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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo set. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300014 

    ARTIGOS
    AMAZÔNIA SEM FRONTEIRAS/ARTIGOS

     

    Perspectivas de pesquisas na relação entre clima e o funcionamento da floresta Amazônica

     

     

    Paulo Artaxo; Maria Assunção Faus da Silva Dias; Laszlo Nagy; Flávio J. Luizão; Hillândia Brandão da Cunha; Carlos A. N. Quesada; José A. Marengo; Alex Krusche

     

     

    Pesquisas recentes do programa LBA (Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia) demonstram ligações entre o clima e o uso da terra na Amazônia e o funcionamento do bioma (1). A vegetação tem uma estreita relação com a atmosfera, controlando uma série de processos físico-químicos que influenciam a taxa de formação de nuvens, quantidade de núcleos de condensação de nuvens, quantidade de vapor de água, balanço de radiação, emissão de gases biogênicos e de efeito estufa entre tantas outras propriedades. A Amazônia, por sua localização tropical e grande área (Figura 1), é uma importante fonte de vapor de água para nosso planeta. Ela também contém o maior reservatório de carbono entre os ecossistemas terrestres, e tem um papel fundamental na mitigação das mudanças climáticas em curso. A mobilização de pequena fração do carbono acumulado na biomassa da floresta pode perturbar o ciclo de carbono global. A Amazônia também é parte do mais intenso ciclo hidrológico de nosso planeta, com um sofisticado processamento e reciclagem de vapor de água, que alimenta a maior bacia hidrológica. Estes aspectos fazem da região amazônica uma questão central em pesquisas de clima e nas mudanças globais. Desde seu início, o programa LBA focou no relacionamento entre clima, ciclos biogeoquímicos e o papel da mudança de uso do solo em curso, alterando o funcionamento do bioma.

     

     

    LIGAÇÕES ENTRE A FLORESTA E O CLIMA REGIONAL E GLOBAL

    Conhecemos ainda pouco dos intensos mecanismos de retroalimentação entre a ecologia básica do funcionamento da floresta e o clima da região amazônica. O complexo funcionamento biológico da floresta, com fortes ligações com o sistema hidrológico que a sustenta, e o armazenamento de carbono fazem da Amazônia um laboratório único em nosso planeta (2). Sua enorme biodiversidade traz características únicas ao funcionamento biológico e às relações com o clima regional, bem como à ecologia de ecossistemas. As emissões de compostos orgânicos voláteis (VOCs) pelas plantas e sua posterior transformação em partículas de aerossóis, com a consequente alteração nos núcleos de condensação de nuvens, é um exemplo importante dessa forte interação entre biosfera e atmosfera, uma área de contínuo foco de pesquisas futuras (3).

     

    CLIMA DA AMAZÔNIA - PERSPECTIVAS OBSERVACIONAIS

    O conhecimento do clima amazônico é relativamente recente. Algumas medidas de chuva e de níveis de rios datam do início do processo de colonização. Porém, observações do clima voltadas para a busca da compreensão de perguntas específicas como por que, onde, e como chove, e qual a relação da floresta com a chuva e com a temperatura, se iniciaram na década de 1980. Desde as primeiras medidas constatou-se a riqueza de processos e inter-relações entre a floresta e a atmosfera, e como é sensível o equilíbrio climático às perturbações causadas pela ação do homem. O clima na Amazônia não é isolado do resto do nosso planeta e passa por evoluções em função de alterações climáticas de caráter global como, por exemplo, a ocorrência de El Niño e La Niña. A Amazônia tem diversas sub-regiões com características climáticas distintas. De uma forma geral as partes norte e leste são influenciadas mais diretamente pelo oceano Atlântico, enquanto que nas partes sul e oeste são frequentes as chegadas de frentes frias provenientes do sul em dissipação causando friagens.

