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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.66 no.4 São Paulo out./dez. 2014

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000400011 

     

    Vigiar e, depois de 1964, punir: sobre Samuel Pessoa e o Departamento Vermelho da USP

    Gilberto Hochman

     

    Este ensaio começa pelo ato final. Imediatamente após o golpe civil-militar de 1964, um autodenominado grupo de acadêmicos "democratas e verdadeiramente cristãos" enviou carta anônima ao então governador de São Paulo, Adhemar Pereira de Barros. Essa carta denunciava professores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) que seriam comunistas. Solicitavam ações urgentes e eficazes para acabar com o "poderoso núcleo sino-bolchévico" (grifo no original) que teria se instalado naquela instituição (1). A lista incluía 23 nomes de vários departamentos, como o de Fisiologia, de Química, da Faculdade de Higiene e Saúde Pública – em alguns casos também os respectivos cônjuges eram citados. Indicavam com um asterisco aqueles que tinham sido mais ativos na primeira hora da resistência ao golpe dentro da universidade, participando de assembleias e reuniões. O maior número de denunciados, doze do total, eram de membros do Instituto de Medicina Tropical, então vinculado à Faculdade de Medicina e, principalmente, do Departamento de Parasitologia (2). Essa carta é reveladora do clima de acusações, perseguições e acertos de contas que tomou conta da Faculdade de Medicina da USP a partir de abril de 1964.

    Ainda em maio do mesmo ano, a denúncia foi encaminhada pelo governador às autoridades militares e policiais para providências. E essa mesma lista de denunciados foi reproduzida no pedido de informações ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) feito em julho pelo tenente-coronel Enio dos Santos Pinheiro que fora encarregado do Inquérito Policial-Militar (IPM) que investigaria "atividades subversivas na Faculdade de Medicina" da USP (3). O cerco político e ideológico a esses professores, e a outros profissionais da Faculdade de Medicina, se completaria com a identificação de "comunistas fichados" que atuavam também no Hospital das Clínicas (HC), em listas de funcionários fornecidas pela direção do hospital e enviadas pelo ­Deops­­ à Secretaria de Segurança Pública (SSP). Ao receber essa lista, em 20 de abril, um bilhete do governador foi anexado solicitando ao Deops e à SSP que o então diretor do hospital, Sylvio Alves de Barros, fosse ouvido "sobre como iniciar o processo de exclusão desse pessoal" baseado no Ato Institucional nº1 (4). Alguns nomes constavam de ambas as listas, como o de Luiz Hildebrando Pereira da Silva. O desfecho violento é conhecido: prisões, exílio, inquéritos, perseguições, demissões e aposentadoria compulsória de grande parte dos listados, primeiro em 1964 e, depois, em 1969, já sob a vigência do AI-5.

    Como já indicado por documentos e outros trabalhos (5), a Faculdade de Medicina foi certamente uma das mais atingidas nos expurgos de 1964 na USP e, nela, o departamento mais vitimado foi aquele intitulado de "vermelho" – tanto por admiradores como pelos detratores: o Departamento de Parasitologia. Este departamento se caracterizava pela expressiva presença de militantes e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se conformara em torno da liderança científica e política de Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976), catedrático de parasitologia médica entre 1931 e 1955, ano em que se aposentou voluntariamente tornando-se professor emérito. Samuel Pessoa teve uma carreira científica e universitária excepcional combinada a uma igualmente intensa militância comunista e internacionalista (6). Por quatro décadas seu compêndio de parasitologia médica foi leitura obrigatória para alunos de todas as faculdades de medicina no Brasil (7) e formou, em sala de aula, nos laboratórios e nos livros, gerações de profissionais no campo da Parasitologia e da Medicina Tropical. Parte considerável dos atingidos pelas perseguições na escola de medicina da USP tinham sido seus alunos e/ou seus colaboradores diretos, como por exemplo Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Luiz Rey, Ruth e Victor Nussenzweig, Maria e Leonidas Deane e Erney Camargo. Eram também discípulos da particular combinação construída por Pessoa, em sua trajetória entre as décadas de 1940 e 1970, entre produção de conhecimento no campo da parasitologia, o combate às doenças endêmicas das populações rurais brasileiras e a luta pelo socialismo.

