabe, desde a segunda metade do século XX, o Brasil consagrou-se em âmbito internacional como "o país do futebol". Mais precisamente a partir dos anos 1930, seu estilo de jogo passou a caracterizar-se como virtuoso, criativo e surpreendente, uma espécie de segunda natureza do homem brasileiro. Tal imagem é acionada com frequência desde então, e de maneira às vezes um tanto estereotipada, sempre que se fala da única seleção nacional cinco vezes campeã mundial.

    Em paralelo à expectativa dentro das quatro linhas, há um jogo tão ou mais difícil de vencer: a organização do torneio. A dificuldade de organizar um evento hoje tão complexo e intricado pode ser aferida no debate que ocorre no país. Ele tem por base as obras de infraestrutura realizadas nas doze cidades que abrigarão a competição da Fifa.

    O crescente rigor das exigências dessa entidade, através de um Caderno de Encargos imposto ao país-sede, tem colocado em discussão o suposto "legado" esportivo e social desse megaevento. Destaquem-se, em particular, as obras destinadas a modernizar os estádios brasileiros, a proporcionar a mobilidade urbana, a aumentar a capacidade da rede hoteleira, a prover a segurança do evento com tecnologia de ponta, a permitir a renovação infraestrutural dos seus aeroportos e a ativar o mercado da construção civil.

    O altíssimo custo de tais obras fez com que os meios de comunicação colocassem em foco se se tratava mesmo de um investimento ou, a bem dizer, de um gasto, assaz oneroso. A atuação do Estado brasileiro, com o empenho do bem público financeiro em obras esportivas destinadas a um megaevento privado, promovido por uma entidade transnacional com sede na Suíça, a Fifa, está no centro da divisão entre aqueles que se colocam a favor e aqueles que se manifestam contra o evento no país.

    Se o modelo de parceria público-privada, conhecida pela sigla PPP, era considerada a ideal pelos gestores esportivos e pelos organizadores do empreendimento, a triplicação dos custos para reformar as arenas - o Maracanã, por exemplo, saltou de US$ 200 milhões no início para US$ 600 milhões ao final - contribuiu para a atmosfera insurgente contra o governo brasileiro. Tal insurgência tornou-se mais contundente durante os protestos populares ocorridos desde 2013, no contexto da Copa das Confederações e na esteira das manifestações contra o aumento dos preços das passagens de ônibus nas principais capitais brasileiras, em fatos que abalaram e convulsionaram o país.

    Às vésperas do início do torneio, pois, é essa ambiência crítica e cética que ronda boa parte do Brasil. Embora as propagandas televisivas projetem a imagem de uma nação unanimemente voltada para o futebol, pode-se relativizar, em parte, essa suposta unanimidade futebolística, fomentadas pelas dúvidas sobre o real legado do Mundial para o Brasil, em especial sobre os benefícios efetivos para o país com o erguimento das multimilionárias arenas.

    De fato, o apelo popular dessa modalidade esportiva pode ser observado no dia a dia do país, com as conversas regulares entre os cidadãos brasileiros a respeito dos jogos e, principalmente, pelo interesse dos mesmos nos "clubes do coração", indicando um modo de sociabilidade constitutivo do etos nacional.

    Nãoobstante,ofutebolnãoéapenasmotivodeconsenso.Veículo identitário, esse esporte reflete a estrutura dos conflitos presentes na sociedade brasileira. A Copa é, assim, um momento privilegiado para que tal dimensão conflitiva venha a aflorar, sobretudo em se tratando de um ano de Mundial sediado no Brasil.

    *

    É assim, em muito boa hora, que a revista Ciência e Cultura teve a iniciativa de dedicar o espaço de seu Núcleo Temático para tratar das práticas e das representações, tanto consensuais quanto contraditórias, que povoam o imaginário do futebol brasileiro.

    Ao selecionar os professores e pesquisadores para participar deste Núcleo, tivemos a preocupação de atender às linhas mestras preconizadas pela editoria da revista: valorizar a perspectiva interdisciplinar no tratamento de um assunto polissêmico e ressaltar a importância da diversidade regional no vínculo institucional dos convidados.

    Junto a essas diretrizes, procuramos dar importância também, na seleção dos textos, à apresentação das múltiplas abordagens possíveis, conquanto inesgotáveis, sobre o futebol. Nosso intuito era não resvalar para o monotemático e imediato interesse pela Copa do Mundo, nem tampouco restringir o enfoque às performances do profissionalismo de alto rendimento. Se o Mundial é o ponto de partida, centelha que anima nossa reflexão, estamos longe de nos cingir ao megaevento nos sete artigos enfeixados neste Núcleo Temático, como se verá na apresentação a seguir.

