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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo Sept. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300004 

    BRASIL
    DITADURA E DEMOCRACIA

     

    Relações ambivalentes desafiam a historiografia

     

     

    Carolina Cantarino

     

     

     

    Criar uma nova narrativa que possa abordar a relação entre a ditadura e a sociedade brasileira de maneira mais complexa, considerando suas ambiguidades e a dimensão civil do regime ditatorial. Esse é o principal intuito do livro Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988, lançado no início de 2014, por Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). Partindo da crítica às memórias apaziguadoras e reconciliatórias a respeito do período que se inicia com o golpe contra o governo de João Goulart, em 1964, e se estende, segundo a perspectiva do autor, até 1979, quando começa a chamada transição democrática, a abordagem de Aarão Reis insere-se numa historiografia mais recente, que desloca a versão hegemônica da ditadura enquanto regime imposto de cima para baixo e exercido exclusivamente pelos militares. Tal interpretação - contestada pelo autor - enfatizaria ainda, e por oposição, uma resistência à ditadura exercida por uma esquerda revolucionária, sem considerar a existência de uma zona cinzenta formada pela grande maioria da população, que oscilava entre "a simpatia não entusiasta, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência", escreve Aarão Reis. Sem esse apoio civil - ambíguo, mas ativo e consciente - os militares não teriam conseguido governar.

     

    UM TEMA DIFÍCIL

    Os impasses enfrentados pela Comissão Nacional da Verdade, instaurada em 2012, pelo governo federal, com o objetivo de apurar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, estariam relacionados à difícil tarefa de lidar com as ambiguidades que marcam o regime ditatorial de 1964.

    O país enfrenta dificuldades em lidar com o tema do apoio civil à ditadura. Para sinalizar tal recusa, Aarão Reis tece uma forte comparação com outras sociedades que tiveram que encarar as razões e desrazões da colaboração com regimes ditatoriais e totalitários: a sociedade francesa e o colaboracionismo com a dominação nazista; os alemães, em relação ao nazismo; os italianos e o fascismo; e a União Soviética stalinista. O senso comum de que "o brasileiro não tem memória" expressaria a dificuldade em se elaborar esse passado ambivalente.

     

    ANOS DE CHUMBO, ANOS DE OURO

    Modernização combinada com resistência e repressão - "anos de chumbo" e, ao mesmo tempo, "anos de ouro". Dentre as ambivalências da ditadura de 1964, destaca-se, ainda, a modernização do país, que contrariou as expectativas dos opositores que apostavam num fracasso da ditadura. Crescimento econômico, aparecimento e expansão de diversos setores industriais, incremento das telecomunicações, do sistema bancário, das rodovias e do complexo hidrelétrico. Tal período (1968-1974) conhecido como o do "milagre econômico" coincidiu com o recrudescimento da ditadura - enquanto estado de exceção - com o Ato Institucional número 5, decretado por Costa e Silva, em 1968, fechando os parlamentos por um período indeterminado, dando poderes ilimitados ao presidente, proibindo atividades ou manifestações de natureza política. Tal recrudescimento visava fazer frente à oposição ao regime, que não era homogênea e coesa, e se fortaleceu, especialmente, nesse período. Havia a corrente moderada, articulada em torno do MDB (partido que, juntamente com a Arena, partido da situação, compunha o sistema bipartidário em voga); o movimento estudantil; e as organizações revolucionárias clandestinas, que apostavam na guerrilha urbana e rural e ações de captura de diplomatas estrangeiros. Em relação a essa resistência, a luta desigual acabou em massacre. "Encurralados por uma repressão crescentemente sofisticada e profissional, onde se misturavam oficiais das Forças Armadas, policiais civis e militares e notórios torturadores, os guerrilheiros, quase sempre inexperientes, dispondo apenas da vontade e da ousadia, foram escorraçados da história", lembra o autor. No livro ele assinala que pensar as ambivalências da ditadura não implica em deixar de levar em consideração suas forças conservadoras e sua face mais radical: os aparelhos de repressão e a tortura como política de Estado.

    A ideia de que tais aparelhos funcionassem de forma autônoma, sem o conhecimento dos ministros de Estado ou da Presidência da República carece de evidências e de sentido, tendo em vista a obediência à hierarquia e comando militar, enfatiza o historiador.

     

    ESTATISMO COMO TRADIÇÃO POLÍTICA

    Outra linha de argumentação que atravessa o livro é a que diz respeito ao Estado hipertrofiado como característica de uma cultura política brasileira. Se, a princípio, a ditadura, com o governo de Castello Branco, buscou investir num programa liberal internacionalista e revogar as tradições controladoras do Estado brasileiro - fundadas com o Estado Novo, na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) - acabou, na prática, marcada pelo desenvolvimentismo e intervencionismo estatal, criando uma série de instituições, empresas públicas e programas econômicos, mantendo, inclusive, a estrutura corporativa dos sindicados atrelados ao Estado. Uma ditadura que se instaurou em nome da democracia e contra a corrupção. Muitas lideranças políticas - como Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros - apoiaram, num primeiro momento, o golpe, imaginando que os militares fariam uma intervenção pontual que impediria o país de caminhar rumo ao socialismo: as reformas de base promovidas por Jango (reforma agrária, bancária, urbana etc) juntamente com a atmosfera internacional - a revolução cubana, os movimentos de libertação nacional na África e no mundo árabe - criaram um clima de medo de uma revolução socialista, ao qual responderam com um golpe defensivo aqueles que desejavam "salvar a democracia".

     

    RUPTURAS E PERMANÊNCIAS

    Nesse ínterim, um dos pontos mais instigantes do livro, desenvolvido no capítulo sobre a gênese da ditadura, aborda a ausência de resistência ao golpe militar concretizado na noite do dia 30 de março de 1964, e a "estranha derrota" dos reformistas que compunham e apoiavam o governo de João Goulart. O próprio presidente decidiu não fazer nada e se exilar no Uruguai. "Conferir até que ponto esse medo não teria contaminado lideranças reformistas pode oferecer uma chave para compreender melhor a paralisia e a irresolução frente ao golpe", destaca Aarão Reis, lembrando, também, que uma questão que merece mais pesquisa e estudo é o movimento Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizado em várias e grandes cidades brasileiras, contando com milhares de pessoas. Pensar a relação entre ditadura e democracia no Brasil, implica, portanto, levar em consideração as complexas configurações políticas e históricas que não admitem simplificações, oposições e julgamentos fáceis. Um dos caminhos sugeridos por Daniel Aarão Reis, é o de considerar a intermitência entre estados de exceção (que abolem e criam leis a seu bel-prazer) e estados de direito, que não deixam de ser atravessados pelo autoritarismo.

    Lançando mão de pesquisas realizadas anteriormente e criando uma narrativa fluente e acessível, Daniel Aarão Reis faz uma historiografia com foco na política institucional e nos grandes personagens da história. No posfácio o autor faz referências mais intensas ao período recente, que elegeu Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff como presidentes, o que seria impensável há 50 anos. "Numa revolução que não disse o seu nome, anônima, sem datas precisas, épicas, sem claros divisores de água, de forma molecular, o país virou pelo avesso, refez-se uma cara. E mudou". Abre, assim, outras possibilidades de tratamento do tempo e suas transformações.