    Para o cientista e comunista, a medicina pública, em especial o tema das doenças parasitárias que afligiam o Brasil rural, seria indissociável da reforma agrária e da luta contra o latifúndio e, num plano ampliado, da transformação social rumo ao socialismo. Neste último ponto se diferenciava radicalmente de outros médicos e sanitaristas, seus antecessores e contemporâneos, com quem compartilhava a inquietação com as mazelas das endemias rurais e a necessidade de uma ação estatal ampliada. Suas preocupações com os problemas brasileiros se refletiram também nas ideias sobre a formação dos médicos e o papel da universidade no Brasil (8). Apesar de defender a importância da organização sanitária para minorar os problemas de saúde, Pessoa teve uma única experiência na administração da saúde pública como diretor de Saúde Pública do estado de São Paulo, entre dezembro de 1942 e fevereiro de 1944.

    O prestígio científico e a militância comunista levaram Samuel Pessoa a participar de esforços nacionais e internacionais pela paz, contra o uso de armas atômicas, químicas e biológicas, na década de 1950. Uma militância associada a uma ampla rede de intelectuais e organizações comunistas, associadas ao PCB e pró-soviéticas, no Brasil e no exterior. Participou da polêmica Comissão Científica Internacional que denunciou, em 1952, a utilização de armas biológicas pelos EUA durante a Guerra da Coreia. Em 1958 viajaria, e também se encantaria, com a China de Mao Tsé-Tung. Suas ideias e ações produziram desconfiança e perseguições por governos – fossem democráticos ou autoritários, e por organizações da saúde internacional, tais como a Fundação Rockefeller, que com ele mantinha relações desde a escola de medicina nos anos de 1920. Viveu sempre a tensão de, ao mesmo tempo, ser reconhecido nacional e internacionalmente como a voz mais autorizada da medicina brasileira no campo da saúde rural e ser questionado e perseguido por suas posições políticas. O convívio público entre comunismo e ciência não foi pacífico. Essa indissociabilidade entre parasitologia médica e marxismo em Samuel Pessoa torna sua trajetória exemplar para a compreensão da ciência na Guerra Fria e alguns dos resultados do pós-1964.

     

     

    A recente bibliografia sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar tem chamado apropriadamente a atenção sobre as características novas, dramáticas e específicas das relações entre o regime militar, as universidades e a ciência brasileira vis-à-vis ao período de experiência democrática brasileira, de 1945-64 (9). Como sugere Rodrigo Patto Motta, repressão-acomodação/negociação/cooptação foram combinações presentes no projeto autoritário-modernizador para a universidade brasileira durante o regime militar (10). Esse projeto foi constituído por movimentos pendulares entre esses polos – por vezes coetâneos, por vezes diacrônicos. Por outro lado, a dimensão repressiva, particularmente na primeira década do regime autoritário, esteve associada a um fenômeno de mais longa presença no Brasil pós-1930: o anticomunismo, como ideologia, como política governamental e como organizador da prática policial, que ganhou mais saliência com a Guerra Fria (11). É precisamente o anticomunismo que parece explicar a primeira onda repressiva sobre a universidade brasileira, em particular, a meu ver, a eleição da Faculdade de Medicina e de seu Departamento de Parasitologia como alvos privilegiados.

    O ponto central deste ensaio, com resultados de pesquisa mais ampla em andamento (12), é indicar que a repressão sobre esse grupo e sua principal liderança é o capítulo final de quase duas décadas de vigilância, investigações, interrogatórios, prisões eventuais e perseguições veladas. Estas ações podem ser atestadas num expressivo "acervo de vigilância", como eu denominaria o grande número de documentos, fichas e prontuários da polícia política nos quais o grupo da parasitologia médica da USP é citado direta ou indiretamente (13). Em particular, sobre Samuel Barnsley Pessoa, sua esposa e também militante comunista, D. Jovina Rocha Alves Pessoa, e Luiz Hildebrando Pereira da Silva que trabalhou diretamente com Pessoa desde os anos 1950 e será inscrito invariavelmente na documentação como uma das principais lideranças comunistas, primeiro como estudante e, depois, como professor. Estas décadas de observação policial produziram uma "acumulação de conhecimento" pela polícia política e atores anticomunistas que pode ganhar materialidade e ser convertida em ações repressivas e antidemocráticas a partir do golpe militar de 1964.

