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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo oct./dic. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400008 

     

    ENTREVISTA – FRANCK SEGUY

    Pesquisador considera posição atual do Haiti na economia mundial como uma colônia dos países imperialistas

     

    Desde o terremoto de 2010, que matou 300 mil pessoas no Haiti e arrasou o território, o país está ocupado por tropas internacionais de militares que visam manter a ordem local. O episódio sísmico aumentou a diáspora haitiana pelo mundo e a fragilidade da população, que sofre com a falta de empregos, de infraestrutura e de autonomia. Para o sociólogo e pesquisador haitiano Franck Seguy, o Haiti ocupa a epiperiferia, pois além de estar na periferia dos Estados Unidos, passa a ser ocupado por países em desenvolvimento como o Brasil.

    Colônia francesa até 1804, quando obteve sua independência mediante pagamento de multa, o Haiti ainda não conquistou sua soberania e continua sendo explorado como colônia, sobretudo em função da fragilidade política, da mão de obra barata e especializada, afirma Seguy.

    Em sua tese "A catástrofe de janeiro de 2010, a Internacional Comunitária e a recolonização do Haiti", defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação do sociólogo Ricardo Antunes, Seguy analisa a exploração sofrida pelo Haiti desde 1915, quando os norte-americanos se apossaram do território, embasando-se na doutrina Monroe que tem como lema: A América para os americanos. "A América para os norte-americanos", corrige.

    Segundo o sociólogo, o interesse pelo Haiti ocorre pela posição estratégica ocupada, devido ao Canal do Panamá e à proximidade com grandes centros. Em 2004, com o golpe ao presidente Jean Bertrand Aristide, a Organização das Nações Unidas (ONU), ocupou o país e criou a Minustah, uma força militar para a estabilização do Haiti, conduzida há dez anos pelo Brasil. Para o pesquisador, a missão não é evitar conflitos no país, mas movimentos sociais contrários à política das zonas francas e às condições trabalhistas precárias.

    Nesta entrevista, Seguy aborda questões polêmicas sobre a situação atual do Haiti. "O Haiti é a nova colônia dos Estados Unidos que, entre outros interesses, fazem uso da mão de obra barata para fomentar indústrias norte-americanas", aponta referindo-se às relações desiguais entre os países que devem se intensificar com a criação de 42 novas zonas francas no Haiti. O sociólogo defende a retirada imediata das tropas militares.

    Em sua tese, você cita um estudo do economista norte-americano Paul Collier sobre controle da mão de obra haitiana, um ano antes do terremoto. Você acredita que o sismo criou as condições para que esse projeto fosse posto em prática?

    Desde 1915, o Haiti não deixou de ser um tipo de propriedade privada dos sucessivos governos norte-americanos; apenas as formas de cada governo lidar com o Haiti é que mudam de acordo com o contexto. Atualmente, o conceito fundamental para entender essa dominação é a lei PARDN (Plano de Ação para Reerguer e Desenvolver o Haiti), ou lei Hope, como é conhecida no Haiti. Esta lei nasceu em 2006, a partir do relatório do economista norte-americano, Paul Collier, enviado ao país pelo secretário geral da ONU. O economista apresentou o relatório, em 2009, que foi posto em prática após a destruição que o país sofreu em 2010, devido ao terremoto. O plano emergencial para reerguer a economia haitiana era, na verdade, uma medida premeditada que encontrou, no terremoto, o cenário perfeito para se realizar.

     

     

    Qual o teor da lei Hope e como ela impacta o Haiti?

    No relatório, o economista diz que o Haiti é um país que possui estabilidade social e que é estratégico, por ser vizinho de grandes mercados. Possui, ainda, mão de obra mais barata que a chinesa, e é um país pouco regulamentado, sem muitas leis trabalhistas, sindicatos ou proteção ao trabalhador. Além disso, oferece trabalhadores qualificados, pois o país tem tradição na produção têxtil oriunda das décadas de 1960, 1970 e 1980, dispensando, assim, treinamento oneroso para as empresas. O economista acrescenta que, do ponto de vista da indústria do vestuário, o Haiti é o país mais seguro para investir. Empresas que produzem artigos como calçados e vestuários no Haiti têm a liberdade de entrar no mercado norte-americano sem pagar impostos. Já para produtos, que estão nos EUA, voltarem para o Haiti e serem comercializados, há duas condições: a porcentagem da produção que pode voltar para o país­ de origem é de 25 a 30%. Quando o produto volta para o Haiti, torna-se mercadoria importada, ou seja, deve-se pagar taxas de importação para adquirir o produto em solo haitiano. Esse plano é fundamental para entender todo o processo em andamento, que não dispensa a construção de zonas francas em pontos estratégicos do país.