    Um aspecto que se conhece hoje sobre a floresta amazônica é que ela injeta vapor d'água na atmosfera com mais vigor durante a estação seca do que na estação chuvosa, em função das raízes profundas das árvores e do fato de haver um sombreamento por nuvens na estação chuvosa que reduz a energia solar disponível para as plantas fazerem fotossíntese e evapotranspirar intensamente. Esse resultado das pesquisas é importante, pois modelos de previsão de tempo e clima não tinham essa função bem representada e supunha-se que na estação seca, devido ao solo seco, as árvores estariam injetando menos vapor d'água no ar e esse erro de modelagem tinha implicações na quantidade de chuva prevista.

    Em toda a Amazônia aparece um ciclo anual da chuva no qual, nos meses chuvosos, as nuvens têm características similares a nuvens marítimas e nas estações seca e de transição entre seca e chuvosa elas se parecem mais com nuvens continentais. Duas vertentes importantes são os efeitos das emissões atmosféricas de queima de biomassa (uma prática comum de desmatamento e manejo de pastagem) e do desmatamento (transformação da vegetação natural em pastagem ou culturas) na quantidade de chuvas (4).

    O fogo, usado em associação com a agricultura e como forma de facilitar o desmatamento, causa emissões de enormes quantidades de fumaça constituída de gases e partículas de aerossóis. Os aerossóis exercem duas funções básicas na atmosfera: em primeiro lugar refletem a radiação que vem do sol e assim "sombreiam" o solo e a vegetação, que recebem menos radiação solar direta. Os aerossóis aumentam a fração de radiação difusa, que é particularmente importante para os processos que ocorrem dentro da copa das árvores, tanto para a fotossíntese (aumenta a absorção de carbono pela floresta) como para produção de vários gases traços, tais como os compostos orgânicos voláteis (VOCs) (5). Um segundo efeito dos aerossóis é sua capacidade de atuar como núcleos de formação de gotas nas nuvens e, desta maneira, sua enorme concentração na fumaça tem implicações no tipo de chuva que se forma e em como as nuvens se formam e evoluem. Numa atmosfera limpa, sem fumaça, as nuvens tendem a ter chuva mais cedo e mais branda do que em atmosferas poluídas. Nestas, a tendência é que as nuvens demorem mais para chover e, ao fazê- -lo, serem mais violentas com ventanias e descargas elétricas mais abundantes. Tanto o sombreamento provocado pela fumaça como a alteração interna das nuvens, devidas aos aerossóis, têm a capacidade de alterar a quantidade de chuva. Se vai chover mais ou menos e aonde, em ambientes poluídos, depende de uma série de fatores e é ainda objeto de pesquisas.

    O desmatamento também interfere no clima diretamente através de mudanças na temperatura e na chuva. As pesquisas já realizadas indicam que na época chuvosa há pequena diferença de temperatura entre regiões desmatadas e florestas. Mas na estação seca a diferença de temperatura pode chegar a vários graus Celsius. Regiões desmatadas que incluem cidades têm maior temperatura ainda, podendo registrar até 5ºC a mais que regiões próximas com florestas. As regiões desmatadas quando são relativamente pequenas tendem a aumentar a quantidade de chuva justamente por causa do calor adicional. Mas quando são muito grandes, o resultado é uma diminuição da chuva, pois a redução da evapotranspiração da floresta acaba por diminuir a disponibilidade de água na atmosfera.

    A Amazônia está passando por um processo de urbanização, e regiões urbanas próximas a grandes rios podem passar a ser um padrão comum representando, então, um novo desafio para entender seu impacto no clima. A poluição atmosférica gerada nas cidades, por queima de combustíveis e emissões industriais, é levada pelos ventos para regiões distantes, cobertas de floresta ou áreas de produção. A presença da região urbana e dos grandes rios modifica o regime de ventos e altera o ciclo diurno de formação de nuvens. Um dos gases que vão sendo produzidos pela ação do sol na poluição atmosférica é o ozônio, que tem um conhecido efeito de danificar a vegetação, sendo fitotóxico. Mas qual é o efeito total nas várias formas de cobertura da terra? Esta questão está sendo estudada no projeto internacional do GoAmazon, do qual o Inpa e a UEA são as instituições coordenadoras.

