SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.66 issue3 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo Sept. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300010 

    APRESENTAÇÃO
    AMAZÔNIA SEM FRONTEIRAS/ARTIGOS

     

    Amazônia um bioma multinacional

     

     

    Adalberto Luis Val

     

     

    A ciência, a tecnologia e a inovação, ao lado da capacitação de pessoal em nível de pós-graduação, vivem um novo momento no Brasil e a realização da Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em pleno ano 2014 na cidade de Rio Branco no estado do Acre, ilustra-o de forma efetiva e por meio de múltiplos ângulos, já que a ciência é uma atividade social com fins sociais. Vejamos alguns desses aspectos nesta curta introdução e, em seguida, nos artigos que compõem este Núcleo Temático. A análise apresentada em ambos os momentos deve servir de estímulo para uma viagem pela Amazônia profunda, por suas dimensões, seus povos, suas diversidades e suas singularidades que se distribuem por todos os países do norte da América do Sul.

    Muitas dessas características da Amazônia são descritas, discutidas, comparadas e apresentadas há muito tempo. Dos muitos textos que poderiam referenciar essa colocação, destaco o trecho a seguir, do livro Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas, do Padre João Daniel que viveu na região amazônica de 1741 a 1757, quando, por ordem do Marquês de Pombal, foi mantido preso em Portugal. Nesse livro, exaltando as características dessa região, diz:

    É sem dúvida o Amazonas o máximo dos rios, sem injúria dos Nilos, Núbias e Zaires da África, dos Eufrates, Ganges e Indos da Ásia, dos Danúbios e Ródanos da Europa, dos Pratas, Orinocos e Mississipis da mesma América, em cujo meio ou centro o Amazonas se (ilegível) gigante, chamado com razão pelos naturais de mar branco, paraná petinga. E se Júlio César prometia ceder o império a quem lhe mostrasse a fonte do grande Nilo, qual seria o prêmio a quem lhe apontasse a fonte do máximo Amazonas, em cuja comparação aquele se avaliaria pigmeu, ou pequeno regato, e envergonhado, por não poder correr parelhas com este, fugiria a esconder-se na sua pequena mãe? (1)

    Impressiona a atualidade dessa obra publicada há mais de duzentos anos (2), em particular pela precisão com que trata o máximo Amazonas, ao mesmo tempo ligação entre os países amazônicos e coletor central do sistema.

    Na obra América Latina: Chegou a hora de nossa identidade, Darcy Ribeiro adverte que não há no mundo região mais integrada que a América Latina e ressalta dois planos: o linguístico e o cultural (3). Pois bem, atrevo-me a acrescentar um terceiro plano: a Amazônia. Nove dos treze países da América do Sul são amazônicos e compartilham as características desta megarregião. Ainda que a maior parte do bioma ocupe o território brasileiro, a responsabilidade é multinacional já que o bioma amazônico é uma região sem fronteiras. Tomemos quatro recortes para ilustrar essa asserção, enfatizando que não pretendemos esgotá-los sob nenhum aspecto.

     

    COOPERAÇÃO, CAPACITAÇÃO E FIXAÇÃO DE PESSOAL

    Os nove países amazônicos compartilham de praticamente todas as características que envolvem o enorme bioma amazônico: a diversidade ambiental e biológica, a riqueza mineral, a religião, muitos aspectos culturais, os ribeirinhos e suas crenças e folclores, entre outros. Por outro lado, vários desafios regionais permeiam, da mesma forma, todos os países que integram o bioma amazônico. Entre esses desafios destacam-se: comunicação, transporte, saúde, educação, ciência e tecnologia. Contudo, o maior dos desafios é proporcionar à região desenvolvimento com a manutenção da floresta em pé. Considerando os múltiplos matizes desse imenso bioma multinacional, a abordagem possível é obrigatoriamente interdisciplinar, com produção de informações robustas que permitam intervenções seguras. Em muitos casos, tais intervenções também não resguardam as fronteiras entre os países, envolvendo necessariamente mais de um país. Para isso, duas questões precisam ser encaminhadas de forma soberana e eficaz: cooperação e capacitação de pessoal.

