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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo jun. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200015 

    ARTIGOS
    FUTEBOL/ARTIGOS

     

    Futebol e a educação física na escola: possibilidades de uma relação educativa

     

     

    Silvio Ricardo da Silva; Priscila Augusta Ferreira Campos

     

     

    O futebol é algo muito presente em nossas vidas. Mesmo não sendo praticante da modalidade é quase impossível no Brasil, ficar alheio ao esporte bretão. No nosso cotidiano, nos deparamos com notícias que variam entre lances de jogo até a vida pessoal de alguns jogadores, vinculadas nas diversas mídias; produtos esportivos (uniformes, revistas, aplicativos, jogos online, videogames, miniaturas de estádios etc) são comercializados para atender ao diversificado mercado de consumidores, além de produtos habituais que levam a marca do time do coração; em ambientes públicos e particulares há comentários e trocas de opinião sobre os jogos dos campeonatos disputados no Brasil como também dos jogos disputados em campos particulares, quadras alugadas em reunião com os amigos (as tradicionais peladas), sobretudo em dias anteriores e posteriores às disputas. Além disso, quem nunca fez "corpo mole" para cumprir uma tarefa, "tirou o pé da dividida" ao perceber que não teria êxito na situação, "embolou o meio campo" por não conseguir expressar sua ideia de forma que todos a entendessem ou "pisou na bola" com alguém de quem se gosta, enfim, essas são apenas algumas das expressões corriqueiras do futebol brasileiro presentes em nosso vocabulário. Também é comum ouvirmos o jargão que "somos duzentos milhões de técnicos de futebol", ou seja, todos se veem na condição e direito de opinar sobre escalações e sistemas táticos dos seus respectivos times, bem como os destinos do futebol no Brasil. Assim, podemos perceber que são inúmeras as situações em que o futebol se faz presente em nossa sociedade e, na maioria das vezes, nem nos atentamos para isso, por ser algo naturalizado em nossa cultura.

    Para o antropólogo Roberto DaMatta, um dos primeiros estudiosos do futebol no âmbito das ciências humanas e sociais, "o futebol praticado, vivido, discutido e teorizado no Brasil seria um modo específico, entre tantos outros, pelo qual a sociedade brasileira fala, apresenta-se, revela-se, deixando-se, portanto descobrir" (1). Além disso, constitui-se como referência de lazer para as várias classes sociais, nas diversas regiões brasileiras, independente do gênero e da idade, seja no âmbito da prática ou como torcedor. O futebol apresenta-se, assim, como um fenômeno social, não só no Brasil, mas em muitos países, fazendo dele um dos esportes mais populares no mundo. Inclusive, os registros apontam que existem mais países filiados à Fédération Internationale de Football Association (Fifa) do que à Organização das Nações Unidas (ONU).

    Na atualidade, este esporte tem o seu espaço em nossa sociedade ampliado, pois se trata de ano de Copa do Mundo e, como tal, há uma maior cobertura sobre o evento. Entretanto, isso ainda se dá de maneira mais enfática, sobretudo, pela realização, em território nacional, da Copa do Mundo da Fifa Brasil 2014, a partir de junho. Indubitavelmente, um megaevento como uma copa do mundo de futebol gera mudanças no país-sede, por conseguinte nas cidadessedesqueprecisamse preparar para recebere operacionalizar tal evento, produzindo impactos nas áreas da economia, política, geografia, turismo, educação entre outras.

    Cabe destacar, que inúmeras análises tanto positivas quanto negativas de cunho econômico, social, político, urbanístico, geográfico, entre outros, vêm sendo feitas sobre esse, que é o maior evento de futebol do mundo. Essa constatação nos leva à percepção de que o futebol não é apenas um esporte (entendido como um conjunto de regras, organizado em federações, com calendário próprio e corpo técnico específico - jogadores, administradores e público assistente), ele é muito mais, já que faz conexões históricas com temas e dilemas sociais, o que nos leva a inferir que deveria estar presente de maneira reflexiva no cotidiano escolar, principalmente nas aulas de educação física. No entanto, isso não ocorre na grande maioria das escolas devido ao entendimento do que venha a ser a disciplina curricular educação física e o futebol enquanto conteúdo desta disciplina.