    No passado, há milhares de anos, a Amazônia passou por épocas mais secas e quentes que a atual, isso tudo registrado em sedimentos no fundo de lagos na região. Desde os anos 1960, a variabilidade climática natural está se sobrepondo à interferência humana tais como fogo, desmatamento e poluição. Ao acompanhar os extremos de tempo e clima observados nos dias de hoje é possível identificar uma complexa interação entre os diversos processos. Aprofundar o entendimento do que ocorre hoje, por meio de pesquisas baseadas em dados cada vez mais detalhados, é certamente um grande passo para prever o futuro do bioma Amazônia.

     

    A MODELAGEM CLIMÁTICA NA AMAZÔNIA

    A modelagem climática da Amazônia é uma área de pesquisa que deixa muito claro as limitações de nosso entendimento sobre os processos que afetam o funcionamento do bioma amazônico. Vários estudos têm revisado experiências de modelagem climática na Amazônia, começando com experimentos de desmatamento realizados desde finais dos anos 1970 até o presente, com complexos experimentos de impactos de aerossóis de queimadas no clima regional e global e de vegetação dinâmica. Em todos esses experimentos as conclusões sugerem um aumento na temperatura na Amazônia que, de acordo com os vários cenários, atinge valores de 3 a 6 oC até finais do século XXI. Este efeito deve ocorrer junto com uma redução da precipitação, particularmente na região leste da Amazônia, que pode chegar até 30% nos cenários mais radicais de altas emissões de gases de efeito estufa (GEE). Além das implicações diretas que as temperaturas mais altas e a menor precipitação pluviométrica têm para a população, é possível que elas alterem a hidrologia regional e processos que mantêm em funcionamento o bioma amazônico, afetando, em consequência, o clima regional e o clima global.

    As interações entre floresta, clima e dióxido de carbono (CO2) são complexas. Experiências de modelagem nos inícios dos anos 2000 apontavam para um cenário de colapso do bioma amazônico, o chamado dieback da Amazônia. Isso levaria a uma transformação no papel da vegetação natural amazônica, passando de um pequeno sumidouro líquido para uma fonte de CO2 ao longo deste século. Por outro lado, resultados de modelos climáticos acoplados à ciclo de carbono sugerem que uma savanização de parte da Amazônia pode ser também gerada se a área desmatada atingir mais de 40%. Embora a existência desses potenciais pontos sem retorno ainda precise ser esclarecida, interações entre as mudanças climáticas e o desmatamento podem torná-los mais prováveis. Recentemente, Huntingford et al (6) analisaram 22 modelos climáticos globais e, de acordo com os modelos climáticos, existe a possibilidade de um colapso do bioma da floresta amazônica induzida pela mudança de clima (isto é, não diretamente pelo desmatamento) até o ano 2100, mas os impactos modelados podem ser menores que os estudos de uma década atrás. Do ponto de vista da precipitação, os modelos sugerem que até finais do século XXI poderá ocorrer um aumento nos extremos de precipitação na Amazônia ocidental, enquanto reduções são projetadas para a Amazônia oriental.

    Os novos modelos CMIP5 do 5º Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC AR5), publicados recentemente, mostram um forte consenso quanto à intensificação e ao alongamento da estação seca na Amazônia oriental. Os modelos climáticos variam bastante entre si, mas a maior parte prevê aumento na ocorrência de eventos climáticos extremos nas próximas décadas, por causa do aquecimento global, particularmente reduções de chuva na Amazônia oriental.

    A degradação ou diminuição da vegetação natural amazônica em decorrência das mudanças climáticas provavelmente trará sérias consequências para os habitantes da região e de fora - perda de biodiversidade, regulação das chuvas, influência sobre o balanço de carbono e todos os serviços ecossistêmicos que a floresta oferece potencialmente. É sempre preciso lembrar, no entanto, que esses modelos de clima e vegetação estão sujeitos a grandes incertezas devido ao fato de que eles não incluem a variação em solos e hidrologia e algumas das retroalimentações biogeoquímicas em jogo na Amazônia.