    O que estou sugerindo é que a perseguição e punição do regime autoritário a esses ditos "subversivos" foi facilitada e fundamentada nesse "acervo de vigilância". A esse acervo podem ser somados as notícias dos jornais que criticavam a atuação política do cientista Samuel Pessoa, e documentos de agências governamentais vinculadas à educação superior como, por exemplo, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e financiadores da ciência e saúde internacional como a Fundação Rockefeller, ambas preocupadas com a influência comunista de Pessoa na formação de médicos e cientistas. Samuel Pessoa, sua esposa, e todos os demais foram fichados, suas vidas pessoais e atividades políticas e profissionais foram acompanhadas e registradas nos prontuários e documentos da polícia política, estampadas nos jornais e anotadas em correspondências de agências governamentais e internacionais ao longo de quase duas décadas. Essa vigilância acumulada durante a experiência democrática pós-1945 pode ser acessada, requisitada e tornada um conjunto de provas, em 1964, dos "atos contra a ordem política e social": ser ou ter sido comunista ou simpatizante do PCB ou de grupos de esquerda, uma vez que também havia acusados de trotskismo na Faculdade de Medicina, como o professor Thomas Maack.

    Por definição, governos autoritários não precisam de provas nem julgamentos para punir. Contudo, no caso do regime autoritário brasileiro, e de outros na América Latina, a luta contra o comunismo foi um dos elementos de sua proclamada legitimidade em tempos de Guerra Fria. Desse modo, depositado nos Deops e em outras instituições, esse "acervo de vigilância" que caracterizava como comunistas esse grupo de professores, em grande parte observado desde que eram alunos de medicina, pôde ser apropriada como a narrativa anticomunista – e totalitária no sentido mais amplo de Arendt (14) – que seria concluída "naturalmente" em 1964 com a exclusão destes da universidade.

    O cinquentenário do golpe de 1964 ensejou um grande debate sobre os arquivos da repressão, sua natureza e estatuto enquanto documentos históricos e, inclusive, de testemunho dos crimes do regime autoritário (15). Há uma bibliografia expressiva sobre repressão e polícia política em torno das experiências autoritárias brasileiras (Estado Novo e o regime militar) mas é crescente aquela que aborda o período 1945-64 (16). Neste caso se trata de informações coletadas, organizadas e armazenadas durante um inédito período de franquias democráticas que tinha como um dos seus limites justamente a ilegalidade do PCB. Isso tornava a vigilância sobre esse partido e seus membros e simpatizantes grande parte da razão de existência da polícia política naquele período. A lógica cumulativa seguiu, na democracia brasileira, basicamente os procedimentos e as rotinas da polícia civil porém voltada para os crimes ditos políticos (17). A trajetória de Samuel Pessoa, de seus alunos e discípulos foi observada sob as lentes do anticomunismo como ideologia de atores individuais e de instituições e fez parte da rotina da polícia política. Ainda que nas narrativas da polícia política e dos inquéritos militares apareçam registros de delações feitas em 1964 sobre quem seriam os comunistas na USP – não necessariamente ocorridas ou mesmo verdadeiras –, o que importa é que essas informações já estavam disponíveis e acumuladas desde a década de 1940.

    É importante ressaltar que é impossível abranger todas as facetas desse processo neste artigo, inclusive aquelas metodológicas sobre a documentação em questão. Todavia, talvez o aspecto mais significativo e exemplar para esta discussão seja o da militância comunista dentro e fora da Faculdade de Medicina.

