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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo jun. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200024 

    CULTURA
    HISTÓRIA

     

    A Primeira Guerra Mundial pelas lentes do cinema

     

     

    Patrícia Mariuzzo

     

     

    Desde o começo deste ano, em todo o mundo, e especialmente na Europa, uma extensa produção cultural com exposições de artes visuais, festivais de cinema, lançamento de livros etc, volta-se para as comemorações dos 100 anos do início da Primeira Guerra Mundial, conflito que definiu um novo mapa do mundo e que teve consequências ao longo de todo o século XX. Um desses projetos é a exposição "Cinema Europeu e a Primeira Guerra Mundial", um portal on-line que reúne dezenas de documentos históricos e filmes preservados em arquivos e cinematecas europeias de cinema. Coordenado pelo Instituto Alemão de Cinema (DIF, na sigla em alemão) e com a participação de parceiros de 15 países europeus, a exposição faz parte do o "European Film Gateway 1914" (http://exhibition.europeanfilmgateway.eu) que, desde 2012, digitalizou mais de 650 horas de documentários, noticiários, animações e filmes de longa-metragem sobre a Primeira Guerra.

     

    NOTÍCIAS DA GUERRA

    O cinema ainda era uma arte jovem, em 1914, quando começou a Primeira Guerra Mundial. Rapidamente, no entanto, a sétima arte tornou-se uma ferramenta para fazer propaganda da guerra e recrutar soldados. Diferentemente do que nos acostumamos a ver em canais como a rede norte-americana CNN, as cenas retratadas não eram imagens em tempo real. Segundo Felix Schürmann, um dos coordenadores do projeto, proibições de filmagens impostas pelos militares e uma série de limitações técnicas, como por exemplo o tamanho e o peso dos equipamentos, impediam uma cobertura próxima dos combates. Por isso, a ação tinha que ser capturada a partir de um ponto de vista fixo e distante. Mesmo assim, o filme-batalha tornou-se um gênero em si mesmo. Edições mostrando grandes operações de guerra eram imensamente populares com o público de cinema. E, autênticas ou não, essas representações foram largamente utilizadas como ferramentas de propaganda para reforçar as noções de superioridade militar e moral sobre as forças opostas.

    Havia também um tipo de filme especialmente produzido para persuadir as pessoas a financiar privadamente o esforço de guerra e ainda para recrutar pessoal tanto para o front de batalha como para a indústria que surgiu em torno da guerra, como a de munição por exemplo. "A Primeira Guerra Mundial não foi apenas uma guerra sem precedentes em relação ao número de nações e da quantidade de novos equipamentos utilizados, foi também uma guerra de imagens, onde o cinema, uma mídia relativamente nova, foi utilizado pela primeira vez na história para documentar o conflito em larga escala", explica Anette Groschke, da Cinemateca Alemã - Museu de Cinema e Televisão, em Berlim.

     

    PARA O IMPÉRIO

    A Primeira Guerra Mundial também foi o primeiro conflito que envolveu grande parte da sociedade. Um imenso número de mulheres foi trabalhar nas fábricas para substituir o braço masculino, tanto na indústria convencional como na de munição. Para manter o espírito e moral elevados durante as dificuldades da guerra, o cinema representou um meio ideal para influenciar as pessoas. O documentário Fabrication des munitions et du matériel de guerre (Reino Unido, 1916), mostra mulheres, algumas bem jovens, trabalhando na linha de montagem da indústria siderúrgica britânica Vickers que, durante a guerra, fabricava bombas e granadas.

    No mesmo sentido, existiu uma produção cinematográfica especialmente voltada para incentivar os cidadãos europeus a doar dinheiro e outros objetos de valor para pagar os custos da guerra.O documentário inglês Para o império, de 1916, dirigido por George Pearson, mostra soldados cavando trincheiras e a luta na linha de frente. Em seguida, se vê cenas de soldados mortos e cidades destruídas. Na cena final um homem está em uma agência dos correios fazendo uma doação. O filme usa a noção de sofrimento para persuadir o expectador a comprar bônus de guerra, uma espécie de título de investimento com rendimentos baixos, com objetivo de levantar dinheiro para financiar a guerra.

