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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.3 São Paulo set. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000300019 

    CULTURA
    NOVO CINEMA IUGOSLAVO

     

    Quem filma faz a hora, não espera acontecer: Želimir Žilnik

     

     


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    De 19 de maio a 1º de junho, o cinema da Universidade de São Paulo, Cinusp Paulo Emílio organizou a mostra Želimir Žilnik e a Black Wave do Cinema Iugoslavo, em evento apoiado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pelo Laboratório de Investigação em Cinema e Audiovisual (Laica) e pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Por ocasião da mostra, Žilnik veio pela segunda vez ao Brasil, para palestras e workshop entre os dias 24 e 20 de maio.

    Želimir Žilnik foi um jovem expoente do movimento cinematográfico iugoslavo mundialmente conhecido como Black Wave - e um dos cineastas mais criativos de sua geração ainda em atividade. Ganhou o Urso de Ouro na 19ª edição do Festival de Berlim com seu longa de estreia, Early works (Rani radovi, 1969), e, a partir de então, consolidou uma carreira em cinema e televisão que viria a ser reconhecida internacionalmente.

    A Onda Negra iugoslava, ou simplesmente Black Wave (no original, Crni Talas), é um movimento cinematográfico que eclodiu na Iugoslávia por volta de 1963, permanecendo ativo até meados de 1972. Dentre os filmes mais representativos da Black Wave iugoslava em longa-metragem, podemos citar Three (1966) e I even met happy gypsies (Feather gatherers, 1967), ambos de Aleksandar "Saša" Petrovi'c; WR: Mysteries of the organism (1971), de Dušan Makavejev, e Early works (1969), de Želimir Žilnik. O termo Black Wave surge pela primeira vez para designar (negativamente) uma parcela da produção cinematográfica iugoslava no artigo "A onda negra no nosso cinema" ("Crni talas' u nasem filmu"), de Vladimir Joviˇci'c, jornalista alinhado ao Estado. Publicado no periódico Borba em 3 de agosto de 1969, o artigo de Joviˇci'c etiquetava de forma sentenciosa uma verdadeira "tarja preta" sobre filmes contemporâneos realizados por uma geração de novos cineastas. Joviˇci'c escrevia em reação direta ao Early works de Žilnik, um filme exemplar das tendências da Black Wave iugoslava, contendo a maioria das desconfianças e questões emergentes no mundo socialista no final dos anos 1960, após a Primavera de Praga, e os vários movimentos estudantis internacionais.

     

    NOVO CINEMA IUGOSLAVO

    Na verdade, não havia nada de "negro" no cinema iugoslavo daquele período. Ele e seus colegas chamavam seu trabalho de Novo Cinema Iugoslavo, uma ruptura com o realismo socialista (o estilo oficial ainda por volta do fim dos anos 1950) em busca de um cinema mais crítico e genuinamente engajado com a realidade de seu país - e livre da propaganda política estatal. Segundo Žilnik, "Black Wave significa que você é muito crítico e que observa a realidade através de 'óculos escuros', uma percepção completamente falsa do movimento".

    Želimir Žilnik estreou como cineasta profissional com o curta documentário Journal on village youth, winter (Zurnal o omladini na selu, zimi, 1967), no qual registra as formas de diversão dos jovens do interior durante o inverno em seu país. Em 1969 Žilnik lança o documentário observativo June turmoil (Lipanjska gilbanja), no qual registra manifestações estudantis em Belgrado, em 1968, subsequentes ao Maio de 68 em Paris. Os anseios por liberdade de expressão e reformas do Estado presentes em June turmoil serviram como inspiração para a estreia de Žilnik em longa-metragem com o aclamado Early works, filme que pode ser visto como um divisor de águas na carreira do cineasta e no próprio movimento Black Wave.

    Realizado ainda na Iugoslávia, Filme negro (Black film / Crni film), de 1971, talvez seja o curta mais emblemático do "método Zilnik" de fazer cinema. Neste documentário participativo, o cineasta resgata seis moradores de rua de Novi Sad, levando-os para passar a noite em seu próprio apartamento de 48m2 e dois quartos, onde também vivem sua mulher e sua filha pequena. Em paralelo, Zilnik entrevista pessoas na rua perguntando o que fazer com os sem-teto sob sua guarda. As respostas são evasivas, vagas ou utópicas. O humor negro e a ironia (característicos da Black Wave iugoslava, mas em particular do cinema de Žilnik) orientam a tônica de Filme negro, no qual se evidencia o recurso do diretor a uma estratégia próxima da reductio ad absurdum - a "redução ao absurdo" ou prova por contradição, também conhecida como argumento apagógico.

     

    INFLUÊNCIA BRASILEIRA

    Perto do fim dos anos 1980, Žilnik realizava filmes no contexto de uma cooperativa para cinema e televisão. Seus trabalhos nesse período prenunciavam as crescentes tensões e mudanças sociopolíticas que viriam a se abater sobre o país, notadamente os títulos The second generation (Druga generacija, 1983), Pretty women walking through the city (Lijepe zene prolaze kroz grad, 1986) e The way steel was tempered (Tako se kalio celik, 1988). The way steel was tempered oferece uma visão irônica do confronto entre o proletariado (e também o lumpenproletariado) e a elite burguesa, com foco sobre as aventuras amorosas e profissionais do metalúrgico Misel (Relja Baši'c). Guardadas as devidas proporções e características de entorno, um substrato crítico comum a filmes como A opinião pública (1967), de Arnaldo Jabor, ou ainda Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, parece subsistir nesse filme de Žilnik, assim como em outros títulos de sua filmografia.

