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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo June 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200021 

    A & E

     

    Abandono, esquecimento e ressurgimento da primeira biblioteca de medicina do Brasil

     

     

    Luana Tieko Omena Tamano; Daniel de Magalhães Araujo

     

     

    Impedida de fundar instituições de ensino superior por 300 anos, a colônia brasileira sofria com a carência de especialistas, como médicos por exemplo. As atividades médicas eram, então, absorvidas por curandeiros, barbeiros, sangradores (1) e outros. Nesse período, como afiança Figueiredo (2), a divisão e, por sua vez, a hierarquia se dava da seguinte forma: médicos, cirurgiões e boticários, cada qual com sua atividade específica. Ao primeiro, caberia medicar; ao segundo, intervir no corpo doente; e, ao terceiro, manipular os medicamentos.

    Com a vinda da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, foi criada a primeira escola cirúrgica, localizada na Bahia, que, em 1813, veio a se tornar academia médico-cirúrgica. Com essa mudança, houve uma maior institucionalização dos cursos médicos, com a reforma e ampliação do programa, bem como a implantação de novas regras, como salienta Lilia Schwarcz (3). Em 1815, ocorreu a primeira reforma do curso, que passou a ter cinco anos de duração ao invés de quatro e mais duas cadeiras, passando de três para cinco (3;4). Ainda segundo a historiadora, em 1829, foi fundada a Sociedade de Medicina, cujo objetivo era consolidar a medicina, de forma a separá-la e distingui-la das atividades desenvolvidas pelos barbeiros, práticos, curandeiros e sangradores. Por meio dessa sociedade é que foi elaborado o novo projeto transformado em decreto em 1832, que transformava as academias médico-cirúrgicas em faculdades de medicina.

    A Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), desde sua fundação, ainda como escola cirúrgica, está localizada no antigo Colégio dos Jesuítas, hoje parte integrante do centro histórico de Salvador. O Colégio dos Jesuítas, antes propriedade da Companhia de Jesus, passou para as mãos da Ordem Secular com a expulsão dos jesuítas do Brasil no final do século XVIII. Já detentora de propriedades localizadas no entorno do colégio, a exemplo da Igreja da Sé e do Palácio Episcopal, a Ordem Secular ampliou seu patrimônio, vindo a ceder o colégio para a edificação da escola cirúrgica, por determinação real (5).

    Pensando as fases pelas quais passou a Fameb, a partir das reformas sofridas, pode-se dividir sua história em quatro etapas: a primeira com sua inauguração em 1808; a segunda com a reforma de 1815, quando deixou de ser escola cirúrgica para se tornar academia médico-cirúrgica; a terceira em 1832 quando passou a ser faculdade de medicina e, por último, em 1946 quando passou a integrar a hoje Universidade Federal da Bahia (UFBA). Como afiança Jacobina (4), na segunda fase é registrada a matrícula de estudantes da primeira fase, ou seja, a reforma de 1815 e suas mudanças fizeram com que alunos de medicina ingressos na primeira fase se rematriculassem, devido às precárias condições de estudo de até então. As melhorias ocorridas com essa reforma foram significativas, porém o curso continuava a ser ofertado em condições precárias.

    A falta de laboratórios, ou quando existentes, deficientes, impediam o ensino prático por parte dos lentes, fazendo com que o ensino fosse eminentemente teórico. Os estudos de anatomia descritiva se ressentiam de cadáveres que, quando não insuficientes, eram impossíveis de serem trabalhados por estarem em estado de putrefação. O médico maranhense Nina Rodrigues (1862-1906), professor da cadeira de higiene e medicina legal da Fameb, já denunciava a situação precária do ensino, afirmando que o ensino de sua própria cadeira era deficiente, haja vista a falta de estrutura para trabalhar, o que legava aos estudantes um ensino prático incompleto (6). Sua memória histórica foi censurada devido ao seu teor crítico. Somente em 1975, por intermédio de Estácio de Lima, é que essa memória foi validada e publicada.