     

    A BIOGEOQUÍMICA AQUÁTICA DA BACIA AMAZÔNICA

    Vista do alto por imagens de satélite, ou mesmo em mapas, a Amazônia parece um gigantesco espaço verde, recortado quase que na metade por um canal sinuoso, que corre das cordilheiras dos Andes ao oceano Atlântico. Este canal, denominado rio Solimões a partir da fronteira com o Peru, constitui, após seu encontro com o rio Negro nas cercanias de Manaus, o maior rio do mundo, denominado Amazonas. A dimensão deste curso d'água é de difícil visualização por esse tipo de imagem, mas pode-se imaginar sua importância medindo a largura dos dois principais canais na sua desembocadura no oceano, que somam aproximadamente 23 km de largura. Soma-se a isso a profundidade média de 30 metros nesses canais e podemos imaginar um "muro de água" com a altura de um prédio de 10 andares, se estendendo ao longo de 230 quarteirões de uma cidade. A quantidade exata da água que o rio descarrega para o oceano é desconhecida; medidas são disponíveis da cidade de Óbidos (PA), mil quilômetros antes da desembocadura. Entrando milhares de quilômetros mar adentro e levando ferro adsorvido nos sedimentos, um nutriente essencial para as algas marinhas, a água do Amazonas "aduba" a costa de tal forma que, segundo estimativas recentes, na sua pluma marinha é fixado em torno de 20% de todo o CO2 absorvido pelas algas nos oceanos do mundo.

    A copa das árvores vista nos satélites esconde, ainda, uma imensa rede de pequenos rios que forma o sistema de drenagem dessa bacia que se fossem todos desenhados em um mapa, em uma folha de papel comum, formariam um borrão com milhares de traços. Essa água que vem para a superfície saindo do lençol freático (a água subterrânea) se junta com a água da chuva para percorrer caminhos específicos que mudam a cada lugar, de acordo com as características da paisagem, como a topografia, os tipos de solo e a vegetação. Essas características visuais das águas da Amazônia ainda hoje são utilizadas para identificá-las, associando-as às suas propriedades físico-químicas. As águas da Amazônia estão divididas em três categorias: em pretas (como o rio Negro), brancas (como o rio Solimões, de coloração marrom) e claras (como o rio Tapajós). Apesar de válidas na maioria dos casos, nem sempre as características visuais correspondem às mesmas propriedades. As propriedades das águas se relacionam melhor com a morfologia do terreno (montanhas x planícies) com tipos de solos que percorrem, os quais, por sua vez, dependem das rochas das quais se originaram. Assim, rios mais pobres em sais, com poucos sedimentos em suspensão e coloração mais escura e pH ácido, devido à presença de ácidos húmicos e fúlvicos provenientes da decomposição de plantas, geralmente ocorrem em regiões planas, com solos arenosos sobre rochas muito intemperizadas. Em termos da composição química, podem ser identificados por apresentarem uma predominância dos cátions sódio (Na) e potássio (K) sobre os demais íons. No outro extremo se encontram rios com coloração barrenta, devida à grande quantidade de sedimentos em suspensão que carreiam e pH próximo da neutralidade (7,0), produtos da erosão de regiões montanhosas, que contêm rochas carbonatadas e que conferem uma composição química onde cálcio (Ca) e magnésio (Mg) se destacam como íons principais.

    Sazonalmente, esse último grupo de rios se comporta como até pouco tempo era o modelo geral existente para rios, no qual as concentrações de íons são maiores no período de menores descargas, quando o maior tempo de contato com a água favorece o intemperismo das rochas, e diminuem a medida que sofrem diluição com a vinda das chuvas e águas de degelo dos Andes. Na Amazônia foi descrito, pela primeira vez, um comportamento inverso, em ambientes onde as rochas são muito intemperizadas, e o aumento das concentrações ocorre justamente quando aumentam as chuvas e a lavagem dos nutrientes que se encontram armazenados nos solos e não nas rochas.

