SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.66 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo set. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300018 

    CULTURA
    FOTOGRAFIA

     

    Sebastião Salgado em cores e movimento

     

     

    Em 2014, Sebastião Salgado completou 70 anos, 41 deles dedicados à fotografia. Duas obras, mesmo que não intencionalmente, marcaram a data. Uma delas, o documentário O sal da terra, dirigido pelo cineasta Juliano Salgado, filho mais velho do fotógrafo, e co-dirigido por Wim Wenders, acabou recebendo o prêmio especial do júri, da seção "Um certo olhar" no Festival de Cannes 2014. A outra, a biografia Sebastião Salgado - da minha terra à Terra (Editora Paralela) foi escrita em parceria com a jornalista francesa Isabelle Francq e conta a história de Sebastião Salgado desde sua infância, na pequena Aimorés, interior de Minas Gerais, até o mais recente projeto, Gênesis, que resultou em um livro e diversas exposições em todo mundo, em 2013. Filme e livro tentam revelar o homem além do artista - militante, fotojornalista, ativista - temperando com cores e movimento a história de vida de um principais nomes da fotografia mundial hoje.

    Diferentemente de outros filmes realizados sobre a obra de Salgado, O sal da terra é, acima de tudo, um olhar afetuoso, de seu filho, que redescobre o fotógrafo para o público e para si mesmo. "Meu pai sempre viajou muito. Nossa relação era boa, porém distante. Com o filme houve uma conexão entre nós", conta Juliano Salgado. Em 2009, já envolvido no projeto Gênesis, que tinha por objetivo fotografar regiões do mundo ainda intocadas pelo processo de urbanização, Sebastião Salgado convidou o filho para acompanhá-lo na viagem para Amazônia, onde ficaria com a tribo Zo'é, que vive no norte do estado do Pará, com pouquíssimo contato com os humanos, e que ornamentam o lábio com um longo filete de madeira, introduzido no lábio inferior. "Ele me propôs que filmasse o trabalho dele e sua rotina com os índios, gostou do resultado e, então, surgiu a ideia do documentário", lembra o cineasta. "Meu pai sempre chegava das viagens contando muitas histórias, sobre as pessoas e os lugares onde tinha ficado, nem sempre com final feliz. Eu queria entender como ele chegava ao resultado final, às fotos que nós conhecemos e como ele enfrentava as situações difíceis. Descobri que ele tem um modo muito empático para se relacionar com as pessoas", diz Juliano, que o acompanhou em outras cinco viagens. O documentário foi uma maneira de dar coerência a essas experiências, a essas histórias.

     

     

    EMPATIA E PACIÊNCIA

    Sebastião Salgado é um homem tímido. Talvez por isso ele tenha um profundo respeito pelo espaço e pela imagem do outro. Antes de fotografar ele estabelece uma relação de empatia com o espaço e com as pessoas que quer retratar. "As pessoas que fotografo posam para mim. Fazem isso porque querem fazer, porque têm confiança", diz ele em sua biografia. E essa relação só acontece com o tempo. "Quem quer ser fotógrafo não pode ter pressa. Não há como acelerar os fatos. É preciso descobrir o prazer da paciência", afirma. Assim como cada fotografia requer tempo certo para capturar o instante desejado, os projetos de Sebastião Salgado também são longos, sempre desenvolvidos ao longo de vários anos. No último projeto, Gênesis, percorreu 32 regiões de todos os continentes do mundo, exceto a Europa, de 2004 a 2012, para fotografar lugares e habitantes de partes intocadas do planeta.

    A confiança também foi um dos ingredientes fundamentais para a produção do documentário, feita de distanciamentos e aproximações. "É claro que o fato dele ser meu pai interferiria no resultado, mas desde o começo Sebastião confiou na maneira como eu conduzia o trabalho. Por isso a figura de Wim Wenders foi tão importante. Ele ajudou a encontrar a distância certa, foi um ponto de equilíbrio", afirmou Juliano. Wenders, diretor alemão de Paris, Texas (1984), Asas do desejo (1987) e Buena Vista Social Club (1999), se juntou ao projeto pouco tempo depois que Juliano iniciou as filmagens. Amigo de Sebastião Salgado desde a década de 1990, ele queria fazer um filme sobre o fotógrafo, e, segundo Juliano, viu uma oportunidade de fazer isso, quando ele lhe mostrou as mais de 15 mil horas de filmagens que tinha feito.