    Percebe-se que, ao longo do tempo, desde sua fundação em fevereiro de 1808, a faculdade foi severamente criticada por seus alunos e professores devido às suas precárias condições de ensino-aprendizagem. Seus memorialistas, a exemplo de Malaquias Álvares dos Santos (4), Nina Rodrigues (6) e tantos outros, denunciaram as deficiências físicas e intelectuais com que tiveram que trabalhar. Mais de 200 anos depois de sua fundação, o legado dessa faculdade é notório, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, por ter formado muitos eminentes médicos para o país, por ter sido produtora de conhecimento com seus esforços de publicações e experimentações e por ser um campo fértil para o conhecimento da história médica do país, observáveis nas documentações existentes em sua biblioteca.

     

    A BIBLIOTECA (7)

    A Biblioteca da Faculdade de Medicina da Bahia reabre suas portas após mais de 40 anos fechadas. O descaso público ocorrido de 1970 a 2003 (quando foram iniciados os trabalhos de salvaguarda) resultou, segundo estimativas da bibliotecária-chefe, Graça Ribeiro, na perda de 55% do acervo total da biblioteca, hoje nomeada Gonçalo Muniz. Em números, estamos falando da perda de cerca de 50 mil itens.

    O conhecimento dos fatos aqui expostos advieram do contato com Ribeiro e sua equipe de trabalho quando da realização da pesquisa de documentos de Arthur Ramos, objeto de estudo de doutorado da co-autora deste artigo. Observação pessoal, diálogos com funcionários, leitura de artigos a seu respeito e pesquisas nos acervos foram os elementos considerados para a confecção do presente artigo que se presta, sobretudo, a divulgar a história da Gonçalo Muniz, chamando atenção para o descaso público e para as dificuldades enfrentadas para funcionar nos dias de hoje.

     

     

    Com a transposição do curso de medicina para o Vale de Canelas, na UFBA, em decorrência da reforma universitária de 1969, a biblioteca encerrou suas atividades em 1970. Uma pequena parte de seu acervo foi levada para Canelas, ficando o restante em suas dependências. Até 2003 suas instalações serviram de moradia para pombos e ratos; além das traças que devastaram parte do acervo existente. Livros, teses, periódicos e demais trabalhos viraram lixo, em meio ao lamaçal encontrado pela equipe que iniciava o resgate da biblioteca. Capitaneados por Graça Ribeiro, chamada a atuar nessa frente pelo então reitor da UFBA, Naomar Monteiro de Almeida Jr., em 2003, um intenso trabalho de salvamento do acervo e memória da biblioteca começou. Contando com o trabalho voluntário do corpo de bombeiros, polícias civil e militar, professores e alunos, foi iniciada a limpeza das dependências da biblioteca que contava com grande acúmulo de lixo, animais mortos e vivos e um lamaçal ao longo do caminho composto pelos livros e demais escritos deteriorados pelo tempo e péssimas (ou inexistentes) condições de abrigo.

    Os materiais em condições de restauração eram recolhidos e alocados em outras dependências da faculdade. Posteriormente, foram catalogados e enviados para a higienização e, em seguida, para a restauração. Esse é o caminho seguido para a devida salvaguarda do acervo. No entanto, esse processo exige tempo e recursos humanos e materiais, de forma que ainda não está concluído.

    Ainda em 2003, o reitor da UFBA foi a Brasília em busca de recursos financeiros que viabilizassem a restauração da biblioteca. O projeto para captação de recursos foi entregue ao então ministro da Saúde, Humberto Costa, que destinou cerca de quatro milhões de reais para a restauração da estrutura física e do acervo bibliográfico. Esse valor foi recebido no final de 2004 e em 2007 já findara. Dessa verba, mais de dois milhões foram reservados para a parte física e um pouco mais de um milhão para o acervo (8). Com esse valor foi possível a criação de uma equipe especializada para as restaurações em vista. A parte física ficou a cargo da Escola Oficina, um núcleo de aprendizagem ligado à Faculdade de Arquitetura da universidade; já o acervo ficou sob responsabilidade da bibliotecária-chefe acima mencionada, e seus poucos funcionários, sendo boa parte deles terceirizados, bolsistas ou estagiários de cursos da UFBA, tal como história e biblioteconomia.