    As lições que aprendemos recentemente sobre a importância do Amazonas para o oceano Atlântico e sobre mecanismos geoquímicos tão distintos aos de rios do Hemisfério Norte talvez não sejam tão surpreendentes quanto o que descobrimos sobre a biogeoquímica desses sistemas. Em sua grande maioria, e por razões ainda não totalmente compreendidas, os rios da Amazônia apresentam concentrações de CO2 muito superiores àquelas encontradas na atmosfera. Somadas, as áreas cobertas pela água desses rios nos seus canais, e nas planícies que inundam durante as cheias, emitem para a atmosfera quantidades de CO2 que são da mesma ordem de grandeza das menores estimativas de fixação de CO2 por todos os ambientes terrestres da região, cuja área é imensamente maior. Esse transporte de carbono, da água para a atmosfera, é cerca de 13 vezes superior ao que o rio exporta para o mar (considerando as medidas em Óbidos). Mais ainda, em relação aos gases de origem biogênica, oxigênio e CO2, bem como a quantidade de carbono orgânico dissolvido, o pH e as taxas respiratórias, todos os rios, independentemente de suas características físico-químicas, apresentam exatamente o mesmo padrão sazonal. Com exceção de um rio naturalmente represado, o rio Caxiuanã, todos os rios estudados nos últimos dez anos, sejam eles grandes ou pequenos, de águas negras ou barrentas, apresentam maiores concentrações de CO2 e carbono orgânico dissolvido e valores menores para O2 e pH durante o período de cheias. Isto demonstra como a água age como elo entre os sistemas terrestres e aquáticos. Mas será que todo o CO2 das águas dos rios amazônicos vem dos ambientes terrestres? E será que o CO2 que sai dessas águas não pode ser reaproveitado dentro da própria floresta? Sabemos que águas subterrâneas em solos arenosos têm concentrações elevadíssimas de CO2 (até 50.000 ppm, contra 400 ppm na atmosfera), mas ao saírem para a superfície para formar os pequenos igarapés, quase todo esse CO2 se esvai para a atmosfera poucos metros igarapé abaixo e, portanto, esse CO2 não chega aos grandes canais. Talvez a descoberta recente de que as ligninas (macromoléculas orgânicas de origem dos tecidos das árvores, comuns nas águas do rio Amazonas), antes consideradas muito refratárias (que não se decompõe facilmente), podem ser responsáveis pelo consumo de até 75% do oxigênio da água durante sua decomposição, seja a derradeira resposta a respeito da origem do CO2 nessas águas. Mas, se quisermos realmente compreender como funciona o bioma amazônico, ainda temos um longo caminho até quantificarmos todos os fluxos biogeoquímicos internos e com o restante da biosfera daquela que é a molécula da vida, o carbono.

     

    BIOGEOQUÍMICA TERRESTRE NA AMAZÔNIA: RESPOSTAS ÀS MUDANÇAS AMBIENTAIS

    A bacia hidrográfica da Amazônia se estende desde a cordilheira dos Andes, no oeste, até o oceano Atlântico no leste e cobre cerca de 5% da área terrestre do planeta. O bioma da Amazônia se caracteriza por uma enorme floresta tropical úmida, intimamente ligada à atmosfera e aos solos pobres, inserida numa imensa rede de rios e igarapés. A vegetação do bioma inclui áreas permanentemente afetadas pela água (áreas úmidas - lençol freático na superfície ou muito perto), áreas sazonalmente alagadas (várzea e igapó, vegetação ciliar), ou áreas não afetadas por inundação (terra firme). As florestas de terra firme não recebem nutrientes dos sedimentos transportados pela água dos rios nas cheias. Outros biomas na bacia hidrográfica amazônica incluem o yungas dos declives dos Andes, partes do páramo e puna; e partes do cerrado.

    As várias fisionomias de vegetação possuem seus próprios ciclos biogeoquímicos, que apesar de ter similaridades entre si, divergem por causa das características ligadas à biodiversidade (composição florística), solos (estrutura e disponibilidade de nutrientes) e hidrologia (disponibilidade de água).