    A cooperação científica é hoje uma questão estratégica para governos e instituições de ensino e pesquisa. Além do princípio fundamental que deve nortear a cooperação científica, isto é, a simetria de interesses e ações, a Amazônia precisa ser vista pelos países amazônicos como um laboratório para o desenvolvimento ambientalmente sustentável, com processos sociais includentes. Ignacy Sachs, diretor do Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), vem ressaltando exatamente isso em suas manifestações que, de longa data, são também abraçadas e enfatizadas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Academia Brasileira de Ciências (ABC). A rigor, no que se refere à Amazônia, os processos de cooperação e intervenção física no bioma, requerem ações conjuntas em todos os níveis da organização social, já que não é suficiente colocar um "muro" em cada país como forma de proteger o bioma.

    O artigo apresentado por Claudio Ruy Vasconcelos da Fonseca, intitulado "Cooperação em ciência, tecnologia, inovação e educação nos países amazônicos", além de trazer para reflexão a questão da necessária cooperação entre os países amazônicos, ressalta que mais de 50% de toda a produção científica mundial é realizada em coautoria. Um ponto relevante apresentado por Fonseca se refere ao fato de que mais de 60% do investimento em ciência e tecnologia é feito de forma unilateral pelo Brasil. Mesmo tendo uma pequena parcela dos investimentos em C&T, a Amazônia brasileira se destaca na geração de conhecimento sobre a região. Este conhecimento, por um esforço conjunto entre os países amazônicos, deve permear a região como um todo. Para o Brasil essa ação é estratégica, posto que os recursos naturais não observam fronteiras e, no que se refere aos recursos hídricos, é preciso ter em conta que a maioria absoluta dos cursos d'água são transfronteiriços.

    Fonseca apresenta ainda uma reflexão importante sobre "Cooperação científica em ambientes desiguais". No caso específico do bioma amazônico, os ambientes são desiguais entre os países e dentro dos países, com destaque maiúsculo para a Amazônia brasileira que, representando cerca de 60% do território brasileiro, recebe em torno de 4% dos investimentos totais em ciência, tecnologia e inovação. Paradoxalmente, mesmo com um investimento nacional desigual, o conhecimento produzido a partir da Amazônia brasileira ganha destaque. Esse aspecto ganha um novo momentum a partir da criação das fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs) do lado brasileiro, que ainda trilham o caminho da plena consolidação. As FAPs estão proporcionando um processo especialmente importante que envolve não só a produção de novas informações a partir dos interesses das sociedades locais, mas também um ring the bell para as agências nacionais acerca do necessário rompimento dos desequilíbrios nacionais. É importante ressaltar que a questão dos desequilíbrios regionais já era uma preocupação de agências nacionais, mas o fosso era, e continua sendo, tão grande que um sistema organizado e combinado passou a ter maior repercussão.

    É nesse contexto que a formação e fixação de pessoal qualificado emerge como um grande desafio pois requer estratégias bem definidas, tempo, diversificação para contemplar as diferentes áreas do saber e, principalmente, processos não convencionais que venham a somar com a manutenção do pessoal qualificado na região. Dada a carência de pessoal que atinge todos os países amazônicos, inclusive nosso país - ainda que neste caso de forma diferenciada dos demais países - poderia oferecer apoio no sentido de instrumentalizar os sistemas dos países vizinhos, por exemplo, como a disponibilização de bancos de dados de grande relevância para o ensino e pesquisa como a Plataforma Lattes, o Diretório dos Grupos de Pesquisas do Brasil, o Portal de Periódicos, no que couber, entre outros.

    Muitas das áreas de pós-graduação avaliadas pela Capes carecem de programas estruturados, tanto em universidades brasileiras quanto em universidades dos países vizinhos. Várias dessas áreas estão intrinsicamente vinculadas à produção de informações relevantes para o desenvolvimento sustentável da região como um todo, bem como à importante tarefa de capacitar pessoal para a sustentabilidade do desenvolvimento. Tomemos, entre outras áreas, a engenharia naval, a antropologia, a farmacologia e a aquicultura. Outras áreas são igualmente importantes e vitais para a região, mas estas são emblemáticas.