    O dossiê principia com o artigo do historiador Luiz Carlos Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade, Ribeiro tem uma contínua produção na área, com experiências de pesquisa na França e com concentração de interesse na análise dos efeitos da globalização na prática futebolística contemporânea.

    No capítulo ora apresentado, o autor dedica-se a avaliar os impactos político-sociais dos megaeventos esportivos, incluindo os Jogos Olímpicos, no Brasil. A moldura institucional dos esportes é abordada por meio da dissecação dos jogos de poder e das redes de relação entre agentes e entidades representativas, a saber: Fifa, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o Comitê Olímpico Internacional (COI), o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e o Ministério dos Esportes, entre outros.

    A escolha das fontes examinadas por Ribeiro - relatórios de empresas de consultoria, livros de especialistas estrangeiros, documentosoficiais de governo - é estratégica.Ela permiteendossar a crítica do autor à ausência de transparência, bem como ao excesso de verticalização no modo como os organizadores e patrocinadores conduzem a centralizada gestão internacional dos jogos.

    Em seguida, o segundo artigo vem assinado por um sociólogo de origem mexicana, que se encontra no Brasil desde agosto de 2013, para desenvolver uma pesquisa de pós-doutorado, em uma espécie de acompanhamento etnográfico dos preparativos para a realização da Copa de 2014. Doutor em sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Fernando Segura Trejo estudou na França um projeto de integração social intitulado Homeless World Cup.

    O torneio, surgido em 2003 e idealizado por organizações não governamentais que atuam em rede global, procura valer-se do futebol como um mecanismo de visibilidade para uma questão ao mesmo tempo humanitária, filantrópica e social: os sem-teto. Em paralelo ao grande evento midiático, esta organização procura incluir desabrigados, moradores de rua e toda sorte de desvalidos, em situação de risco ou vulnerabilidade. A estes é proporcionada, por meio do esporte, a contrapartida de uma reintegração paulatina à sociedade e à cidadania.

    Em seu artigo para o presente dossiê, Trejo apresenta não apenas o projeto capitaneado pela Football for Hope, mas traça um amplo painel das instituições promotoras de atividades dessa natureza. O quadro inclui as ações desenvolvidas por órgãos congêneres no próprio Brasil, cujo interesse se potencializa com a aproximação do Mundial de 2014.

    Os dados afiguram-se surpreendentes, em razão da quantidade de iniciativas, da amplitude do seu raio de ação e da aderência encontrada entre os participantes dessas edições futebolísticas, que o autor chama de "ferramenta motivacional e educativa", durante os primeiros anos do século XXI.

    O terceiro artigo é de autoria do historiador Victor Andrade de Melo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O professor possui uma das mais impressionantes produções sobre os esportes no Brasil, responsável também pela formação de uma notável geração de pesquisadores na área, que floresceu no Sport — Laboratório de História do Esporte e do Lazer. Uma das grandes virtudes de seu trabalho é situar o futebol em perspectiva diacrônica e comparada.

    A comparação e o contraste histórico se dão não apenas entre as diversas modalidades esportivas, como também entre os diferentes casos nacionais - sobretudo com os países africanos de língua portuguesa, uma de suas últimas frentes de pesquisa - o que permite novas descobertas e gera rendimentos inesperados para esse campo de investigação.

    Aqui, em "Futebol, lazer e práticas lúdicas", Melo desloca a usual escala "macro" de abordagem do futebol, incorporada no interior da onipresente indústria do entretenimento e das mídias espetacularizadas nas grandes metrópoles, para aquilo que chama de práticas lúdicas do cotidiano.

    Sem necessariamente fazer um contraponto maniqueísta entre um e outro, uma vez que o autor não deixa de incluir o videogame, por exemplo, em sua análise, Melo relembra os modos de praticar jogos que derivam de atividades, por assim dizer, desinteressadas.

    Futebol, "futebóis": é no plural e na multiplicidade que se tangencia a brincadeira dos pés com a bola, de que resultam, não obstante, efeitos estéticos mais amplos: pinturas, filmes, livros, obras capazes de situar o tema em planos culturais e artísticos elevados.

    A sequência do Núcleo Temático traz um tópico importantíssimo na relação entre o futebol e as suas potencialidades pedagógicas. Tratase de um olhar voltado para a sociabilidade escolar proporcionada pela educação física. O artigo vem assinado por Sílvio Ricardo da Silva, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Priscila Augusta Ferreira Campos, que atualmente cursa o doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ambos integrantes do atuante Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (Gefut).