     

    MUNDO EM PRETO E BRANCO

    Diferentemente de grande parte da obra de Sebastião Salgado, o documentário usa a cor, mas sua função é para marcar uma temporalidade. "São vários formatos de cor, cada um permite entender um momento da vida dele. Nas memórias usamos o preto e branco. Já as referências ao tempo presente estão em cores", explica Juliano. Sebastião Salgado há muito tempo abandonou as cores em suas fotografias, sempre em preto e branco, destacando a luz e o negro. "Não preciso do verde para mostrar árvores, nem do azul para mostrar o mar ou o céu. A cor pouco me interessa na fotografia", escreve ele. "Com o preto e o branco e todas as gamas de cinza, posso me concentrar na densidade das pessoas, suas atitudes, seus olhares sem que sejam parasitados pela cor. Quando contemplamos uma imagem em branco e preto, ela penetra em nós, nós a digerimos e, inconscientemente, a colorimos e isso é fenomenal", completa.

    O documentário mostra duas mudanças importantes na vida e no trabalho de Sebastião Salgado, também descritos na biografia: o uso das imagens digitais e o tema "paisagens e animais". Desde o início de seu trabalho como fotógrafo Salgado escolheu o homem, a mulher, a criança, em situações de exílio, fome, guerra. "A fotografia para mim é uma escrita, uma linguagem poderosa porque pode ser lida em todo o mundo sem tradução. Queria mostrar, por meio da minha fotografia, um mundo privado de quase tudo", escreveu. "Ninguém tem o direito de se proteger das tragédias de seu tempo, porque somos todos responsáveis, de certo modo, pelo que acontece na sociedade em que escolhemos viver", disse.

     

    (RE)NASCIMENTOS

    Em sua biografia, Salgado relata que uma das coisas que aprendeu nos anos em que fotografou homens trabalhando, nas mais diversas ocupações, em vários lugares do mundo e que resultariam no livro Trabalhadores (1997), foi que o trabalho que faz o homem, o transforma, o molda. Pois a fotografia também transformou o fotógrafo. Depois de Êxodos (2000), pensou em desistir, tamanho o sofrimento, ódio e violência que presenciou. Foi nesse momento que surgiu o Instituto Terra.

    O projeto, ideia original de sua mulher, Lélia Deluiz Wanick Salgado, começou com o reflorestamento de uma área devastada da fazenda que Sebastião Salgado herdou dos pais, em Aimorés. Hoje se dedica ao desenvolvimento sustentável da região do Vale do Rio Doce, fornecendo mudas para programas de reflorestamento nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. "O espetáculo de ver a vida voltar para a fazenda me deu certo encantamento, como se, depois de tanta tristeza e desolação, a vida voltasse para mim também", escreveu. Foi aí que surgiu o projeto de contar uma história fotográfica que mostrasse a beleza do mundo. Nascia Gênesis. "Depois de passar anos mostrando homens, mulheres e crianças em seu cotidiano, eu fotografaria vulcões, dunas, geleiras, florestas, rios, cânions, baleias, renas, leões, pelicanos, o mundo da selva, do deserto e das geleiras. Descobrindo o planeta, descobri a mim mesmo", revelou.

    A biografia Da minha terra à Terra e o documentário O sal da terra, acompanham essas transformações, de um modo simples, direto e, às vezes, comovente. "Eu tinha várias perguntas a responder com esse documentário, algumas respostas estão no filme, outras pertencem só a nossa relação de pai e filho", conta Juliano Salgado. Declarando-se feliz com a receptividade e surpreso com a premiação em Cannes, ele acredita que ambas se devem à mensagem que o filme passa: "A história do Tião e da Lélia é uma história de transformação. Eles escolheram um modo de agir que é positivo, mostrando que mesmo diante de experiências difíceis é possível fazer do mundo um lugar melhor". O documentário deve ser exibido no Brasil no último trimestre deste ano.

     

    Patrícia Mariuzzo