    Samuel Pessoa foi candidato pelo PCB a deputado federal por São Paulo nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1946. Não se elegeu mas, definitivamente, marcou sua presença no cenário político paulista. Essa foi, talvez, sua primeira atividade como filiado do PCB que aparece nos registros dos Deops, parte inicial de um longo prontuário. De certa forma, é uma informação sempre vinculada ao seu famoso e crítico discurso de paraninfo da turma de formandos de medicina de 1940 que teria marcado sua aproximação com o PCB (18). O incômodo com sua condição de professor e militante comunista já aparece nesse período. Em 11 de janeiro de 1947, portanto antes da proscrição do PCB, um documento de agentes do "serviço secreto" do Deops registrou uma ida à Faculdade de Medicina para "(...) averiguar se de fato o professor Samuel B. Pessoa, (...), instigava seus alunos para seu partido que é o PCB (...)". Foram informados na portaria da Faculdade, talvez de forma irônica, que era proibido "instigar política" naquela escola "mas que de fato o Sr. Samuel B. Pessoa é comunista, e também os alunos se dividem em dois Partidos (...) o PCB e o PSP" (19). Em 1950, Samuel Pessoa já estava listado como dirigente da célula comunista do Hospital das Clínicas (20). Depois de Pessoa, foi Luiz Hildebrando Pereira da Silva aquele que teve suas ações mais vigiadas e registradas, conforme documentação requisitada várias vezes por responsáveis pelos IPMs de 1964 (21).

    Ainda estudantes de medicina e, depois, assistentes na Faculdade de Medicina, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Victor Nussenzweig foram escrutinados pela polícia política. Por exemplo, em 2 janeiro de 1950 um informe também do "serviço secreto" indica que Luiz Hildebrando e Victor eram "elementos" que vinham se sobressaindo na célula estudantil do PCB. Naquele momento cursavam o 3º ano de medicina e eram professores da Escola Oswaldo Cruz que preparava alunos para exames de ingresso em diversas faculdades. Nussenzweig, segundo o relato, acabara de ser preso por distribuir retratos de Josef Stalin em comemoração ao aniversário do líder soviético (21 de dezembro). Não coincidentemente, estudava nessa escola Gil Vital Alves Pessoa, um dos três filhos de Samuel e Jovina Pessoa, "conhecidos elementos comunistas", segundo o relato policial. Um informante ouvira que Gil Vital falara a Victor, dias antes do aniversário de Stalin, que "mamãe mandou dizer que os boletins não ficaram prontos mas amanhã ela mandará" (22). Ambos, Pereira e Nussenzweig, eram recorrentemente anotados por promoverem "desenfreada campanha comunista em meios escolares" nos cursos preparatórios (23) e na Faculdade de Medicina. Os vínculos com Samuel Pessoa eram assinalados, pois afinal seguiam "a orientação do médico comunista Samuel Barnsley Pessoa" (24). Sobre Nussenzweig comentavam que era "pessoa abastada, rico, o que causa certa estranheza o fato de se entregar de corpo e alma ao credo comunista" (25). Já Luiz Hildebrando "era filho do engenheiro comunista Melciades Pereira da Silva e irmão da comunista Ruth (...)" (26). Esse tipo de observação mais íntima, coalhada de preconceitos, é um padrão encontrado nos registros da polícia sobre a atuação do casal Samuel e Jovina Pessoa e de Nussenzweig e Luiz Hildebrando e, provavelmente, não diferia de muitos outros relatos.

    Um fato modificou as relações e observações da polícia política, da imprensa e de agências governamentais e internacionais sobre Pessoa com consequências de longo prazo. Em 1952, Samuel Pessoa se envolveu diretamente em um episódio crucial e central da Guerra Fria: a denúncia feita pelos governos da Coreia do Norte e da República Popular da China de que os Estados Unidos teriam utilizado armas biológicas durante a Guerra da Coreia. Essa acusação chegaria ao topo da agenda internacional e se tornaria um episódio, ainda pouco estudado e muito polêmico, da ciência na Guerra Fria. Dada a negativa dos denunciantes, apoiados pela URSS, em aceitar uma comissão de verificação, seja da Organização Mundial da Saúde (OMS) ou da Cruz Vermelha, mais aceitáveis para os EUA e países aliados, o Conselho Mundial da Paz, presidido pelo físico e químico francês, Frédéric Joliot-Curie, Prêmio Nobel de Química em 1935 e membro do PC Francês, nomeou o que seria conhecida por International Scientific Commission for the Investigation of the Facts Concerning Bacterial Warfare in Korea and China (ISC) (27).