    As florestas de terra firme cobrem cerca de 70% da área do bioma da floresta amazônica e são mais conhecidas em relação à ciclagem de nutrientes, que se baseia em diversos mecanismos de "conservação" de nutrientes, especialmente na eficiente reciclagem da matéria orgânica produzida pela própria floresta. Isto envolve a assimilação de CO2 da atmosfera, e água e nutrientes essenciais em forma de minerais do solo. Em processos bioquímicos, como a fotossíntese e vários outros, se produz matéria orgânica e libera-se oxigênio. Uma parte dos compostos orgânicos produzidos é usada pelas árvores para se manter (respiração, que produz CO2, como nos humanos); enquanto uma outra parte permanece na árvore, gerando crescimento, em forma de tecidos que vão se constituir em madeira, raízes e folhas.

    Aproveitando as condições favoráveis da grande insolação, alta temperatura tropical e umidade sempre elevada, a floresta tem altas taxas de produção de matéria orgânica (que os ecólogos chamam produtividade primária), ou seja, a floresta fixa grandes quantidades de carbono (e nutrientes minerais) na biomassa. É comum encontrar florestas de terra firme com média de 300 toneladas por hectare de biomassa acima do solo (massa seca, incluindo troncos, ramos, galhos, e folhagem) sendo metade disso carbono, que é parcialmente reciclado quando morre uma árvore ou parte dela e seus tecidos são decompostos por organismos como os fungos, bactérias e outros organismos. A produção de liteira fina nas florestas intactas parece estar aumentando nas últimas décadas, acompanhando o crescimento das árvores (e de suas copas), possivelmente devido à maior concentração de CO2 na atmosfera. Para alguns nutrientes, a liteira não é a fonte principal de entrada para o solo: o fósforo (P) tem sua maior entrada da atmosfera pela precipitação, enquanto que os fluxos de magnésio (Mg) e, principalmente, de potássio (K) são fortemente influenciados pela lavagem, pelas chuvas, das copas das árvores (enriquecimento).

    Em anos "normais", ou seja, sem seca extrema ou prolongada, a floresta funciona como um pequeno sorvedouro de gás carbônico (CO2), e assim compensa as emissões de CO2 de desmatamento e queimadas na região (7). Porém, quando ocorrem grandes secas na Amazônia, como as de 2005 e 2010, o bioma floresta amazônica pode converter-se temporariamente em fonte emissora de CO2 para a atmosfera, em grande parte porque a seca provoca a morte de muitas árvores, incluindo, sobretudo, as árvores maiores. Além disso, por produzir aberturas na floresta e acumular muito material combustível, as secas facilitam incêndios florestais em áreas antes não sujeitas a esse fenômeno, emitindo mais CO2 e facilitando outros incêndios nos anos a seguir. A exploração de madeira é uma atividade crescente na Amazônia e produz também uma grande quantidade de resíduos vegetais combustíveis.

    Nas áreas desmatadas na Amazônia, por implantar cultivos agrícolas em monoculturas ou pastagens com uma só espécie de gramínea, os impactos negativos são esperados e severos, já que os mecanismos básicos de funcionamento do ecossistema da floresta ou outras fisionomias de vegetação natural, com sua efetiva proteção da superfície do solo e reciclagem de matéria orgânica e nutrientes, são rompidos. Além disso, alguns nutrientes, como o nitrogênio e o enxofre, podem ser perdidos em altas proporções na queimada inicial e/ou nas queimadas posteriores, com um forte potencial de se tornarem limitantes no sistema de produção e podem levar ao abandono da área de pastagem ou cultivo em poucos anos. A perda de sua capacidade produtiva gerou milhões de hectares abandonados de agrossistemas amazônicos, e o consequente desmatamento e uso de novas áreas de floresta. Por isto, há hoje uma busca por técnicas adequadas de reutilização dessas áreas abandonadas ou degradadas; três usos alternativos para essas áreas de capoeiras (vegetação secundária que cresce espontaneamente após abandono) têm sido mais testados: i) enriquecimento das capoeiras (especialmente com espécies madeireiras e/ou frutíferas); ii). implantação de novos sistemas agrícolas com o uso da biomassa, sem queima; iii). implantação de sistemas agroflorestais diversificados, com espécies nativas. As duas últimas têm experimentos correntes em diferentes partes da Amazônia, mostrando resultados promissores na recuperação das características físicas, químicas e biológicas do solo, bem como na reabilitação da ciclagem da matéria orgânica e dos nutrientes minerais, e na estocagem de carbono e nutrientes minerais na biomassa, trazendo assim de volta diversos "serviços ambientais" (funções da natureza que o homem aproveita) dos ecossistemas florestais.

