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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.2 São Paulo jun. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200025 

    CULTURA
    PROSA

     

    Eternamente em chamas

     

     

    João Silvério Trevisan

     

     

    Versos

    Foi quando parou de chover que pensamos na vida. Sobre o teto de vidro, a luz do sol luzia de modo muito real. Por alguns segundos, lembramos tudo. Descemos em vôo rasante, de máquina leve. Havia algo revelado naquela luz e naquele dia. Algo vertido no pequeno suspiro que os raios previsíveis provocaram em nós. Onde estaríamos, então? Olhamos. Onde teríamos procurado a dor, para perdê-la assim tão maculada? Olhamos. E foi nesse olhar, vertido ali no meio dos gestos de dor, que a nostalgia da vida se revelou e baixou, como essas flores de paina que caem em certas manhãs de primavera, grávidas de sonhos de bonança. A lógica roçava nossa janela, vago acaso. Tínhamos nos despedido da dor e, assim, aquela abstração sem sombras abandonava nossas peles, como um perdão do alto, ausente de nós, suprema absolvição. Olhamos. Tanta, tanta dor, que diante dela só se podia esquecer a pequenez do fim. Sofrer assim, de modo glorioso como uma bênção. Olhamos. Querer ser banhado pela bênção, depois da qual vem a plenitude. Abraçamos e demos beijos e nos deixamos soltar porque tudo, depois daquilo, devia sumir. Dor-limite. Olhamos. Como uma dessas danças que eclodem subitamente no meio da manhã e parecem efêmeras, por causa da fragilidade da manhã. Sofrer era estar mergulhado nessa manhã imperfeitamente móvel. Sofrer com a consciência apagada. Olhamos. Como se fôssemos tudo, sem aqueles braços. E aqueles gestos fossem, além de tantos, passageiros. Que passem. Olhamos. Que tudo se infle e passem gestos tão fortes. Estes. Olhamos, soprando ventos e elementos, inclusive os mais claros elementos ausentes naquela manhã. A claridade que nos envolvia era dispensável para esse toque sem fim que sempre desejáramos na dor. E os raios do sol despejavam-se como genitores da manhã, dançando sobre o efêmero, ali bem sobre nossas cabeças, dentro dos nossos corações confiantes. Vivemos horas de equilíbrio. Pedimos um ao outro mais beijos e mais abraços desdentados, menos do que poderíamos suportar. Depois, quisemos distância, liberados dos nossos abraços. Desistimos. Era como se tivéssemos encoberto algo que, parecendo sempre tão revelado, lentamente mergulhava estranho. Nenhuma certeza. A partir daquele instante, os raios de sol encolheram e se desfizeram. Não mais olhamos. Não mais nos beijamos, mordemos ou rolamos no descompasso dos corpos. A casa parecia agora vertida em jatos de água, cachoeira refrescante despencando e escorrendo em tudo. Nós continuávamos no mundo, enquanto abandonávamos o coração de tudo. Aquela cama e os lençóis despencavam num abismo definitivo, próximo, cada vez mais próximo, mas também sem transparência, muito longe dali, profundamente longe, nossa secreta revelação. Por entre o despejar líquido dos elementos e os sussurros de dor que de tão frágeis tanto mais se ouviam, nós suplicamos um ao outro: "Tira logo o revólver da boca, com os diabos. E dispara uma só vez." Fez-se então noite. Éramos mortais.

     

    Reversos

    Foi quando começou a chover que ele pensou na máquina. Sobre o teto clandestino, o som da morte repercutia por alguns segundos. De modo irreal, esqueceu tudo. Alçou um vôo pesado, de chuva rasteira. Havia algo de plástico naqueles sons e naquele sobressalto. Algo provocado na pequena noite que os pingos inesperados embutiram nele. Onde estaria, então? Pensou. Onde teria ele procurado a mácula, para encontrá-la assim tão sem amor? Pensou. E foi nessa nostalgia, intrometida ali no meio dos gestos de verão, que o pensar na morte se introduziu e flanou, como esses flocos de tempestade que pairam em certas tardes de amor, grávidos de presságios de paina. A lógica batia à sua porta, com um absurdo irretocável. Ele tinha recém-encontrado o pecador e, no entanto, aquela mancha escura se introduzia sob seu pecado, como um amor muito profundo, quase parte dele, suprema pele. Pensou. Tanta, tanta grandeza, que diante dela só se pode evocar o fim do amor. Mortífero assim, como a peste de amar. Pensou. Querer subsistir, depois de ser tomado pela peste. Apertou e deu beijos e se deixou existir porque nada mais, depois daquilo, devia abraçar. Limite do amor. Pensou. Como uma dessas noites que a gente ouve subitamente, no meio da balada, e parecem eternas, por causa da amplidão da balada. Estar imóvel era amar nessa noite perfeitamente suspensa. Estar imóvel no fogo da consciência. Pensou. Como se ele fosse para sempre braços, entre aqueles únicos. E aqueles únicos fossem, além de gestuais, permanentes. Que nunca permaneçam. Pensou. Que o resto se acabe e só se dissolvam únicos assim tão frágeis. Aqueles. Pensou, sugando os ventos e a noite, até mesmo a mais secreta noite presente naqueles elementos. O amor que o envolvia era necessário para dar esse toque terminal que sempre desejou na escuridão. E os pingos da noite caíam como que filhos da chuva, tamborilando no seu coração estupefato, ali bem sobre sua cabeça, dentro do absoluto. Viveu um instante de beijos e abraços e dentadas. Pediu mais euforia, mais do que poderia suportar. Depois, quis ser esmagado, abraçado para sempre nos apertos. Descobriu. Era como se tivesse insistido em algo que, parecendo sempre tão familiar, repentinamente emergia velado. Um pensamento, enfim. Teve certeza. A partir daqueles pingos, o instante se encorpou e multiplicou. Não mais beijou, mordeu, rolou. Pensou nos corpos em sinfonia. Os jatos pareciam agora atingidos pelo fogo da casa, extensão ardente caindo e escorrendo em toda sua lava. Ele não mergulhava mais no coração de tudo, enquanto estava no mundo. Aquele âmago e os lençóis flutuavam num espaço indeterminado, distante, muito distante, mas também transparente, sem nunca ter saído dali, profundamente ali, sua secreta cama. Por entre os gritos flamejantes dos elementos e o ataque de amor que de tão intenso até suplicava, ele ouviu: "Mete logo a eternidade em tua boca, pelo amor de Deus. E dispara todo o revólver." Fez-se então o eterno. Ele era enfim uma grande luz.