    Dado seu prestígio como parasitologista e a sua militância comunista, inclusive pela liderança nos movimentos brasileiros pela paz, Samuel Pessoa foi convidado diretamente por Joliot-Curie e pela Academia de Ciências da China, que custeou a viagem, para participar dessa comissão em maio de 1952 (28). A ISC foi coordenada pelo já então consagrado sinólogo e bioquímico britânico Joseph Needham, o único que falava mandarim. Além de Pessoa e Needham, a ISC foi constituída por cientistas como a sueca Andrea Andreen, o francês Jean Malterre, o italiano Oliviere Olivo e o russo Zhukov-Verezhnikov. D. Jovina Pessoa viajou com a comissão na qualidade de intérprete de seu esposo, uma vez que a língua oficial da ISC seria o francês. Entre 31 de junho e 23 agosto de 1952, a comissão visitou a Coreia do Norte e a China, teve contato com autoridades coreanas e chinesas, inclusive com seus dirigentes máximos, entrevistou pessoas, inclusive dois pilotos norte-americanos, prisioneiros de guerra, que teriam confessado o lançamento de material biológico sobre território coreano e chinês. A comissão produziu um extenso relatório de 660 páginas, divulgado em Beijing em agosto de 1952, no qual confirmaria a "utilização criminosa de armas biológicas pelas forças norte-americanas", palavras de Pessoa (29).

    O relatório foi considerado uma farsa e instrumento de propaganda, e duramente contestado pelos EUA e aliados. As críticas eram a parcialidade da ISC, formada por comunistas ou simpatizantes, e pelos limites ao trabalho da comissão impostos e monitorados pelas autoridades coreanas e chinesas. Os membros da ISC, como Joseph Needham, sofreram duras críticas pessoais e profissionais e experimentaram constrangimentos e o ostracismo, devido a uma campanha que teria sido orquestrada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra para descreditar a comissão e suas conclusões. Inclusive norte-americanos simpatizantes da comissão e divulgadores do relatório foram processados por traição nos Estados Unidos (30). Farsa comunista ou verdade indigesta? Foi enorme a polêmica que as atividades da comissão e seu relatório geraram. Debate que continua até hoje, em particular depois da abertura dos arquivos soviéticos e do acesso a documentos chineses. Independente da veracidade ou não das alegações chinesas e norte-coreanas, confirmadas pela ISC e negadas pelos EUA, importa ressaltar que Samuel Pessoa obteve enorme visibilidade pública por sua participação nesse episódio, alçando-o a uma posição de destaque no movimento antiimperialista e pela paz no Brasil e no exterior. Não era mais somente um professor filiado ao clandestino PCB. Como os demais colegas da ISC, Samuel Pessoa também se tornou alvo de críticas e retaliações.

    Celebrado em seu retorno ao Brasil pela imprensa popular e comunista, na chamada grande imprensa, da capital federal e de São Paulo, o tom das notícias era diferente: pró-americano e anticomunista, afinado com o vocabulário da Guerra Fria. O Correio da Manhã ia direto ao ponto questionando os escolhidos pela "China Soviética" para fazer parte da comissão: "São simpatizantes do comunismo ou já identificados com a causa de Moscou (...) Quanto ao professor Samuel Pessoa não precisa dizer quem é. Professor de parasitologia da Universidade de São Paulo, acredita nos milagres do comunismo desde 1940" (31). Outro jornal da capital federal, O Globo, buscava desqualificar Samuel Pessoa afirmando que, se ele era comunista, não poderia ser cientista e, somado a isso, sua esposa e dois filhos também eram comunistas! (32). A participação de Samuel Pessoa na ISC lhe rendeu aplausos da esquerda e críticas da grande imprensa e, também, uma intimação para comparecer ao Dops para dar explicações sobre sua viagem.