    Ao longo de sua constituição como disciplina escolar, a educação física sofreu grandes influências do discurso médico e militar, atendendo a uma ideologia de Estado para o desenvolvimento da aptidão física e de formação para o trabalho. Assim, vinculou-se a ideia de que a sua prática pedagógica deveria ser realizada por meio de exercícios físicos, nas quadras das escolas, de maneira a garantir o desenvolvimento integral da criança no que tange às habilidades motoras básicas de cada faixa etária, o domínio cognitivo e o afetivosocial. Nesse entendimento, não havia uma preocupação sobre a discussão política, social e histórica em relação ao conteúdo proposto, mas sim, sobre a melhor técnica corporal para a execução dos movimentos, isto é, um saber fazer corporal. No que tange ao objeto de ensino, a ação limitava-se às atividades físico-esportivas e recreativas.

    Tal concepção foi hegemônica até o final da década de 1980, já que, nessa época, um grupo composto por seis professores foi pioneiro ao se reunir para propor outra possibilidade de entendimento sobre a educação física escolar, calcado no termo cultura corporal de movimento. Nessa perspectiva, o conteúdo se amplia para os jogos e brincadeiras, lutas, ginástica, dança e, também, o esporte. Para essa concepção, o movimentar humano é compreendido como construção de dado tempo e espaço, apreendido simbolicamente por meio dos sentidos e significados construídos pela cultura. Assim, não basta apenas executar determinado gesto técnico com a maior precisão, mas também compreender como as formas simbólicas são produzidas, transmitidas, recebidas, reproduzidas e transformadas, constituindo um complexo processo de ensino-aprendizagem.

    Nesse sentido, dentro do ambiente escolar caberia à disciplina da educação física "a tarefa de tematizar, de problematizar as manifestações corporais presentes no cotidiano dos/as alunos/as, de apresentar o acervo de práticas historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas, considerando não apenas a sua reprodução, mas o conhecimento de sua historicidade, a problematização, a transformação e a recriação delas" (2). Embora essa afirmação trate especificamente da área de conhecimento da educação física, poderia ser ampliada ao conjunto das disciplinas escolares dentro de suas especificidades. Entretanto, o que vem ocorrendo ao longo dos tempos é que a escola ainda não reconhece o futebol, entendido de forma mais ampla, como uma possibilidade de educação e de formação para a vida social.

     

    AS QUESTÕES DE GÊNERO E RACISMO FICAM DE ESCANTEIO

    Infelizmente, temos percebido que o futebol, enquanto conteúdo da educação física escolar vem sendo tratado no interior da maioria das escolas brasileiras de forma reducionista. Através de constatações cotidianas ou mesmo de trabalhos de pesquisa, vemos que durante as aulas de educação física, o futebol acontece apenas no nível da prática (o fazer pelo fazer), desprovido de reflexões teóricas sobre o saber fazer corporal ou sobre as referidas conexões sociais que permite e vivenciado, na maioria das vezes, de maneira sexista, onde é oferecido como atividade apenas ao grupo masculino. Poucas vezes é abordado na perspectiva da cultura corporal de movimento, isto é, como conteúdo cultural que deve ser ensinado pela vivência prática do movimento, como também, refletido, contextualizado e redimensionado. Daolio afirma que "trabalhar com uma prática esportiva nas aulas de educação física é muito mais do que o ensino das regras, técnicas e táticas. É necessário, acima de tudo, contextualizar essa prática na realidade sociocultural em que ela se encontra" (3).

    Ademais, há no imaginário social que todo brasileiro sabe jogar bola e toda brasileira sabe sambar. Não à toa, parte dos meninos quando nascem são presenteados com uma bola e/ou um objeto que represente o clube de seu pai, a recíproca não é verdadeira para as meninas. Assim, meninas e meninos têm seus corpos e gostos construídos de forma distinta, por meio do processo de transmissão cultural, incorporando uma determinada estrutura social que influi em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se inclinem a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo consciente.