     

    Perversos

    Foi quando começou a chover que eu pensei na morte. Sobre o teto de plástico, o som da chuva repercutia de modo irreal. Por alguns segundos, esqueci tudo. Alcei um vôo rasteiro, de máquina pesada. Havia algo clandestino naqueles sons e naquela noite. Algo embutido no pequeno sobressalto que os pingos inesperados provocaram em mim. Onde estaria eu, então? Pensei. Onde teria procurado o amor, para encontrá-lo assim tão sem mácula? Pensei. E foi nesse pensar, intrometido ali no meio dos gestos de amor, que a nostalgia da morte se introduziu e flanou, como esses flocos de paina que pairam em certas tardes de verão, grávidos de presságios de tempestade. O absurdo batia à minha porta, com uma lógica irretocável. Eu tinha recém encontrado o amor e, no entanto, aquela mancha escura se introduzia sob minha pele, como um pecado muito profundo, quase parte de mim, supremo pecador. Pensei. Tanto, tanto amor, que diante dele só se pode evocar a grandeza do fim. Amar assim, de modo mortífero como a peste. Pensei. Querer ser tomado pela peste, depois da qual nada mais subsiste. Abracei e dei beijos e me deixei apertar porque nada mais, depois daquilo, devia existir. Amor-limite. Pensei. Como uma dessas baladas que a gente ouve subitamente no meio da noite e parecem eternas, por causa da amplidão da noite. Amar era estar suspenso nessa noite perfeitamente imóvel. Amar com a consciência em fogo. Pensei. Como se eu fosse para sempre único, entre aqueles braços. E aqueles gestos fossem, além de únicos, permanentes. Que nunca se acabem. Pensei. Que o resto se dissolva e só permaneçam gestos assim tão frágeis. Estes. Pensei, sugando os ventos e os elementos, até mesmo os mais secretos e obscuros elementos presentes naquela noite. A escuridão que me envolvia era necessária para dar esse toque terminal que sempre desejei no amor. E os pingos de chuva caíam como que filhos da noite, tamborilando no absoluto, ali bem sobre minha cabeça, dentro do meu coração estupefato. Vivi um instante de euforia. Pedi mais beijos e mais abraços e dentadas, mais do que eu poderia suportar. Depois, quis ser apertado, esmagado para sempre nos abraços. Insisti. Era como se eu tivesse descoberto algo que, parecendo sempre tão velado, repentinamente emergia familiar. Uma certeza, enfim. Pensei. A partir daquele instante, os pingos se encorparam e multiplicaram. Não mais pensei. Beijei, mordi, rolei na sinfonia dos corpos. A casa parecia agora atingida por jatos de fogo, lava ardente caindo e escorrendo em toda sua extensão. Eu não estava mais no mundo, enquanto mergulhava no coração de tudo. Aquela cama e os lençóis flutuavam num espaço indeterminado, distante, muito distante, mas também transparente, sem nunca ter saído dali, profundamente ali, meu secreto âmago. Por entre o ataque flamejante dos elementos e os gritos de amor que de tão intensos mal se ouviam, eu supliquei: "Mete logo o revólver em minha boca, pelo amor de Deus. E dispara por toda eternidade." Fez-se então uma grande luz. Eu era enfim eterno.

    (do livro de contos Troços & Destroços, Ed. Record, 1997)

     

     

    João Silvério Trevisan exerce atividades profissionais em literatura, cinema e teatro. Tem 12 livros publicados, entre ensaios, romances e contos. É tradutor do espanhol e inglês, tendo vertido para o português obras de Jorge Luis Borges, Guillermo Cabrera Infante e Melanie Klein, entre outros. Nos últimos vinte e sete anos, tem coordenado oficinas de criação literária, realizadas em diferentes instituições no Brasil e pela internet. Foi contemplado por 3 vezes com o Prêmio Jabuti, assim como 3 vezes com o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA), o último deles com seu mais recente romance: Rei do cheiro (Ed. Record, 2009). Em 2001, foi escritor-residente na Universidade do Texas, em Austin. Outras obras publicadas: Testamento de Jônatas deixado a David e Troços & Destroços (contos); As incríveis aventuras de El Cóndor (romance juvenil); Em nome do desejo, Vagas notícias de Melinha Marchiotti (romances); O livro do avesso e Ana em Veneza, romances; Devassos no Paraíso, Seis balas num buraco só: A crise do masculino e Pedaço de mim (ensaios).