    Em dezembro de 1952, na esteira de seu envolvimento com os movimentos antiarmamentistas, nacionalistas e comunistas, Samuel Pessoa participaria como delegado brasileiro no Congresso dos Povos pela Paz – Congresso Mundial da Paz, realizado em Viena. Esse evento ganhava importância internacional devido justamente ao aumento das tensões internacionais, a Guerra da Coreia, testes nucleares e as acusações de uso de armas químicas e biológicas. Era também uma grande oportunidade para União Soviética e China e para os PC's de vários países mobilizarem populações e trabalhadores em torno de uma agenda pacifista, nacionalista e anti-imperialista e de agendas nacionais específicas. No caso do PCB, a campanha era para impedir o envio de militares brasileiros para a Coreia, restabelecer relações diplomáticas com a URSS e a China e denunciar os acordos militares com os Estados Unidos, assim como a defesa da cultura brasileira contra a invasão de produtos norte-americanos como o cinema, as histórias em quadrinhos e a literatura. A grande imprensa ignoraria por completo o Congresso de Viena enquanto a polícia política e os jornais comunistas dariam destaque à mobilização brasileira pela paz, ao Congresso e à participação de brasileiros, em particular, de Samuel Pessoa, alçado à protagonista devido à ISC. Nesse processo de envolvimento com a agenda internacionalista, Pessoa passou a dirigir o Movimento Brasileiro dos Partidários da Paz.

    Os constrangimentos impostos pela polícia política e pela imprensa tinham, então, alguns limites dado o prestígio científico e profissional de Samuel Pessoa e pela conjuntura mais democrática que o país vivia nos anos 1950. Porém, para a Fundação Rockefeller, importante financiadora internacional de atividades científicas e que apoiou o cientista Samuel Pessoa no campo da pesquisa no início de sua carreira, o comunista Samuel Pessoa tinha ultrapassado os limites ao participar do ISC, um episódio traumático e marcante na Guerra da Fria. Cabe ressaltar que, exatamente nesse momento, na primeira metade dos anos 1950, as fundações filantrópicas estadunidenses, que tinham isenção fiscal, estavam sendo pressionadas e investigadas pelo Congresso dos EUA sobre o possível financiamento de comunistas e de "antiamericanos", pela chamada Comissão Cox-Reece (33).

    Um comentário em linguagem crua da Guerra Fria, de Robert Briggs Watson, parasitologista e malariologista e responsável pelos programas da Fundação Rockefeller no Brasil entre 1954-1962, atesta que a fundação acompanhava e se preocupava com as atividades políticas de Pessoa: "P. foi para a China na comissão da 'guerra bacteriológica', prostituindo assim sua inquestionável capacidade científica como parasitologista e invalidando-a com a sua crença política" (34). O discurso anticomunista de Watson, escrito na intimidade de uma correspondência para seus superiores em Nova Iorque e anotado em fichas individuais de cada um dos ex-bolsistas da Fundação Rockefeller, era extensivo aos alunos formados por Pessoa: "P. tem sido influente durante anos na formação de jovens, não só em parasitologia, mas em atividades políticas subversivas. Embora (...) agora aposentado, sua influência ainda é muito sentida no país". O comentário revela incômodo com os jovens professores membros de uma "escola de parasitologia e comunismo" liderada por Samuel Pessoa, que poderiam estar recebendo, direta ou indiretamente, recursos da Rockefeller (35).