    Vejamos: para uma região anfíbia como a Amazônia, a engenharia naval é vital para o desenvolvimento de meios eficientes para o transporte regional, não só de pessoas, mas principalmente para o escoamento de produtos regionais. Aliás, ressalte-se que o transporte é um dos principais gargalos para a concretude das cadeias produtivas regionais. Sendo estas fundamentais para os processos de inclusão social e geração de renda, pode-se dizer que a falta de pessoal qualificado para dar nova dimensão ao transporte regional é limitante para a melhoria da qualidade de vida na região, principalmente da população que vive afastada dos grandes centros regionais. Sem conhecer a história humana da região, os processos culturais envolvidos com a evolução do bioma e com as conexões inter-regionais, não há como desenhar novos processos. O etnoconhecimento dos povos da região é rico e envolve um mundo até agora longe da ciência, no Brasil e nos países vizinhos. Basta visitar os mercados locais, entre eles o Ver-o-Peso de Belém que fornece um vasto conjunto de ervas medicinais, para uma fotografia desse aspecto.

    Fortemente conectada ao conhecimento tradicional e dele podendo avançar de forma significativa está a farmacologia. Por milhares de anos os povos da Amazônia não tiveram acesso aos remédios modernos e, ainda hoje, muitas comunidades do interior da Amazônia continuam sem acesso aos avanços que a ciência tem proporcionado. As dificuldades de saúde dessas comunidades incluem entre outras, muitas enfermidades conhecidas nas cidades que são cuidadas por meio de "poções" preparadas com base no conhecimento local. É muito provável que boa parte do material utilizado para o preparo dessas "poções" contenha princípios ativos fundamentais existentes na floresta e que possam servir de pontos de partida para o desenho de novos medicamentos. O fortalecimento da farmacologia regional pode contribuir de forma marcante com os avanços científicos nesse caso, além de ter potencial para contribuir também com os processos de inclusão social e geração de renda.

    Por outro lado, e igualmente importante, está a aquicultura. O consumo de pescado pela população regional é relativamente alto e, apenas por esse aspecto, considerando o tamanho da população regional, já se justificaria a qualificação de pessoal para otimizar tecnologicamente a aquicultura de espécies amazônicas. No entanto, há pelo menos três outros aspectos que devem ser considerados no que se refere à importância da aquicultura voltada a espécies amazônicas: a) o potencial de espécies de peixes amazônicos, como o tambaqui ou cachama ou gamitana, o pirarucu ou paiche, e o matrinchã, que podem perfeitamente se transformar em espécies para a piscicultura mundial; b) a importância da diversidade genética mantida por essas espécies em seus ambientes naturais que permite a recomposição dos estoques mantidos sob altas taxas de inbreeding nos ambientes de criação; e c) a importância da produção de espécies de peixes para a recomposição de ambiente degradados.

    Deve ser destacada a colaboração que os programas de pós-graduação brasileiros têm proporcionado para a capacitação de pessoal dos países vizinhos. O tratado de cooperação amazônica (OTCA) tem papel importante nesse contexto, em particular a partir da retomada de suas ações nos últimos anos. No passado a União das Instituições de Ensino Amazônicas (Unamaz) teve também papel relevante. É importante que essas organizações supranacionais possam ser proativas no sentido de desenhar ações integradas para a conservação do bioma amazônico, mas também voltadas para a melhoria da qualidade de vida humana na região.