    Nesse sentido, como a bola é apresentada ao menino desde cedo e o pé é a parte do corpo apresentada para essa interação, o ato de chutar, correr, driblar é aprendido e apreendido desde cedo (diferente das meninas que são estimuladas aos movimentos de quicar, arremessar, lançar, rebater, e carregar a bola, dotando-a de outros sentidos, que não o futebol). Também faz parte da realidade da maioria dos meninos ser matriculados, desde cedo, em escolinhas de futebol com a perspectiva de se tornarem jogadores profissionais. Além disso, muitos acompanham os jogos de suas equipes do coração e ouvem as análises de jornalistas e comentaristas "especializados" sobre técnica e tática. Esses fatores, aliados a outros, faz com que o futebol no contexto escolar seja esvaziado de conhecimento e importância, uma vez que, o grupo ao qual ele foi historicamente oferecido tem, em outros espaços, a possibilidade de aprendizagem e formação desse conteúdo e, às meninas, imputa-se uma dificuldade de mediação, gastando, muito tempo da aula na tentativa de organizar uma prática. De forma que, no país do futebol, há pouca reflexão e sistematização da prática pedagógica sobre o futebol.

    Mas... Como pode a escola e a educação física escolar ficarem alheias às discussões sobre a organização e realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil? Temos acompanhado pelos meios de comunicação que a população brasileira vem se manifestando de maneira favorável ou desfavorável em relação a tais feitos, mas... e a escola, como tem mediado o debate com seus alunos?

    Como ficar alheios à questão da violência que acontece na sociedade e no futebol, que atinge principalmente os jovens? Vimos na última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol, de 2013, série A, cenas de violência nas arquibancadas; temos presenciado constantemente notícias sobre conflitos entre grupos de pessoas que se denominam torcedores sejam de clubes rivais e até do mesmo clube, conflitos esses que vêm tirando a vida de muitos jovens e cujos posicionamentos jurídicos geram ações que influenciam na dinâmica da partida do futebol, tais como perda de mando de campo, criação do Estatuto do Torcedor, cadastramento do torcedor organizado, investimento em câmeras de segurança nas imediações do estádio o que leva os conflitos para as áreas periféricas, onde o controle e a segurança são pífios.

    E como não problematizar a homofobia e o sexismo existentes no futebol brasileiro? No estádio há um reconhecimento tácito de que o homem pode chorar e se emocionar pelo seu clube e abraçar o colega ao lado (mesmo que não o conheça) no momento da comemoração do gol. Entretanto, não há questionamentos sobre o fato de o futebol ser um dos poucos espaços da sociedade onde os homens não podem se manifestar sobre outra opção que não seja a heterossexual. Violências simbólicas são cometidas com permissividade e isso também não é tema de reflexão. Comumente vemos nas escolas as quadras de futebol serem entregues aos meninos, enquanto às meninas é reservado um espaço periférico para jogarem queimada, vôlei ou qualquer outra coisa, quando não são convidadas a assistirem os meninos jogarem futebol e torcerem durante as aulas de educação física ou nos momentos em que a bola é oferecida à turma para o preenchimento de horário das aulas cujos professores estão ausentes. Também não se dá atenção ao menino que não quer jogar futebol ou a menina que tem desejo em aprender as habilidades do jogo, ambos, muitas vezes, são estereotipados pelo grupo escolar.

    Não merece atenção por parte da educação física escolar os fatos racistas que acontecem, sobretudo nos campos de futebol europeus? Já no Brasil, tal prática não ocorre explicitamente como na Europa, mas de forma velada quando se alimenta o mito que o bom jogador é nascido e criado nas periferias das cidades e o bom dirigente precisa ter conhecimento específico para administrar o clube e seu patrimônio.

     

    DRIBLANDO OS BASTIDORES E AS TÉCNICAS DE JOGO

    E as altas cifras que envolvem o futebol, trazendo aos jovens a ilusão de que podem enriquecer da noite para o dia e terem os mesmos privilégios materiais e imateriais que seus ídolos? O que se sabe sobre a realidade profissional dos atletas? Não seriam esses, temas a serem abordados nas aulas de educação física escolar, para além do ensino (quando acontece) das regras e técnicas?