    Como se dá o processo de construção de zonas francas?

    O Haiti é a nova colônia dos Estados Unidos, com sua produção destinada somente àquele mercado e com forte presença norte-americana em solo haitiano através da figura do ex-presidente Bill Clinton. Somente parte da produção fica no Haiti, que não se constitui como mercado consumidor relevante. No projeto de criação de 42 zonas francas, as leis haitianas não têm validade, somente o salário mínimo local é válido, cujo valor é de US$ 4 ao dia. Para as zonas francas, as terras dos camponeses haitianos são expropriadas, e eles se tornam mão de obra barata. A mais nova zona franca fica na região de Caracol. O projeto é de que se construa 42 zonas com a possibilidade de se empregar 75 mil trabalhadores até 2020. Não há, porém, nenhuma garantia de que esse número de pessoas será respeitado.

    A mais nova cidade haitiana é Canaã, qual o cenário em que ela foi constituída?

    A cidade de Canaã, que se situa a 10 quilômetros de Porto Príncipe, nasceu como medida do governo para abrigar moradores da capital haitiana que perderam suas casas durante o terremoto. Canaã passou de acampamento provisório para novo lar dos desalojados. Por se tratar de um grande espaço desocupado, as famílias começaram por si mesmas a demarcar espaços e, de maneira irregular, começaram a erguer as próprias casas, sem nenhum tipo de avaliação de risco ou licença de construção. Um engenheiro me assegurou que os moradores já investiram US$60 milhões nas construções irregulares que, no caso de outro terremoto, apresentam grande risco para a população, podendo causar novo morticínio.

    O que é a Internacional Comunitária e como ela afeta o Haiti?

    É um termo criado pelo professor haitiano Jean Anil Louis-Juste, assassinado duas horas antes do terremoto. A Internacional Comunitária é o que a literatura dominante chama de comunidade internacional. Quando as pessoas dizem "a comunidade internacional não vai aceitar isso", não estão se referindo ao Haiti, à República Democrática do Congo, ou ao conjunto de países do mundo, mas sim às economias dominantes, como Estados Unidos, França, Alemanha, Canadá. Com a criação do termo, Louis-Juste quis dizer que não existe uma comunidade internacional, o que existe é um conjunto de países imperialistas que têm interesses diferentes, que se unem no momento de dominar os países em desenvolvimento. O professor que foi assassinado ainda dizia que esse grupo se une quando um país em desenvolvimento quer fugir do controle das regras impostas pelo capitalismo, que é representado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e pela OMC (Organização Mundial do Comércio), entre outros. O Haiti é, então, afetado através do braço ideológico desses países e instituições que se apresentam como ONGs, cuja atuação influencia políticas públicas.

    O Brasil está, desde 2004, no comando da Minustah. Qual é o papel do Brasil no Haiti?

    A Minustah tem a missão de reprimir movimentos sociais e manter a estabilização da situação no Haiti. A verdadeira função desse exército internacional é evitar que o povo se revolte contra a política das zonas francas que está sendo implantada no país, é fazer o povo se contentar em trabalhar muito, produzir muito e receber baixos salários. A única ajuda proporcionada por essa força é ao capital estrangeiro. O papel não só do Brasil, como de muitos outros países em desenvolvimento presentes no Haiti, é a terceirização das forças armadas. Os Estados Unidos decidiram que não queriam mais ter exército presente no Haiti e terceirizaram essa função.

    Qual a saída para o Haiti?

    O primeiro passo é a saída da Minustah, saída imediata e não gradual. Com isso, as classes sociais se enfrentariam para decidir os rumos do país, num confronto decorrente do aspecto organizador da sociedade e que poderia criar um novo rumo para o Haiti. Esse enfrentamento pode melhorar ou não o país, mas o povo teria sua soberania recuperada e poderia se organizar enquanto sociedade.

     

    Viviane Lucio