    Em 1956, a Fundação Rockefeller teria sido consultada sobre a possibilidade de Samuel Pessoa, já aposentado da USP, ocupar uma posição na Escola de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que tinha muitas atividades de ensino e pesquisa por ela apoiadas. Watson informava, em junho de 1956, que a "RF (Fundação Rockefeller) não aprova P. nem dará apoio a ele (...)", e que essa nomeação poderia ameaçar, inclusive, o financiamento à Escola de Medicina. Em correspondência trocada sobre o caso, entre Watson, seus superiores e o próprio presidente da fundação, Dean Rusk (mais tarde secretário de Estado nas administrações John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson), fica evidente que fizeram chegar, indiretamente, ao governo brasileiro a informação de que a nomeação não seria bem recebida. O anticomunismo exponenciado pela Guerra Fria pesou sobre Samuel Pessoa e sobre alguns de seus alunos. O veto a qualquer apoio a Victor Nussenzweig é explícito, por exemplo, em notas de janeiro de 1958 no diário do próprio Watson (36). Para a Fundação Rockefeller, os reconhecidos atributos científicos de Pessoa e de seus alunos não mais os absolviam de seu profundo envolvimento com organizações comunistas internacionais. O veto a Pessoa foi bem-sucedido: "P. não conseguiu a posição", comentou Watson (37). E a Fundação Rockefeller não estava sozinha nesse cerco político e acadêmico a Samuel Pessoa e seu grupo na segunda metade dos anos 1950. A Capes é mencionada em correspondência interna da fundação como desejosa de "estabelecer um centro de treinamento em parasitologia em Belém para contrabalançar a influência de Samuel Pessoa" e teria solicitado apoio à Fundação Rockefeller (38). Esta decide dar apoio a viagens de estudo e pesquisa em centros internacionais de parasitologia a professores da Faculdade de Medicina do Pará, escolhida porque estaria mais afastada do circuito de influência de Pessoa e seus alunos (39).

    Retorno ao ato final pelo qual iniciei este ensaio. O ponto central é sugerir que se o expurgo no Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina foi possível pelas condições político-institucionais implantadas pelo regime militar, também o foi porque havia diversas ações e narrativas sendo constituídas e acumuladas sobre Samuel Barnsley Pessoa, seus alunos e colaboradores desde os anos 1940. Todas elas apontavam para a associação entre ciência, medicina e militância comunista como um problema e para a necessidade de conter ou contrabalançar a influência de Pessoa. Em março de 1964 acreditou-se que seria possível eliminá-la definitivamente.

     

    Este artigo é dedicado a Luiz Hildebrando Pereira da Silva (1928-2014), cientista e militante.

     

    Gilberto Hochman é pesquisador da Fiocruz e professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde/COC/Fiocruz. É pesquisador do CNPq e autor, entre outros, de A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil, São Paulo, Hucitec, 2012, 3ª. edição.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Apesp/Deops/Pasta OS 1937/documento com nº 4287.

    2. Há muita imprecisão na carta como grafias erradas de nomes, alguns dos denunciados não tinham vínculos formais com a Faculdade Medicina, entre eles o caso das mulheres, que trabalhavam muitas vezes com os esposos.

    3. Apesp/Deops/Pasta_30_Z_135/documento com nº 48. Os únicos nomes adicionados nessa lista foram os de Walter Coli e Isaias Raw além de alguns cônjuges. Os demais são Antonio Dacio Franco do Amaral e sua esposa Carmem do Amaral; Dacio Franco do Amaral Filho; Luiz Rey e sua esposa Dora Rey; Leonidas Mello Deane; Erney Felício Plessman de Camargo; Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Eva Pereira da Silva; Victor Nussenzweig; Ruth Nussenzweig; Rado Guimarães e sua esposa Eny Guimarães; Thomas Maack; Maurício Rocha e Silva, Filho; Kurt Kloetzel; Michel Pinkus Rabinovitch; Pedro Henrique Saldanha; José Carlos Maia; Maria Paumgarten Deane; Minna Haussman; Judith Kloetzel; Nelson Rodrigues dos Santos; Elza Berquó; Joelson Amado. O nome de José O. Coutinho foi retirado dessa segunda lista. Nem todos os listados foram indiciados.

    4. Apesp/Deops/OS-1938. A lista com os funcionários do HC fichados foi remetida à SSP pelo delegado titular do Dops, Aldário Tinoco, em 27 de abril de 1964.

    5. Adusp. O controle ideológico na USP (1964-1978). São Paulo, Adusp, 2004.

    6. Hochman, G; Paiva, C H. A. "Parasitology and communism: public health and politics in Samuel Barnsley Pessoa". In: Necochea, R.; Birn, A-E (eds). Public health and cold war in Latin America. Rochester, University of Rochester Press (in press).

    7. Pessoa, S. B. Parasitologia médica. São Paulo, Editora Renascença, 1946. As edições a partir de meados dos anos 1970 passaram a ser em coautoria com Amilcar Vianna Martins, importante parasitologista de Minas Gerais, líder do que seria uma "escola mineira de parasitologia", também filiado ao PCB e aposentado compulsoriamente em 1969.