     

    AVANÇANDO NO ENTENDIMENTO DOS PROCESSOS QUE REGULAM O CLIMA E O FUNCIONAMENTO DA AMAZÔNIA

    Estudos integrados e multidisciplinares permitem avançar o conhecimento sobre o funcionamento do ecossistema amazônico. Em particular estudos que permitam entender as conexões entre o funcionamento biológico da floresta e o clima são essenciais em um cenário onde as mudanças climáticas já estão alterando os processos básicos de funcionamento do ecossistema amazônico, sendo que a variabilidade climática natural se sobrepõe a essas mudanças afetando vastas regiões do continente. Extremos climáticos-hidrológicos, ciclagem de nutrientes, hidrologia, balanço de carbono, emissões de gases e partículas, interação entre radiação e fotossíntese, ciclo hidrológico e outros, e os seus impactos nos sistemas humanos e naturais são temas estratégicos para o país. Questões socioeconômicas que influenciam o padrão de ocupação da Amazônia são essenciais de serem entendidos, bem como as questões associadas com grandes empreendimentos, tais como hidrelétricas e abertura de estradas. O papel da Amazônia no clima global depende de muita ciência inovadora, a ser feita com integração de disciplinas e com parcerias internacionais.

    Apesar de grandes avanços alcançados no âmbito de vários programas de pesquisa da Amazônia (por ex. LBA, Geoma, PPBio, PDBFF) resta muito por fazer para entender melhor como a grande paisagem da Amazônia funciona hoje e como funcionará no futuro sob a influência crescente do impacto do uso da terra e das mudanças climáticas em curso. Para isto, o uso mais intenso de tecnologias inovadoras e de medidas com o uso de sensores avançados em satélites e aeronaves instrumentadas, bem como novos experimentos manipulativos, simulando mudanças no clima, nas concentrações de CO2 na atmosfera, e outros causados pelas mudanças no uso da terra, serão essenciais. Nos próximos anos será preciso um esforço colaborativo entre pesquisadores de várias disciplinas, com um papel de destaque para um pensamento que reúna a ecologia de paisagem e a ecologia de ecossistemas (8) no estudo de causas e consequências da heterogeneidade espacial da Amazônia para o funcionamento do bioma amazônico. Esta é uma fronteira não só para disciplinas acadêmicas, mas para a gestão ambiental da Amazônia. Além do conhecimento avançado do funcionamento de paisagens da Amazônia, será necessário avaliar, nesse contexto, as consequências potenciais das políticas públicas, como, por exemplo, as do novo código florestal para sustentabilidade ecológica e desenvolvimento econômico da Amazônia. Tudo isso exige um programa de estudos integrados dos sistemas ecológicos e socioeconômicos, junto com o desenvolvimento de um sistema que permita a avaliação objetiva de opções de desenvolvimento e consequências ambientais (por exemplo, expressadas em termos de mudanças dos valores dos serviços ecossistêmicos, um dos quais é a capacidade da bacia para sequestrar carbono). Os governos estaduais e federal deverão aproveitar a contribuição potencial da ciência à legislação socioambiental e se manifestar, nesse sentido, com fiscalização adequada para que o investimento em ciência produza um retorno tangível de curto e longo prazo.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Davidson, E. A.; Araujo, A. C. de; Artaxo, P.; Balch, J. K.; Brown, I. F.; M Bustamante,. M. da C.; Coe, M. T.; DeFries, R. S.; Keller,M.; Longo, M.; Munger, J. W.; Schroeder, W.; Soares-Filho,B. S.; Souza Jr., C. M.; Wofsy, S. C.. "The Amazon basin in transition". Nature, 481, 321-328, doi:10.1038/nature10717, Jan 19, 2012.