     

    BIODIVERSIDADE E ADAPTAÇÕES ÀS MUDANÇAS AMBIENTAIS

    A biodiversidade é o patrimônio relevante da Amazônia, o Eldorado de fato, e desde os tempos mais remotos, tem desafiado naturalistas de todas as nacionalidades. Esse interesse sempre cresceu ao longo dos séculos após o descobrimento dessas terras e, ainda hoje, a Amazônia continua sendo alvo de interesses diversos. No final do século XVIII muitas foram as expedições naturalistas a serviço do governo português. Pedro Nunes no século XVI se referiu às viagens portuguesas assim: "Os portugueses ousaram cometer o grande mar Oceano. Entraram por ele sem receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos e o que mais é, novos céus e novas estrelas". Interessava nesse período as descobertas, muitas delas realizadas antes dos fundamentos e das definições da ciência moderna. É nesse contexto que ocorreu uma das expedições mais marcantes na Amazônia, a expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira entre 1783 e 1792, que percorreu dezenas de milhares de quilômetros por uma região inóspita e pouco habitada e coletou "precioso e vasto material" que está depositado em várias instituições portuguesas, francesas e brasileiras (6). No volume II dessa obra há um capítulo especial: "Herbário de peixes do Brasil do século XVIII", com especial destaque para "Herbários e técnica de preparação" onde se encontra a seguinte instrução:

    Para peixes, a técnica de "herbário" foi inventada no século XVIII por Iohannes Friederich Gronow (1690-1760), ou Gronovius, naturalista holandês cuja família, originária de Hamburg, se fixara em Leyden. Teve ampla divulgação através das Philosophical Transactions of the Royal Society of London (1742) e da sua tradução em francês (1760). O peixe eviscerado e após a eliminação da musculatura e da pele do lado oculto, era às vezes desinfectado (por exemplo com sabão arsenical), preso por alfinetes ao suporte, geralmente de cartão, e seco: ao sol ou, no inverso, junto do fogo".

    Esta técnica foi utilizada por muito tempo pelos naturalistas que visitaram e coletaram peixes nos muitos rios da Amazônia. Hoje, na Amazônia, continua-se a coletar e depositar o material coletado em coleções científicas que, felizmente, estão adequadamente organizadas, podem receber o material coletado e disponibilizar informações para os estudiosos das áreas de taxonomia e sistemática. Algumas dessas coleções estão em destacadas instituições amazônicas como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Brasil (Inpa), o Museu Paraense Emílio Goeldi, Brasil (MPEG), o Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas Sinchi, Colômbia (Sinchi), entre outras.

    Cerca de duzentos anos antes, uma expedição igualmente relevante foi a de Francisco de Orellana e dos irmãos Pizzaro que não tinham como objetivo a coleta de material biológico; buscavam uma especiaria específica: a canela. Depois de significativo sofrimento e redução da tropa, encontraram algumas árvores de Aniba canelilla que não sabiam não ser o verdadeiro cinamomo, Melia azedarach, nativa do oriente, de onde se extrai o aldeído cinâmico. Foi muito mais tarde que químicos brasileiros descobriram que a casca da Aniba continha o composto 2-nitrofeniletano que dá a esta planta o típico cheiro de canela que, de certa forma, permitiu àqueles expedicionários a consecução de parte de seus objetivos. Assim, pode-se dizer que essa expedição marca a busca de produtos naturais, como esse, escondidos na vasta diversidade biológica existente na região.

    Muitas e muitas publicações retratam a diversidade biológica abrigada na Amazônia. São milhares de espécies de plantas, peixes, aves, anfíbios e répteis. São também milhares de espécies de fungos e bactérias. São milhões de espécies de invertebrados. Muitos mais estão nos diversos rincões da Amazônia, desconhecidos da ciência. Se do alto a região parece homogênea, a visão se torna completamente diferente quando se caminha por entre os cipós, no seio da floresta. Não só a diversidade ambiental emerge; junto com ela a diversidade biológica, sem espaços homogêneos. Essa é a diversidade que podemos ver, com ou sem auxílio de instrumentos, que ampliam a capacidade de nossa vista. No entanto, uma diversidade muito maior começa a emergir a partir das análises que estamos fazendo sobre o material genético das poucas espécies até aqui coletadas para essa finalidade. É um mundo novo, um mundo que se mede pela própria imensurabilidade que tem como base as informações que vêm sendo produzidas.