    8. Pessoa, S. B. Ensaios médico-sociais. Rio de Janeiro: Editora Guanabara-Koogan, 1960.

    9. Motta, R. P. S. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014.

    10. Op. cit. pp.17-18.

    11. Motta, R.P.S. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva/Fapesp, 2002.

    12. Projeto Políticas de Saúde, Democracia e Desenvolvimento no Brasil, 1945-1964 (PQ/CNPq n. 311700/2013-6)

    13. Acervo dos Deops no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

    14. Arendt, H. As origens do totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

    15. Projeto Memórias Reveladas, www.memoriasreveladas.gov.br/ acesso em 5/09/2014.

    16. Aperj. Dops: A lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Justiça; Arquivo Público do Estado, 1996, 2ª. edição; Reznik, L. Democracia e segurança nacional: a polícia política no pós-guerra. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004.

    17. Aperj. A contradita: polícia política e comunismo no Brasil: 1945-1964: entrevistas com Cecil Borer, Hércules Corrêa dos Reis, José de Moraes e Nilson Venâncio. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2000.

    18. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135/doc 10.

    19. Apesp/Dops/Pasta30_C_1/doc 1467.

    20. Apesp/Dops/OS-1920/doc 2377.

    21. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135.

    22. Apesp/Dops/Pasta_30_C_1/documentos com n.3795-3794 de 2/1/1950

    23. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135/documento datado de 3/11/1953

    24. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135/documento com n.54, p.2

    25. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135/documento 7, datado de 3/11/1953

    26. Apesp/Dops/Pasta_30_Z_135/documento 10, datado de 2/6/1964

    27. Comissão Científica Internacional para a Investigação sobre os fatos relacionados à Guerra Bacteriana na Coreia e China.

    28. Cartas convites datadas de 8 e 10 de maio de 1952 estão no Arquivo Samuel Barnsley Pessoa, Centro de Apoio à Pesquisa em História (CAPH), Departamento de História, USP.

    29. Pessoa, S. B.. "A guerra bacteriológica e o Congresso dos Povos pela Paz". In: Estudos médico-sociais, op. cit. 322-26, p.325. Sobre a ISC e a polêmica por ela gerada ver Endicott, S.; Hagerman, E.. The United States and biological warfare: secrets from the early cold war and Korea. Bloomington: Indiana University Press, 1998; Leitenberg, M. "False allegations of U.S. Biological weapons use during the Korean War," in Clunan, A. L., Lavoy, P. R.; Martin, S. B. (eds), Terrorism, war, or disease? Unraveling the use of biological weapons. Palo Alto: Stanford University Press, 2008.

    30. Buchanan, T. "The courage of Galileo: Joseph Needham and the 'germ warfare' allegations in the Korean War". History 86, 284 (2001): 503-22; O'Brien, N. L. An American editor in early revolutionary China: John William Powell and the China Weekly/Monthly Review. New York: Routledge, 2003.

    31. O Correio da Manhã, 17/09/1952, p.4.

    32. O Globo, 24/9/1052, p.1 e 9.

    33. Mueller, T. B. "The Rockefeller Foundation, the social sciences, and the humanities in the Cold War", Journal of Cold War Studies, 15, n.3 (2013): 108-135

    34. Rockefeller Archive Center/RF/RG 10.2 Fellowship Cards/Box MNS/Folder Brazil/Pessoa, Samuel B.

    35. Rockefeller Archive Center/RF/RG 10.2 Fellowship Cards/Box MNS/Folder Brazil/Pessoa, Samuel B.

    36. Rockefeller Archive Center/RG 12. Officer's Diaries. Watson, Robert Briggs (1956-1960), box 496, p. 196.

    37. Rockefeller Archive Center/RG 10.2 Fellowship Cards/Box MNS/Folder Brazil/Pessoa, Samuel B.

    38. Rockefeller Archive Center/RF 2-1956, series 300, box 51, folder 334.

    39. Rockefeller Archive Center/RF 1.2, series 305-A, box 5, folder 36.