    2. Artaxo, P.; Rizzo, L. V.; Brito, J. F.; Barbosa, H. M. J.; Arana, A.; Sena, E. T.; Cirino, G. G.; Bastos, W.; Martin, S. T.; Andreae, M. O.. "Atmospheric aerosols in Amazonia and land use change: from natural biogenic to biomass burning conditions". Faraday Discussions, DOI:10.1039/C3FD00052D, 2013.

    3. Martin, S. T.; Andreae, M. O.; Artaxo, P.; Baumgardner, D.; Chen, Qi; Goldstein, A. H.; Guenther, A. B.; Heald, C. L.; Mayol-Bracero, O. L.; McMurry, P. H.; Pauliquevis, T.; Poschl, U.; Prather, K. A.; Roberts, G. C.; Saleska, S. R.; Silva Dias, M. A.; Spracklen, D. V.; Swietlicki, E. and Trebs, I. "Sources and properties of Amazonian aerosol particles". Review of Geophysics, Vol. 48, Article number RG2002, DOI: 10.1029/2008RG000280, 2010.

    4. Silva Dias, M.A.F; Rutledge, S.; Kabat, Silva Dias, P.; P. L ; Nobre,C.; Fisch, G.; Dolman, A.J.; Zipser, E.; Garstang, M.; Manzi, A.; Fuentes, J. D.; Rocha, H.; Marengo, J.; Plana-Fattori, A.; Sa, L.; Alvala, R.; Andreae, M. O.; Artaxo, P.; Gielow, R.; Gatti, L. V. "Clouds and rain processes in a biosphere atmosphere interaction context in the Amazon Region". Journal of Geophysical Research, Vol. 107, No. D20, 8072 - 8092, doi:10.1029/2001JD000335, 2002.

    5. Cirino, G.G.; Souza, R. F.; Adams, D. K. and Artaxo, P.. "The effect of atmospheric aerosol particles and clouds on net ecosystem exchange in Amazonia". Atmos. Chem. Phys. Discuss., 13, 28819-28868, doi:10.5194/acpd-13-28819-2013, 2013.

    6. Huntingford, C. and co-authors. "Simulated resilience of tropical rainforests to CO2-induced climate change". Nature Geoscience, 6, 268-273(2013) doi:10.1038/ngeo1741, 2013.

    7. Malhi et al., 2012. Malhi, Y. "The productivity, metabolism and carbon cycle of tropical forest vegetation". Journal of Ecology, 100(1): 65-75, 2012. 8. Lovett, G. M.; Jones, C. G.; Turner, M. G. and Weathers, K. C. (Edit.) Ecosystem function in heterogeneous landscapes. Springer-Verlag, New York, New York, USA. 2005.

     

     

    Paulo Artaxo é professor titular do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), é membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e é membro da coordenação do Programa Fapesp de Mudanças Globais.

    Maria Assunção Faus da Silva Dias é professora titular do Departamento de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), membro do IPCC e é membro da Academia Brasileira de Ciências.

    Laszlo Nagy, é gerente científico do Programa LBA, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e Fundação Amazônica de Defesa da Biosfera.

    Flávio J. Luizão é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e desenvolve pesquisas na área de biogeoquímica e ciclagem de nutrientes. Hillândia Brandão da Cunha é pesquisadora titular do Inpa, desenvolve atividades voltadas para a caracterização hidrobiogeoquímica de ambientes lóticos, lênticos e qualidade das águas superficiais e águas subterrâneas na Amazônia.

    Carlos Alberto Quesada é pesquisador do Inpa. Desenvolve pesquisas com ciclos biogeo químicos e interações entre os solos e a dinâmica florestal na Amazônia.

    José A. Marengo é pesquisador do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CCST-Inpe), é membro do IPCC e é membro dos comitês científicos de vários programas internacionais (IAI, IGBP) e nacionais (Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, INCT- Mudanças Climáticas)

    Alex V. Krusche é professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da USP, coordenador da Rede Beija-Rio de pesquisas em rios da Amazônia e do projeto brasileiro do Belmont Forum sobre segurança hídrica.