    A relação com o cinema brasileiro não é gratuita. O próprio Žilnik relembra seu primeiro contato com o Cinema Novo brasileiro quando, ainda jovem, assistiu a filmes como o já citado A opinião pública, de Jabor, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, apresentados por Lino Micciche em Pesaro, na Itália. Nos anos 1990, com uma carreira independente consolidada, Žilnik realizou uma série de longas de ficção e documentários sobre os eventos que aconteciam nos Bálcãs. O polêmico e celebrado Marble ass, por exemplo, ganhou o Prêmio Teddy na Berlinale, em 2005. Este filme independente de Žilnik investiga o homossexualismo em Belgrado, mostrando uma realidade negada pelas classes reacionárias do país. O colapso de todo um sistema de valores e os problemas enfrentados por refugiados e imigrantes na nova realidade da União Europeia tornaram-se o foco de interesse de Žilnik em seus filmes mais recentes exibidos em mais de 250 festivais internacionais. Atualmente, Žilnik tem trabalhado num projeto de documentário sobre a imigração africana na Sérvia contemporânea.

     

    FILMES PARA QUEM

    Em seu estilo, Žilnik recorre sempre ao improviso, buscando autenticidade em produções que mesclam imagens documentárias a trechos encenados. A opção por trabalhar com atores não profissionais também é frequente O cineasta atribui seu método de trabalho não só a intenções estéticas e políticas, mas também a contingências da própria realidade da produção cinematográfica iugoslava. "Você não pode pedir a alguém envolvido num protesto nas ruas que exponha todas as fraquezas de sua posição e de seus problemas familiares, os quais são causados pela pobreza em que se encontram. Então uso a ficção para criar o conflito dramático", disse. Ele afirma, no entanto, que não utiliza um método único, porque seus filmes são na verdade muito diferentes. "Muitas vezes tenho de trabalhar como numa collage, reunindo materiais diversos numa única obra, como em Old school capitalism (Stara skola capitalisma, 2009), uma crítica poderosa à incomunicabilidade política e social na Sérvia contemporânea pós-comunista, realizado ao longo de um ano e em diferentes locais do planeta. Em outras ocasiões, como um escultor, retiro o material que preciso de uma única pedra bruta. Por exemplo, como em Marble ass, que realizamos em 11 dias vivendo em comunidade", explica o diretor. "Mas, se há algo que eu possa resumir num método pessoal, seria meu interesse em evitar uma suposta abordagem convencional, a qual sofre o peso de restrições externas ao trabalho artístico. Dentre essas restrições, destaco os grandes orçamentos, quando você não tem o tema, nem os atores nem a estória apropriados ao grande público, de Nova York à Indonésia. E eu nunca tenho esse tipo de estória", completa Žilnik. O cineasta esclarece ainda que essa é uma opção metodológica: "percebi que depender de grandes orçamentos vai de encontro às estórias que me interessam, portanto prefiro trabalhar de forma mais independente e cooperativa. Minha segunda opção metodológica consiste em ser completamente aberto em termos de casting. Para mim esse é o segundo fator mais importante na realização de um filme. O primeiro é o conceito, ou o roteiro, a estória na qual se está interessado - e salvo uma ou duas ocasiões, nunca trabalhei com um conceito ou estória no qual não confiasse plenamente". E para quem Žilnik faz seus filmes? Segundo o próprio cineasta, para ele mesmo e para os participantes de sua obra em primeiro lugar - o que inclui o elenco, frequentemente formado por atores não profissionais. Em seu corpo-a-corpo com a realidade das ruas e das comunidades anônimas, o cinema de Žilnik captura o atropelo do homem comum pela história com h maiúsculo - como em One woman one century (Jedna žena - jedan vek, 2011), documentário cuja personagem central é Dragica Vitolovi'c-Srzenti'c, uma bem-humorada senhora de mais de 100 anos que testemunhou a ascensão e queda de diferentes regimes (monarquia, comunismo, pós-comunismo), e cuja história pessoal se confunde com a memória coletiva de seu próprio país. Os filmes de Žilnik ilustram com propriedade essa micro-história dos anônimos e, por mais dura e chocante que possa ser essa realidade, o relato nunca é sisudo.

     

    CAPTURANDO O FLUXO DA VIDA

    Com uma extensa filmografia de mais de quarenta títulos em sua carreira ao longo de mais de quatro décadas, Žilnik continua filmando e percorrendo o mundo em workshops e palestras. "Meu esforço principal é encorajar os jovens a usar as novas tecnologias não com a pretensão de realizar apenas grandes filmes comerciais, mas com o objetivo de tentar capturar o fluxo da vida a seu redor. Imagens em movimento são hoje a principal fonte da história recente, de nosso conhecimento sobre tempos passados mais confiável que a palavra escrita. Em sua palestra aos alunos da Unicamp e no workshop gratuito oferecido na ECA-USP, Žilnik deixou uma mensagem aos jovens aspirantes a diretores de cinema: "desenvolvam bem seu conceito, acreditem nele e trabalhem com paixão, mas não sacrifiquem suas ideias esperando por grandes financiamentos, públicos ou privados". O cinema de Žilnik está na rua, pertencendo àqueles que fazem a hora - e não esperam acontecer.

     

    Alfredo Suppia