    Outro tema pouco abordado refere-se às táticas de jogo. Será que todos os estudantes reconhecem em campo os esquemas táticos praticados pelas equipes e o que significam? Será que tal conhecimento é adquirido durante as transmissões das partidas quando a emissora, para apontar a escalação da equipe, exibe a foto dos jogadores e a posição que ocupam no campo, eximindo da educação física esse conhecimento?

    Os conhecimentos sobre a fisiologia do corpo de um esportista, bem como as formas de treinamento são, também, negligenciados nas aulas. Quais mudanças físicas e fisiológicas ocorrem em nosso corpo quando praticamos exercícios físicos regularmente? E quando isso ocorre em situação de alto rendimento, há diferenças? Isso não é ensinado na escola.

    Alguns professores se vangloriam por apresentar a história do futebol em suas aulas. Para eles, narrar o episódio do mito fundador Charles Miller basta. Mas... e a história que não se conta? A história dos clubes, das instituições centenárias, do time tradicional do bairro, de suas respectivas torcidas? O que se sabe sobre isso? Seria a internet a principal fonte de informação sobre esses dados?

    E o que dizer sobre os ofícios que envolvem o futebol? Para além dos jogadores, comissão técnica, árbitros e dirigentes, quais outras profissões (diretas e indiretas) permeiam o universo do futebol? Qual a divisão social do trabalho envolvida nessas profissões?

    Em nenhum momento deste artigo negamos a vivência prática deste conteúdo no ambiente escolar. Muito pelo contrário! Mas passar todos os anos da educação básica considerando-o apenas como um jogo ou "tapa-buraco", desprovido de maiores reflexões sobre tudo que essa prática envolve é um equívoco. Nosso esforço é para que ele seja entendido como uma prática pedagógica e que, como tal, precisa de planejamento, conhecimento e recursos materiais e audiovisuais.

    Outro equívoco é entender que os únicos espaços possíveis para que se desenvolvam as aulas sobre futebol na escola, principalmente na educação física, sejam as quadras, os campos ou os pátios. Outros espaços também possibilitam metodologias diversas. A sala de aula, por exemplo, também pode ser um espaço para que essas aulas aconteçam, não só em dias de chuva, como comumente ocorre. Que tal utilizarmos as mesas da cantina para uma partida de futebol de prego, ou desenhar uma quadra no chão do corredor para as aulas sobre futebol de botão. Quem sabe a biblioteca para procurarmos poemas, pinturas e reportagens sobre o próprio futebol ou temas afins. Talvez a sala de informática também fosse possível para conhecermos as possibilidades do futebol virtual (existe até campeonato brasileiro dessa modalidade, sabia?). Não devemos nos esquecer dos espaços externos à escola para visitas a museus, estádios, clubes, federações para que se aprenda as diversas possibilidades de ensino-aprendizagem da cultura corporal do movimento, do qual o futebol é um grande protagonista.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. DaMatta, R.; Neves, L. F. B.; Guedes, S. L.; Vogel, A. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

    2. Richter, A. C. "Dos lugares do esporte nas aulas de educação física: algumas possibilidades de intervenção pedagógica". Cadernos de Formação RBCE, Campinas, n.1, p.43-56, set./2009.

    3. Daolio, J. Cultura, educação física e futebol. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    Bracht, V. "Educação física: conhecimento e especificidade". In: Sousa, E. S.; Vago, T . M. Trilhas e partilhas: educação física na cultura escolar e nas práticas sociais. Belo Horizonte: Cultura, 1997, p.13-23.

    Coletivo de autores. Metodologia de ensino de educação física. São Paulo, Cortez, 1992.

    Nicácio, L. G. "O torcer no futebol como possibilidade de lazer e a educação física escolar". 127f. Dissertação (mestrado em lazer). Escola de Educação Física, Fisioterapia e T erapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

     

     

    Silvio Ricardo da Silva é professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT/UFMG).

    Priscila Augusta Ferreira Campos é professora licenciada e bacharel em educação física pela UFMG, mestre em lazer (UFMG) e doutoranda em educação física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Faz parte do GEFuT/UFMG.