    Esse conjunto de informações, inscrito nos genomas das diferentes espécies, permite que os organismos se adaptem aos diferentes desafios impostos pelos ambientes amazônicos que, em muitos casos, resultam em novos arranjos fisiográficos. É o caso dos extensos bosques de bambu do gênero Guadua, magistralmente descrito por Evandro José Linhares Ferreira nesta edição da revista Ciência e Cultura. No Acre e Amazonas esses bosques são conhecidos como "tabocais" e no Peru como "pacales". De acordo com o texto de Ferreira, 59%, mais da metade da cobertura vegetal do Acre, são florestas primárias nas quais predomina o bambu. Esta característica exige processos diferenciados de manejo florestal a fim de utilizar essa importante espécie florestal. O manejo florestal nesse caso precisa ser acompanhado também de novas tecnologias para uso desse recurso.

    Por outro lado, essa imensa diversidade biológica, que lidou durante todo o processo evolutivo com desafios inerentes às variações ambientais naturais, começa a ter que lidar com desafios de origem antrópica que se acentuam nos tempos atuais. Alguns desses desafios têm origem local e com efeitos também locais. É o caso da mineração, da abertura de novas estradas, da construção de hidrelétricas, da expansão desordenada de cidades, entre outros. No que se refere à mineração, a do petróleo é uma das mais perigosas, principalmente para os peixes. Neste caso, muitas espécies de peixes foram obrigadas a desenvolver, durante o processo evolutivo, estratégias para obter o oxigênio necessário à vida a partir da interface ar-água ou diretamente do ar. Além disso, muitas espécies de peixes da Amazônia se alimentam de material depositado na superfície da coluna d'água. Portanto, a deposição de petróleo na superfície da coluna d'água como sói acontecer nos cada vez mais frequentes acidentes na região, as adaptações moldadas durante o processo evolutivo para explorar a interface água-ar acabam representando uma importante desvantagem.

    A região é também vulnerável a desafios que têm origem em outros lugares do planeta, principalmente nos países desenvolvidos. Neste caso, as mudanças climáticas causadas majoritariamente pelo aumento dos níveis atmosféricos de dióxido de carbono (CO2), entre outros gases causadores de efeito estufa, que resultam em aquecimento generalizado do planeta, resultam em desafios adicionais aos organismos da Amazônia. A savanização de parte da região, por exemplo, aparece de forma significativa nos cenários ambientais futuros publicados até aqui. Em adição a este efeito e como consequência dele, há desafios regionais que se apresentam de forma ampliada e que forçam plantas e animais a se ajustarem (ou não) a essas novas condições.

    O artigo apresentado neste Núcleo Temático por Maria Teresa Fernandez Piedade e colaboradores, intitulado "Organismos aquáticos e de áreas úmidas em uma Amazônia em transição" trata desse assunto com colocações relevantes para o contexto em curso no bioma amazônico, procurando entender as respostas de plantas e animais a esses novos desafios. Essas informações são especialmente relevantes para subsidiar ações de mitigação e conservação ambiental, bem como contribuir com a definição de políticas públicas. As adaptações refletem a plasticidade dos organismos e podem ocorrer em todos os níveis da organização biológica. Embora vantajosa para distúrbios ambientais brandos e pontuais num ambiente estável, as adaptações que resultam em especializações podem não ser vantajosas quando os organismos são expostos a desafios agudos produzidos por humanos.

    Um conjunto recente de mudanças ambientais que vem ocorrendo de forma rápida envolve o aquecimento global e cenários ambientais conexos. Ainda que muitos organismos aquáticos da Amazônia tenham evoluído em períodos geológicos que continham concentrações de CO2 muito maiores do que as atuais e também mais quentes, a possível vulnerabilidade deles é desconhecida. O artigo de Piedade e colaboradores traz uma importante reflexão sobre esses aspectos. No Inpa, por meio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Centro de Estudos das Adaptações da Biota Aquática da Amazônia (INCT-Adapta), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), há um conjunto de salas climatizadas que reproduzem os cenários climáticos para o ano 2100 de acordo com a previsão do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Nestes ambientes está sendo estudado como diferentes espécies da Amazônia responderão às mudanças climáticas, incluindo espécies de peixes de importância comercial, como o tambaqui, plantas que ocorrem nas várzeas e mosquitos responsáveis pela transmissão de importantes doenças amazônicas.