    Se o peso da educação física na escola é muitas vezes associado a processos disciplinares do corpo, extraídos de discursos eugênicos, médicos e militares, os autores seguem aqui as sendas históricas da redemocratização brasileira, nos anos 1980, quando emergem novas concepções de seu usufruto. Em particular, Silva e Campos frisam a importância adquirida pelo termo "cultura corporal em movimento", uma acepção mais holística e integradora da criança, do adolescente e/ou do jovem, quer seja com o corpo, quer seja com o ambiente em que este se projeta.

    Apesar das novas possibilidades, os autores, eles próprios professores de educação física, não deixam de ressaltar críticas ao reducionismo com que a área vem sendo tratada nos colégios brasileiros, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio. Silva e Campos criticam a tradicional visão da disciplina, como se se tratasse única e exclusivamente de um passatempo ou de uma recreação, sendo mero confinamento do estudante ao espaço geométrico de uma quadra de ginástica.

    A reprodução naturalizada das diferenças de gênero, as práticas racistas, homofóbicas e sexistas, assim como o advento da chamada "violência nas escolas" são alguns dos temas incontornáveis da sociedade e, por conseguinte, da sala de aula. Seu debate, portanto, deve encontrar abertura e guarida no ambiente escolar - por que não uma aula de educação física em uma biblioteca? - e os educadores devem estar predispostos e capacitados a fazê-lo em seu interior.

    O quinto artigo intitula-se "Futebol, literatura e música: uma análise dos hinos dos clubes brasileiros". Seu autor é Elcio Cornelsen, professor do Departamento de Letras da UFMG e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (Fulia).

    O artigo articula duas das dimensões mais férteis da vida cultural brasileira com o futebol, que Cornelsen chama de chave de leitura para a interpretação da sociedade e do Brasil. O ponto articulatório entre a literatura e a música encontra-se nos hinos marciais e populares dos clubes de futebol brasileiros, que surgiram nas primeiras décadas do século XX. É esta a fonte primordial em torno da qual o professor examina como o literário e o musical se instilam no imaginário futebolístico e na ritualística esportiva.

    No capítulo, o autor contrapõe, a título de análise sintática e semântica dos versos hínicos, duas das principais canções associadas ao Fluminense Fooball Club (1902), ao longo da sua história. O primeiro, de 1915, composto pelo escritor Henriques Coelho Neto, imortal da Academia Brasileira de Letras, e o segundo, do início da década de 1940, de autoria do compositor Lamartine Babo, um dos grande mestres de marchinhas carnavalescas no país.

    O sexto artigo tem por autor Sérgio Settani Giglio, doutor em educação física na Universidade de São Paulo (USP), integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens/USP) e também coordenador de um dos sites mais instigantes dedicados à difusão e à reunião de conhecimentos sobre futebol, o Ludopédio (http://www.ludopedio.com.br/rc/).

    O artigo aqui apresentado, "Muito mais do que um jogo: os embates entre o COI e a Fifa pelo controle do futebol olímpico", traz um olhar surpreendente acerca da Seleção Brasileira, ao observá-la sob o ângulo da participação do país nas Olimpíadas. Ao contrário das Copas do Mundo, a equipe do Brasil nunca se sagrou campeã em Jogos Olímpicos.

    Tal "fracasso" futebolístico, para país com tamanha reputação na modalidade, contribui para fazer cair por terra as visões naturalizadoras e essencialistas acerca da inata habilidade e da suposta superioridade do jogador brasileiro.

    Giglio investe, assim, nos aspectos organizativos do futebol, com uma grande contribuição à história política deste esporte. Duas das grandes instituições multimilionárias e monopolistas, que controlam os direitos esportivos na contemporaneidade, são postas frente a frente: a Fifa versus o COI.

    O olhar atento do pesquisador acompanha os embates institucionais em torno da definição dos termos "amadorismo" e "profissionalismo", a fim de entender as disputas pelo controle do futebol ao longo do século XX. Um de seus pontos críticos são os Jogos Olímpicos de Amsterdã, em 1928, quando as querelas entre amadoristas e profissionais levaram a Fifa a uma secessão, que culminou na idealização e na realização da primeira edição de uma Copa do Mundo, a do Uruguai, em 1930.

    À leitura, pois!

     

     

    Bernardo Buarque de Hollanda é professor-adjunto da Escola de Ciências Sociais, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e pesquisador do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil na mesma instituição (CPDOC). Ele é editor da revista Esporte & Sociedade. Email: bernardobuarque@gmail.com