    Todo esse trabalho, iniciado em 2003, findou na reabertura das portas da Gonçalo Muniz em agosto de 2013. Isso significa que foram necessários 10 anos para que a biblioteca fosse devidamente limpa e minimamente estruturada para voltar às atividades a que se presta; e seu acervo reabilitado para uso. Ainda há uma enorme quantidade de materiais a espera da higienização e restauração realizadas no laboratório da própria biblioteca onde outrora funcionou o Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues (dentre tantas outras funções a que se prestou o prédio).

    Hoje, a biblioteca está aberta à comunidade. Boa parte dos frequentadores são jovens que usam seus computadores, via de regra, para acessar as redes sociais. Ainda que a biblioteca seja bem específica em seu acervo - obras de medicina e saúde -, seu espaço está destinado ao estudo, mas não vem sendo, necessariamente, utilizado para este fim. Tal fato, já observado pelos funcionários da Gonçalo Muniz, tem feito a equipe pensar formas de educar seus usuários para o devido uso e importância de uma biblioteca. Infelizmente essa ação social está à espera de recursos financeiros, humanos e de parcerias. Tendo em Acervo dos autores vista a enorme quantidade de materiais a serem higienizados, catalogados, restaurados e postos ao uso, a pequena equipe ressente de tempo e verba. É intenção da equipe, conforme declarou Graça Ribeiro, ter guias para apresentação da biblioteca, instigar a comunidade a usar o espaço devidamente, restaurar as paredes de seu prédio de acordo com o original e digitalizar o material para consulta, entre outras ações.

     

     

    A biblioteca é um patrimônio nacional, que busca reerguer-se depois de longo período de descaso público e total abandono. Boa parte dos materiais foi perdida, para além daqueles destruídos pelo incêndio de 1905, cujas labaredas engoliram também alguns dos laboratórios (Química, Medicina Legal, Bacteriologia e Anatomia Patológica) e a capela dos jesuítas (9). Em relação ao incêndio citado, a atuação de Gonçalo Muniz, hoje homenageado pela biblioteca, merece destaque conforme relembra Octavio Torres, na época estudante da Fameb, ao rememorar o esforço daquele professor para restaurar a biblioteca com a ajuda de doações e compras de novos materiais, o que resultou na aquisição de 8500 volumes, entre livros e teses, ainda em dezembro daquele fatídico ano (6; 8).

    Obras nacionais e internacionais, catálogos, coleções, teses, fotografias e memórias ainda são descobertas cotidianamente no trabalho dos funcionários. Trabalhos como a tese de doutoramento do médico, posterior professor da cadeira de clínica médica e diretor da Fameb, Alfredo Britto, por exemplo, se perdeu; mas ainda é possível encontrar as de Juliano Moreira, um dos pioneiros da psiquiatria no Brasil e também lente da Fameb, intitulada "Etiologia da sífilis maligna precoce" (1891), Nise da Silveira, médica psiquiátrica que lutou pelo fim das formas agressivas de tratamentos, cuja tese abordou a criminalidade das mulheres no Brasil em 1926, mesmo ano da defesa do doutor em ciências médico-cirúrgicas Arthur Ramos, cujo trabalho, "Primitivo e loucura", foi aclamado por especialistas a exemplo de Juliano Moreira, bem como de tantos outros médicos formados por essa instituição. Ainda há as teses da Faculdade do Rio de Janeiro, como as do psiquiatra Henrique Roxo e sua "Duração dos atos físicos elementares nos alienados" (1900) e Arthur Neiva, dedicado ao estudioso da higiene no Brasil que concluiu seus estudos com a tese "Da stovenia", em 1905. Estas últimas ainda estão à espera de higienização, mas este trabalho só será iniciado quando concluídas as da Bahia.