    Igualmente importante e necessário é conhecer como se comporta a região como um todo no que se refere ao clima mundial, bem como quão vulnerável se torna em face das intervenções locais como o uso da terra, expansão das cidades, construção de estradas e hidrelétricas.

     

    CLIMA E FUNCIONAMENTO DA FLORESTA

    Há um vasto conjunto de publicações sobre a extensão da floresta, sua capacidade de estocar carbono, retirado da atmosfera por meio da fotossíntese, sua capacidade de recompor-se a cada ciclo de cheia e vazante, sua dinâmica fisiográfica e sua importância na ciclagem de nutrientes e água. Nesta edição da Ciência e Cultura o artigo apresentado por Paulo Artaxo e colaboradores, intitulado "Perspectivas de pesquisas na relação entre o clima e o funcionamento da floresta amazônica", ao rever os avanços proporcionados pelos grandes projetos científicos para o estudo das questões climáticas na Amazônia, ilustra de forma singular a inter-relação entre a floresta e o clima que foi inicialmente demonstrada no âmbito do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA).

    A riqueza de informações e os diversos matizes que interferem e determinam novas resultantes climáticas na Amazônia formam um mundo a parte, tão diverso que pode ser incluído entre as já mencionadas diversidades amazônicas. É possível analisar vários aspectos da relação clima versus funcionamento da floresta amazônica, aspectos esses que envolvem variáveis relevantes de acordo com a sub-região, o que sugere que esses estudos se estendam por todo o bioma amazônico, desde o sopé andino até as praias atlânticas da foz do Amazonas. No entanto, há alguns pontos que precisam de atenção especial, particularmente considerando o contexto cada vez mais globalizado a que todos estamos submetidos. Dois recortes devem ser mencionados aqui: serviços ambientais e segurança social.

    Entender claramente os processos de formação de nuvens na região, que envolvem, entre outros, os VOCs (compostos orgânicos voláteis) emitidos a partir da floresta, permite estimar como a região contribui com o sucesso da agricultura, por exemplo, em espaços extra-amazônicos. Contribuem, também, com o suprimento de água para regiões com grande densidade populacional, como São Paulo. Os estudos sobre os "rios voadores", termo popularizado por José Marengo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), têm definitivamente demonstrado a importância desse serviço proporcionado pela floresta. Os estudos de pesquisadores do Inpa evidenciaram que uma árvore com copa de cerca de 10 metros, pequena para os padrões amazônicos, é capaz de bombear mais de 300 litros de água na forma de vapor em um único dia. Está claro que o corte raso da floresta hoje compromete imediatamente a disponibilidade de água em outras regiões.

    O segundo ponto relevante em face dos novos cenários climáticos mundiais refere-se à segurança social. O homem da Amazônia, em particular o homem que vive no interior às margens dos rios e em comunidades isoladas, depende da estabilidade ambiental para sua sobrevivência. Extremos climáticos como os que vêm acontecendo de forma frequente passam a interferir de forma marcante com a qualidade de vida do homem da região (7). Entender como funciona o sistema é, pois, de grande relevância para o desenho de intervenções mitigatórias e de adaptação a esses novos cenários.

     

    DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NUMA AMAZÔNIA EM TRANSIÇÃO

    Como proporcionar à Amazônia estratégias seguras para seu desenvolvimento com a manutenção da floresta em pé? Muitas e muitas vezes nos deparamos com essa pergunta e, recorrendo ao senso comum, verificamos que o quê o mundo moderno chama de desenvolvimento levou os países desenvolvidos a consumirem seu patrimônio natural. É esse o caminho a ser trilhado pela Amazônia? Ainda que disponibilidade de energia elétrica, transporte, saúde, entre outras facilidades da vida moderna, sejam requeridas pela população regional, há um sentimento profundo e de certa forma ancestral de que é necessário conciliar essas facilidades com a manutenção da floresta em pé. As intervenções até agora efetuadas na Amazônia indicam claramente que não é possível importar estratégias desenvolvidas para outros rincões do planeta. Na grande maioria das vezes em que isso foi feito, ocorreu insucesso.