     

    TÉDIO E TECNOLOGIA

    Entre junho de 1915 e novembro de 1917, ocorreu uma série de batalhas entre italianos e austro-húngaros, que ficaram conhecidas como "Batalhas de Isonzo". Elas foram documentadas no filme Isonzói-csata (Áustria-Hungria, 1917) que mostra nitidamente o principal centro de operações da Primeira Guerra, as trincheiras. Eram buracos, de cerca de dois metros de profundidade, onde os soldados permaneciam por dias, em uma guerra que, pela dificuldade de avançar no território inimigo, consistia, em boa parte do tempo, em esperar. Ao mesmo tempo, a vida nas trincheiras era dificílima para os soldados. Exposto ao frio e à umidade, o ambiente das trincheiras acabou por se tornar um criadouro de pragas como piolhos, pulgas e ratos, e propício ao surgimento de doenças infecciosas como a febre tifoide, gripe e leptospirose que resultaram em um número significativo de baixas. Por outro lado, a Primeira Guerra Mundial impulsionou programas especiais para o desenvolvimento de novos armamentos e tecnologias capazes de dar alguma vantagem sobre a estratégia de trincheiras, arame farpado (utilizados para dificultar a movimentação do inimigo) e o deslocamento em cavalos. Gás venenoso, os primeiros tanques, aviões, artilharia moderna, lança-chamas e submarinos foram introduzidos ao longo dos quatro anos do conflito. Essa guerra mecanizada resultou em um número de soldados feridos, aleijados e mutilados em uma escala até então desconhecida na história, além de mais de 16 milhões de mortes.

    O cinema lidou com essas questões de várias maneiras. "Durante a guerra, muitos filmes minimizaram a extensão do sofrimento, mostrando hospitais militares com soldados levemente feridos. La reeducação professionelle des mutileés de la guerre em France (Edmond Dronsart, 1917), por exemplo, retrata o cotidiano de uma escola para soldados com deficiência. Graças a próteses e treinamento especial, os feridos são salvos "do desespero e da solidão", o que dá a eles, e ao público, a expectativa de que seriam capazes de trabalhar e viver quando terminasse o conflito.

     

     

    CINEMA PÓS-GUERRA

    Apenas depois de 1918 as experiências e sofrimento, os custos humanos e morais passam a ser retratados em longas-metragens. "Além de filmes que abordavam explicitamente a morte ou ferimentos na frente de batalha, muitas produções da década de 1920 podem ser lidas como respostas indiretas à experiência de sofrimento relacionado à guerra", escreveu Félix Schürmann, em texto publicado no site do European Film Gateway. De acordo com ele, a guerra serviu também como um pano de fundo para o lançamento de filmes de espionagem, romances e outros filmes do gêneros. Lançado em 1931, Niemandsland foi um dos primeiros filmes que troca o ódio pelo inimigo pelo ódio à guerra em si. Ele conta a história de cinco homens presos em um bunker, onde sua única luta é para sobreviver, independentemente do lado da guerra em que cada um está. Alguns desses filmes usavam imagens de arquivo de noticiários ou filmes de propaganda sobrepostas, a fim de sugerir autenticidade. Em entrevista para a agência de notícias alemã DW (Deutsch Welle), o cientista político alemão da Universidade Humboldt, em Berlim, Herfried Munkler, afirmou que a Primeira Guerra Mundial mostrou o tipo e o grau de violência que assolaria o século XX. Para ele, um especialista na história do período, "foi a Guerra que determinou o século XX. Sem ela não teria havido a Segunda Guerra Mundial, possivelmente não teria havido o nazismo, nem o stalinismo, nem a tomada de poder bolchevique em Petrogrado (hoje São Petersburgo), Rússia". A Primeira Guerra mudou também a história do cinema europeu. A indústria cinematográfica europeia, em plena ascensão antes do conflito, não resistiu à Guerra. Somente cerca de 20% da produção do cinema mudo sobreviveu nas instituições que preservam o patrimônio cinematográfico. Parte desse acervo pode ser livremente acessado por pesquisadores, amantes do cinema e o público em geral. Por meio dele é possível conhecer parte da história da Primeira Guerra e da história do cinema.