    Dentre os trabalhos desenvolvidos pela equipe da Gonçalo Muniz está a catalogação das teses inaugurais, como são referenciadas pela equipe, que são os trabalhos de conclusão do curso de medicina, e das teses de concurso, aquelas defendidas pelos candidatos à docência na Fameb, ambas publicadas na Gazeta Médica da Bahia, revista criada em 1866 e que, entre duas interrupções, desde 2004, mantém circulação ativa (10). Com esse trabalho, é possível saber da existência e preservação das teses, bem como localizá-las, já que apresentam o ano de defesa, nome do autor e título.

    A riqueza desse acervo, com suas preciosidades únicas e originais, encanta os olhos de quem chega até a Gonçalo Muniz; porém não se pode deixar de imaginar o que foi perdido e, com essa perda, o quanto deixamos de saber sobre a medicina, práticas de saúde pública, conjecturas históricas, a utensilagem mental da época, a vida acadêmica, os trabalhos de alunos e professores, produção acadêmica, enfim capítulos da história nacional.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Pimenta, T. S. "Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do oitocentos". In: Hist. Cienc. Saúde -Manguinhos, v. 11, n. suplemento1, p. 67-90. 2004.

    2. Figueiredo, B. G. "Barbeiros e cirurgiões: atuação dos práticos ao longo do século XIX". In: Hist. Cienc. Saúde - Manguinhos, v. 6, n. 2, p. 277-291. 1999.

    3. Schwarcz, L.M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras. 2008.

    4. Jacobina, R. R. et al. "Os acadêmicos de medicina e os 200 anos da Faculdade de Medicina da Bahia (I): Da criação da escola em 1808 à participação na Guerra do Paraguai (1864-70)". In: Gazeta Médica da Bahia, v. 78, n. 1, p. 11-23. 2008.

    5. Suarez, N. A.; Galvo, Y. R. In: "Faculdade de Medicina da Bahia, atualização de uma ideia inovadora". In: Gazeta Médica da Bahia, v. 80, n. 2, p. 22-32. 2010.

    6. Britto, A. C. N. "A Faculdade de Medicina da Bahia na época de Nina Rodrigues". In: Gazeta Médica da Bahia, v. 76, n. suplemento 2, p. 63-79. 2006.

    7. As informações coletadas para esta parte do texto foi colhida em entrevista concedida pela bibliotecária-chefe da Gonçalo Muniz, Graça Ribeiro, em dezembro de 2013, com a devida autorização, somada às leituras das referências aqui indicadas.

    8. Nesse sentido ver Suarez, N; Calvo, Y. "Faculdade de Medicina da Bahia, atualização de uma ideia inovadora". In: Gazeta Médica da Bahia, v.80, n. 2, p. 22-32. 2010.

    9. Rocha, N. M. D. "A Faculdade de Medicina da Bahia no século XIX: a preocupação com os aspectos de saúde mental". In: Gazeta Médica da Bahia, v.74, n. 2, p. 103-126. 2004.

    10. Os números antigos da revista Gazeta Médica da Bahia, a partir de 1885, podem ser encontrados no site da própria revista: http://www.gmbahia.ufba.br/index.php/gmbahia/index

     

     

    Luana Tieko Omena Tamano é historiadora e mestre em história pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é doutoranda em história da ciência pela USP, onde desenvolve pesquisa sobre Arthur Ramos.

    Daniel de Magalhães Araujoé zootecnista, doutor em zootecnia pela Universidade Estadual Paulista (FMVZ/Unesp). Atualmente é professor do Instituto Federal de Alagoas - Campus Satuba, onde realiza pesquisas sobre aquicultura e seu desenvolvimento.