    Recentemente, Marcovitch fez uma extensiva análise sobre a gestão da Amazônia, talvez uma das questões mais sensíveis para a região, pois envolve aspectos muito sensíveis, entre eles as singularidades da cultura regional (8). Marcovitch relembra em suas palavras iniciais a colocação feita por Lester R. Brown quando comparou a floresta amazônica a uma enorme biblioteca de biologia, sendo o setor relativo à variabilidade genômica imensurável. Por consequência, compara as queimadas da floresta ao extraordinário incêndio que consumiu a biblioteca de Alexandria, que continha um acervo de incomparáveis proporções, e representou uma das maiores "catástrofes culturais registradas na história".

    É neste contexto de desafios para o desenvolvimento sustentável, com manutenção da floresta em pé, que a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN, sigla em inglês), coordenada por Jeffrey Sachs, assessor especial do secretário geral da ONU, e composta por especialistas da academia, sociedade civil e empresários. A SDSN-Amazônia é coordenada por Virgílio Viana. Viana e colaboradores prepararam um artigo elucidativo sobre a SDSN-Amazônia, intitulado "Soluções para o desenvolvimento sustentável da Amazônia", valendo-se também das ações realizadas na Amazônia pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS), como unidades demonstrativas. No âmbito dessa iniciativa haverá um grupo, com participação da Academia Brasileira de Ciências, formado por pesquisadores dos vários países amazônicos, buscando ações integradas a partir de soluções técnica e cientificamente viáveis.

    Os cinco artigos a seguir apresentados dão uma mostra da diversidade de matizes que envolve o desenvolvimento sustentável da Amazônia, a necessidade de soluções robustas para a inclusão social e geração de renda. Mostram claramente que a interdisciplinaridade é vital para o desenvolvimento e que a manutenção da floresta em pé depende de ações integradas por todos os países amazônicos. Boa leitura.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Val, A. L., et al. "Amazonia: recursos hidricos e sustentabilidade". Aguas do Brasil. Analises estrategicas. C. E. d. M. Bicudo, J. G. Tundisi and M. C. B. Scheuenstuhl. Sao Paulo, ABC & Instituto de Botanica: 95-109. 2010.

    2. Daniel, J. Tesouro descoberto no maximo rio Amazonas. Rio de Janeiro, RJ, Contraponto Editora Ltda. 2004.

    3. Ribeiro, D.. America Latina: Chegou a hora de nossa identidade. Sao Paulo, Memorial da America Latina. 2008.

    4. Oliveira, A. M., et al.. "Caracterizacao da atividade de piscicultura nas mesorregioes do estado do Amazonas, Amazonia brasileira". RevistaColombiana de Ciencia Animal 4(1): 154-162. 2012.

    5. Inbreeding e termo em ingles usado na ecologia para se referir ao cruzamento de individuos da mesma especie com alto grau de parentesco.

    6. Ferrao, C. and J. P. M. Soares (Orgs.). Viagem ao Brasil de AlexandreRodrigues Ferreira. Rio de Janeiro, Kapa Editorial. Academia Brasileira de Ciencias. 2003.

    7. Val, A. L., et al. Amazonia: Recursos hidricos e sustentabilidade. Aguas do Brasil. Analises Estrategicas. C. E. d. M. Bicudo, J. G. Tundisi and M. C. B. Scheuenstuhl. Sao Paulo, ABC & Instituto de Botanica: 95-109. 2010.

    8. Marcovitch, J.. A gestao da Amazonia: acoes empresariais, politicapublicas, estudos e propostas. Sao Paulo, Editora da Universidade de Sao Paulo. 2011.

     

     

    Adalberto Val é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e co-presidente do SDSN-Amazônia.